Política e cultura, segundo uma opção democrática, constitucionalista, reformista, plural.
domingo, 8 de março de 2009
O Estado partidário
Marco Maciel
DEU NO JORNAL DO COMMERCIO (PE)
Em O futuro da democracia, Norberto Bobbio, cujo centenário de nascimento é celebrado este ano, observara que "democracia é definida como um conjunto de regras de procedimento para a formação de decisões coletivas em que está prevista e facilitada a participação mais ampla possível dos interessados". Praticar eleições livres é essencial. Contudo, para que sejam efetivamente democráticas, elas devem ser periódicas, competitivas, livres e não manipuladas. Nos pródromos do sistema representativo, em 1830, os eleitores na Inglaterra representavam 2,3% da população, na Suécia, em 1860, 5,7%, nos Países Baixos, em 1851, 2,4%, em Luxemburgo, em 1848, 2%.
Em todos esses países, assim como no Brasil, nesse tempo praticava-se democracia censitária. Desde 1821, votávamos para eleger os representantes brasileiros às Cortes Constituintes de Lisboa. O eleitorado masculino atingia, em 1872, data do primeiro recenseamento demográfico, cerca de 11% da população adulta, podendo votar os de renda mínima anual de cem mil réis.
Na maioria dos países a universalização, mesmo restrita aos homens, veio bem mais tarde: em 1893 na Bélgica, em 1918 na Dinamarca, na Finlândia em 1906, na Inglaterra em 1918, na Itália em 1919, na Noruega em 1913, nos Países Baixos em 1917 e na Suécia em 1921.
No Brasil, ao lado da democracia participativa, em razão dos novos instrumentos acolhidos no texto constitucional de 1988, a soberania popular é exercida através do plebiscito, do referendo e da iniciativa popular. Esse sufrágio, contudo, depende menos do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, do que da sociedade. Temos de nos conscientizar de que a democracia representativa, tal como concebida e materializada há dois séculos, não exige dos cidadãos pouco mais do que algumas horas de participação a cada dois anos. Ela, mais do que do esforço de qualquer governo, dependerá da natureza da cultura cívica e política de cada nação, povo ou sociedade capaz de se mobilizar para discutir não só as aspirações, opções e desafios, mas, sobretudo, encontrar solução para os problemas da comunidade.
As reclamações sobre a distonia entre os desejos e aspirações que separam os cidadãos de sua representação política, nas casas legislativas e nos governos, não se restringem ao Brasil. Também ocorrem nas mais consolidadas democracias do mundo contemporâneo. As críticas são ácidas, amargas e, em grande parte, desoladoras. Implicam muitas vezes em desesperança, quando não em fatalismo ou inconformismo.
Somos nós que escolhemos nossos representantes e, em consequência, inevitavelmente nos arrependemos. A democracia ateniense de Péricles diferencia das democracias participativas. Lá os cidadãos se reuniam para "decidir", muitas vezes, como no julgamento de Sócrates, cometendo erros fatais, injustiças incorrigíveis, quando não omissões insanáveis. Deliberavam sem "discutir", sem avaliar, às vezes por impulsos emocionais, quando não por idiossincrasias pessoais.
Convém lembrar outro aspecto essencial dos sistemas políticos contemporâneos. Assim como alguns manifestam desinteresse ou aversão à política, como se fosse possível transformá-la, aprimorá-la e refiná-la, mantendo-se alheios às suas práticas sãs, não é menor a repulsa com que grande parte das pessoas vota nos partidos. A democracia moderna é, como recordam pensadores e especialistas, o estado partidário – expressão cunhada por Hans Kelsen –, pela simples razão de que sem a existência de verdadeiros partidos torna-se impossível sua prática.
Os partidos são instituições essenciais aos sistemas políticos que nem as ditaduras os dispensam.
DEU NO JORNAL DO COMMERCIO (PE)
Em O futuro da democracia, Norberto Bobbio, cujo centenário de nascimento é celebrado este ano, observara que "democracia é definida como um conjunto de regras de procedimento para a formação de decisões coletivas em que está prevista e facilitada a participação mais ampla possível dos interessados". Praticar eleições livres é essencial. Contudo, para que sejam efetivamente democráticas, elas devem ser periódicas, competitivas, livres e não manipuladas. Nos pródromos do sistema representativo, em 1830, os eleitores na Inglaterra representavam 2,3% da população, na Suécia, em 1860, 5,7%, nos Países Baixos, em 1851, 2,4%, em Luxemburgo, em 1848, 2%.
Em todos esses países, assim como no Brasil, nesse tempo praticava-se democracia censitária. Desde 1821, votávamos para eleger os representantes brasileiros às Cortes Constituintes de Lisboa. O eleitorado masculino atingia, em 1872, data do primeiro recenseamento demográfico, cerca de 11% da população adulta, podendo votar os de renda mínima anual de cem mil réis.
Na maioria dos países a universalização, mesmo restrita aos homens, veio bem mais tarde: em 1893 na Bélgica, em 1918 na Dinamarca, na Finlândia em 1906, na Inglaterra em 1918, na Itália em 1919, na Noruega em 1913, nos Países Baixos em 1917 e na Suécia em 1921.
No Brasil, ao lado da democracia participativa, em razão dos novos instrumentos acolhidos no texto constitucional de 1988, a soberania popular é exercida através do plebiscito, do referendo e da iniciativa popular. Esse sufrágio, contudo, depende menos do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, do que da sociedade. Temos de nos conscientizar de que a democracia representativa, tal como concebida e materializada há dois séculos, não exige dos cidadãos pouco mais do que algumas horas de participação a cada dois anos. Ela, mais do que do esforço de qualquer governo, dependerá da natureza da cultura cívica e política de cada nação, povo ou sociedade capaz de se mobilizar para discutir não só as aspirações, opções e desafios, mas, sobretudo, encontrar solução para os problemas da comunidade.
As reclamações sobre a distonia entre os desejos e aspirações que separam os cidadãos de sua representação política, nas casas legislativas e nos governos, não se restringem ao Brasil. Também ocorrem nas mais consolidadas democracias do mundo contemporâneo. As críticas são ácidas, amargas e, em grande parte, desoladoras. Implicam muitas vezes em desesperança, quando não em fatalismo ou inconformismo.
Somos nós que escolhemos nossos representantes e, em consequência, inevitavelmente nos arrependemos. A democracia ateniense de Péricles diferencia das democracias participativas. Lá os cidadãos se reuniam para "decidir", muitas vezes, como no julgamento de Sócrates, cometendo erros fatais, injustiças incorrigíveis, quando não omissões insanáveis. Deliberavam sem "discutir", sem avaliar, às vezes por impulsos emocionais, quando não por idiossincrasias pessoais.
Convém lembrar outro aspecto essencial dos sistemas políticos contemporâneos. Assim como alguns manifestam desinteresse ou aversão à política, como se fosse possível transformá-la, aprimorá-la e refiná-la, mantendo-se alheios às suas práticas sãs, não é menor a repulsa com que grande parte das pessoas vota nos partidos. A democracia moderna é, como recordam pensadores e especialistas, o estado partidário – expressão cunhada por Hans Kelsen –, pela simples razão de que sem a existência de verdadeiros partidos torna-se impossível sua prática.
Os partidos são instituições essenciais aos sistemas políticos que nem as ditaduras os dispensam.
Vejam-se os exemplos do nazismo na Alemanha, do fascismo na Itália, do franquismo na Espanha, do salazarismo em Portugal e do stalinismo da antiga União Soviética. Isso mostra que sem partidos, os sistemas políticos perdem sua funcionalidade e correm o risco de se transformarem não em instrumentos da democracia, mas em recursos da autocracia. Daí a necessidade de, em nosso País, fortalecermos as agremiações partidárias, mudarmos o sistema eleitoral, estabelecermos regras de fidelidade de seus filiados e adotarmos cláusula de desempenho. Sem tais pressupostos não conseguiremos travejar instituições políticas que melhorem a nossa governabilidade.
» Marco Maciel é senador e membro da Academia Brasileira de Letras
» Marco Maciel é senador e membro da Academia Brasileira de Letras
Pós-Lula
Marcos Coimbra
DEU NO CORREIO BRAZILIENSE
DEU NO CORREIO BRAZILIENSE
Em outubro de 2010, Lula não vai estar na urna eletrônica, nem de fato, nem simbolicamente, por mais que os estrategistas do PT pensem em fazer da eleição um plebiscito sobre seu governo.
Não é assim que funciona nossa cultura política. Na hora de votar, os eleitores comparam pessoas, biografias, imagens.
Definido o nome da candidata do PT, uma segunda discussão começa. Ela está longe de ser simples, embora exista quem suponha o contrário. São os que pensam que tudo que faltava ao partido era ter um nome, pois o resto já estaria resolvido. Não está.
Nossa cultura política é fortemente personalista, em especial no tocante às representações sobre o presidente (ou a presidente) da República. Isso se manifesta de duas maneiras.
De um lado, nosso imaginário tende a pensar o sistema político como se possuísse um centro forte, em torno do qual gravitam todas as instituições e seus atores. De outro, o senso comum prevalecente é de que a personalidade, a biografia, os atributos pessoais do (ou da) ocupante desse centro são cruciais para entender como funciona o sistema.
Nessa topologia, o universo da política é percebido como um sistema planetário parecido com o nosso, com uma (e uma só) estrela, em cuja órbita estão os planetas e os astros menores. Para o cidadão comum, outros poderes, instituições e personagens são sempre secundários. O sistema depende de seu sol.
Se o presidente é tão central e decisivo, sua individualidade conta, e muito, para explicar como o todo se move. Podendo mandar em tudo, será em função de suas peculiaridades que determinadas coisas serão feitas e outras não. As políticas do governo nada mais seriam, portanto, que a manifestação de seus sentimentos e emoções (ou da falta delas).
Nestes quase sete anos de Lula, esse segundo traço se acentuou. À medida que o tempo foi passando, a imagem do governo se subordinou cada vez mais à da pessoa, tornou-se mais decorrência de seu desempenho pessoal. O Lula “gente”, com suas manias, seus gracejos, suas expressões idiomáticas, foi crescendo e engolindo a imagem do governo.
Visivelmente, o presidente gosta do papel. Seu à vontade em palanques e cerimônias que permitam momentos em que se descontrai e exibe sua personalidade, em que conta casos, se dirige às pessoas com familiaridade, ri de suas anedotas, faz analogias futebolísticas, é evidente. Ao que parece, se pudesse, Lula não parava de falar de si mesmo.
Como as pesquisas de opinião foram mostrando que a popularidade do presidente só aumentava, ele e seus assessores se convenceram de que o caminho era insistir nesse modelo de intensa personalização de imagem. O agradável, para Lula, se juntou ao útil, para o governo.
Sem questionar se esse modelo ajuda ou atrapalha o processo de educação política da sociedade, o fato é que ele foi eficaz para o governo. Mas hoje há uma nova pergunta a ser feita: o que foi bom para Lula é bom para sua candidata?
Dentro do Palácio do Planalto, do PT e da chamada “base do governo”, muita gente acha que sim. Para essas pessoas, nesse processo, Lula cresceu tanto (vide seus 85% de avaliação positiva), que basta a ele indicar alguém para sucedê-lo. O nome apontado herdaria, naturalmente, sua popularidade.
Talvez não. Ao exponenciar o traço personalista de nosso presidencialismo, Lula pode ter criado um quadro adverso para uma candidatura como a de Dilma. Foi ele quem fomentou a noção de que o desejável é um presidente que pouco se parece com ela (pois é a cara dele e só dele).
Em outubro de 2010, Lula não vai estar na urna eletrônica, nem de fato, nem simbolicamente, por mais que os estrategistas do PT pensem em fazer da eleição um plebiscito sobre seu governo. Não é assim que funciona nossa cultura política. Na hora de votar, os eleitores comparam pessoas, biografias, imagens.
Dilma terá que ser construída, muito mais que apenas apontada como “a successora”. Isso não basta e, enquanto personalidades e histórias de vida, Serra, Aécio e Ciro (e até mesmo Heloisa Helena), são mais repertoriados pelos eleitores que ela. Sua força, ser a candidata de alguém, pode ser sua fragilidade, se ficar apenas nisso.
Definido o nome da candidata do PT, uma segunda discussão começa. Ela está longe de ser simples, embora exista quem suponha o contrário. São os que pensam que tudo que faltava ao partido era ter um nome, pois o resto já estaria resolvido. Não está.
Nossa cultura política é fortemente personalista, em especial no tocante às representações sobre o presidente (ou a presidente) da República. Isso se manifesta de duas maneiras.
De um lado, nosso imaginário tende a pensar o sistema político como se possuísse um centro forte, em torno do qual gravitam todas as instituições e seus atores. De outro, o senso comum prevalecente é de que a personalidade, a biografia, os atributos pessoais do (ou da) ocupante desse centro são cruciais para entender como funciona o sistema.
Nessa topologia, o universo da política é percebido como um sistema planetário parecido com o nosso, com uma (e uma só) estrela, em cuja órbita estão os planetas e os astros menores. Para o cidadão comum, outros poderes, instituições e personagens são sempre secundários. O sistema depende de seu sol.
Se o presidente é tão central e decisivo, sua individualidade conta, e muito, para explicar como o todo se move. Podendo mandar em tudo, será em função de suas peculiaridades que determinadas coisas serão feitas e outras não. As políticas do governo nada mais seriam, portanto, que a manifestação de seus sentimentos e emoções (ou da falta delas).
Nestes quase sete anos de Lula, esse segundo traço se acentuou. À medida que o tempo foi passando, a imagem do governo se subordinou cada vez mais à da pessoa, tornou-se mais decorrência de seu desempenho pessoal. O Lula “gente”, com suas manias, seus gracejos, suas expressões idiomáticas, foi crescendo e engolindo a imagem do governo.
Visivelmente, o presidente gosta do papel. Seu à vontade em palanques e cerimônias que permitam momentos em que se descontrai e exibe sua personalidade, em que conta casos, se dirige às pessoas com familiaridade, ri de suas anedotas, faz analogias futebolísticas, é evidente. Ao que parece, se pudesse, Lula não parava de falar de si mesmo.
Como as pesquisas de opinião foram mostrando que a popularidade do presidente só aumentava, ele e seus assessores se convenceram de que o caminho era insistir nesse modelo de intensa personalização de imagem. O agradável, para Lula, se juntou ao útil, para o governo.
Sem questionar se esse modelo ajuda ou atrapalha o processo de educação política da sociedade, o fato é que ele foi eficaz para o governo. Mas hoje há uma nova pergunta a ser feita: o que foi bom para Lula é bom para sua candidata?
Dentro do Palácio do Planalto, do PT e da chamada “base do governo”, muita gente acha que sim. Para essas pessoas, nesse processo, Lula cresceu tanto (vide seus 85% de avaliação positiva), que basta a ele indicar alguém para sucedê-lo. O nome apontado herdaria, naturalmente, sua popularidade.
Talvez não. Ao exponenciar o traço personalista de nosso presidencialismo, Lula pode ter criado um quadro adverso para uma candidatura como a de Dilma. Foi ele quem fomentou a noção de que o desejável é um presidente que pouco se parece com ela (pois é a cara dele e só dele).
Em outubro de 2010, Lula não vai estar na urna eletrônica, nem de fato, nem simbolicamente, por mais que os estrategistas do PT pensem em fazer da eleição um plebiscito sobre seu governo. Não é assim que funciona nossa cultura política. Na hora de votar, os eleitores comparam pessoas, biografias, imagens.
Dilma terá que ser construída, muito mais que apenas apontada como “a successora”. Isso não basta e, enquanto personalidades e histórias de vida, Serra, Aécio e Ciro (e até mesmo Heloisa Helena), são mais repertoriados pelos eleitores que ela. Sua força, ser a candidata de alguém, pode ser sua fragilidade, se ficar apenas nisso.
O PMDB não é o grande mal. A culpa é do sistema
Fernando Abrucio
DEU NA ÉPOCA
A origem do problema está nos incentivos à corrupção e ao fisiologismo nas regras da política brasileira
Num espaço de duas semanas, o PMDB foi dos píncaros à sarjeta. Primeiro, conquistou a presidência das duas Casas congressuais, reforçando seu papel de fiel da balança do sistema político, o que aumenta seu dote para a campanha presidencial. Contrariando o dito popular, depois da bonança veio a tempestade. Um dos mais importantes líderes pemedebistas desde a luta contra a ditadura, o senador Jarbas Vasconcelos fez ferrenhas críticas ao partido, que seria, segundo ele, uma legenda baseada no fisiologismo e com tendência à corrupção.
Essa reviravolta manchou as vitórias recentes do partido e pode arranhar ainda mais a sua já desgastada imagem nos grandes centros do país. Mas, se a denúncia ficar apenas no terreno do moralismo udenista, em pouco tempo o PMDB recuperará suas forças. Ele continuará sendo decisivo na dinâmica congressual e terá ainda um papel decisivo nas eleições de 2010. Prova disso é que os principais candidatos à sucessão presidencial – Serra, Dilma e Aécio – sonham em contar com o apoio do partido para chegar ao Palácio do Planalto.
Obviamente que não são inúteis as críticas que Jarbas fez ao PMDB. O retorno ao topo do sistema de figuras como a de Renan Calheiros é assustador, do mesmo modo que o leilão de cargos públicos, realizado por uma parte dos deputados pemedebistas, mostra que o lema “é dando que se recebe” fazia parte de uma época quase ingênua do fisiologismo congressual. Não compactuar com esse jogo, denunciando-o, é um papel que deve ser exercido pelos melhores políticos do país.
O problema é que na política, como já escreveram Maquiavel e Weber, o que importa são as consequências. Afinal, o que pretende Jarbas com tais críticas? Mudar de partido? Aparentemente, não. Nos últimos anos, ele nunca cogitou trocar de legenda. E todos em Brasília sabem que o PMDB comporta-se agora como no governo Fernando Henrique.
A origem do problema está nos incentivos à corrupção e ao fisiologismo nas regras da política brasileira
Cabe lembrar que Jarbas já saiu uma vez do PMDB, quando foi preterido na escolha do candidato à Prefeitura do Recife. Depois voltou à legenda e, ao dominar o partido regionalmente, nunca mais pensou em sair dele. Repete assim aquilo que ele bem apontou em sua entrevista: o PMDB funciona como um condomínio de caciques regionais.
Poderia se pensar numa outra hipótese: o senador Jarbas Vasconcelos quer mudar o PMDB por dentro. Com a atual distribuição de poder, trata-se de uma tarefa bastante inglória, porque a maioria partidária prefere o statu quo à mudança. Claro que ele poderia almejar ser o “grilo falante” no jogo interno pemedebista, mas novamente estaria atirando no monstro errado. O alvo certo são as condições do sistema político brasileiro que permitem o sucesso da estratégia pemedebista.
Na verdade, nos últimos anos a democracia brasileira tem conseguido expurgar ou enfraquecer parte daqueles cujo comportamento político feriu princípios republicanos básicos. Com a eclosão de escândalos, alguns membros do PMDB – e de outros partidos, ressalte-se – renunciaram a seus postos e/ou perderam fragorosamente eleições. Mas, a cada derrota de um desses, surgem potenciais substitutos ou renascem lideranças com forte propensão a adotar as práticas denunciadas pelo senador Jarbas Vasconcelos. Isso também ocorre em outras agremiações partidárias; a diferença é que os pemedebistas são mais eficientes na disputa desse jogo.
A origem desses males está nos incentivos institucionais ao comportamento clientelista, fisiológico e, no limite, corrupto que existem no caso brasileiro. Um exemplo nessa linha está no preenchimento dos principais postos de estatais e de seus poderosos fundos de pensão. O patrimonialismo e o uso eleitoral desses cargos são o âmago desse sistema. Sem mudar tal aspecto, como exigir um comportamento correto do PMDB, que poderia levá-lo à perda dos recursos que o tornaram, desde o início da Nova República, o rei da política nos planos regional e congressual?
Para que as críticas contra o PMDB não fiquem no mero lacerdismo de ocasião, típico de quem está na oposição no Brasil, é preciso ver o que o sistema tem a dizer sobre esse e os outros partidos.
Fernando Abrucio é doutor em Ciência Política pela USP, professor da Fundação Getúlio Vargas (SP) e escreve quinzenalmente em ÉPOCA
DEU NA ÉPOCA
A origem do problema está nos incentivos à corrupção e ao fisiologismo nas regras da política brasileira
Num espaço de duas semanas, o PMDB foi dos píncaros à sarjeta. Primeiro, conquistou a presidência das duas Casas congressuais, reforçando seu papel de fiel da balança do sistema político, o que aumenta seu dote para a campanha presidencial. Contrariando o dito popular, depois da bonança veio a tempestade. Um dos mais importantes líderes pemedebistas desde a luta contra a ditadura, o senador Jarbas Vasconcelos fez ferrenhas críticas ao partido, que seria, segundo ele, uma legenda baseada no fisiologismo e com tendência à corrupção.
Essa reviravolta manchou as vitórias recentes do partido e pode arranhar ainda mais a sua já desgastada imagem nos grandes centros do país. Mas, se a denúncia ficar apenas no terreno do moralismo udenista, em pouco tempo o PMDB recuperará suas forças. Ele continuará sendo decisivo na dinâmica congressual e terá ainda um papel decisivo nas eleições de 2010. Prova disso é que os principais candidatos à sucessão presidencial – Serra, Dilma e Aécio – sonham em contar com o apoio do partido para chegar ao Palácio do Planalto.
Obviamente que não são inúteis as críticas que Jarbas fez ao PMDB. O retorno ao topo do sistema de figuras como a de Renan Calheiros é assustador, do mesmo modo que o leilão de cargos públicos, realizado por uma parte dos deputados pemedebistas, mostra que o lema “é dando que se recebe” fazia parte de uma época quase ingênua do fisiologismo congressual. Não compactuar com esse jogo, denunciando-o, é um papel que deve ser exercido pelos melhores políticos do país.
O problema é que na política, como já escreveram Maquiavel e Weber, o que importa são as consequências. Afinal, o que pretende Jarbas com tais críticas? Mudar de partido? Aparentemente, não. Nos últimos anos, ele nunca cogitou trocar de legenda. E todos em Brasília sabem que o PMDB comporta-se agora como no governo Fernando Henrique.
A origem do problema está nos incentivos à corrupção e ao fisiologismo nas regras da política brasileira
Cabe lembrar que Jarbas já saiu uma vez do PMDB, quando foi preterido na escolha do candidato à Prefeitura do Recife. Depois voltou à legenda e, ao dominar o partido regionalmente, nunca mais pensou em sair dele. Repete assim aquilo que ele bem apontou em sua entrevista: o PMDB funciona como um condomínio de caciques regionais.
Poderia se pensar numa outra hipótese: o senador Jarbas Vasconcelos quer mudar o PMDB por dentro. Com a atual distribuição de poder, trata-se de uma tarefa bastante inglória, porque a maioria partidária prefere o statu quo à mudança. Claro que ele poderia almejar ser o “grilo falante” no jogo interno pemedebista, mas novamente estaria atirando no monstro errado. O alvo certo são as condições do sistema político brasileiro que permitem o sucesso da estratégia pemedebista.
Na verdade, nos últimos anos a democracia brasileira tem conseguido expurgar ou enfraquecer parte daqueles cujo comportamento político feriu princípios republicanos básicos. Com a eclosão de escândalos, alguns membros do PMDB – e de outros partidos, ressalte-se – renunciaram a seus postos e/ou perderam fragorosamente eleições. Mas, a cada derrota de um desses, surgem potenciais substitutos ou renascem lideranças com forte propensão a adotar as práticas denunciadas pelo senador Jarbas Vasconcelos. Isso também ocorre em outras agremiações partidárias; a diferença é que os pemedebistas são mais eficientes na disputa desse jogo.
A origem desses males está nos incentivos institucionais ao comportamento clientelista, fisiológico e, no limite, corrupto que existem no caso brasileiro. Um exemplo nessa linha está no preenchimento dos principais postos de estatais e de seus poderosos fundos de pensão. O patrimonialismo e o uso eleitoral desses cargos são o âmago desse sistema. Sem mudar tal aspecto, como exigir um comportamento correto do PMDB, que poderia levá-lo à perda dos recursos que o tornaram, desde o início da Nova República, o rei da política nos planos regional e congressual?
Para que as críticas contra o PMDB não fiquem no mero lacerdismo de ocasião, típico de quem está na oposição no Brasil, é preciso ver o que o sistema tem a dizer sobre esse e os outros partidos.
Fernando Abrucio é doutor em Ciência Política pela USP, professor da Fundação Getúlio Vargas (SP) e escreve quinzenalmente em ÉPOCA
O finório faz-de-conta
Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO
Dois governadores no exercício do mandato foram cassados pela Justiça Eleitoral e outros seis correm o risco de perder os mandatos por abuso do poder econômico nas respectivas eleições.
Convenhamos, uma situação inteiramente nova numa terra de costumes eleitorais discutíveis, embora social, política e juridicamente tolerados. Mais: consolidados.
Tão sólidos que se o espírito (de porco) não estiver vigilante chega a soar aceitável a grita dos partidos em defesa da tese de que a Justiça desrespeita e pretende se substituir à vontade do eleitor.
É que nos dois casos já julgados se determinou a posse dos segundos colocados na eleição, rejeitados nas urnas.
O eleitorado não os quis governadores, é verdade. A Justiça Eleitoral deveria por isso ignorar sua convicção firmada a partir do relato dos autos e mandar às favas os fatos em nome do fato consumado?
Sempre foi essa a escolha. Fechar os olhos, manter os ouvidos tampados e se entregar ao mandamento do voto como o santo remédio para todos os pecados.
Mas e se os pecados cometidos no processo tiverem alterado a vontade real do eleitor que não seria aquela expressa na proclamação dos resultados e defendida com tanto afinco?
Como em toda polêmica, há razão de parte a parte. A Justiça não pode deixar de julgar ações nem decidir contra o que diz a lei. Ao mesmo tempo, o eleitor também não é obrigado a aceitar a vitória do perdedor.
O dilema se estabelece porque não há como saber se o abuso condenado alterou ou não o resultado da eleição. Se tiver modificado, a substituição pelo segundo colocado é justa; se não tiver mudado a ordem dos fatores, o eleitor é punido junto com o infrator.
A reclamação amesquinhada dos partidos não resolve a questão. Ao contrário. Denota vontade de manter as coisas como estão. É um sofisma, para não dizer um elogio ao cinismo, o argumento de que há perigo de as cassações na Justiça virarem rotina.
Primeiro, porque parte da premissa de que o Judiciário possa tomar decisões levianas, sem sustentação factual. Em segundo lugar, denota total despreocupação com a rotina de infrações em vigor por anos a fio.
Se o abuso é rotineiro, a Justiça tem obrigação de fazer da punição um hábito incorporado ao cenário e pedagogicamente inibidor de novas transgressões.
Interessante perceber como o protesto dos partidos é seletivo, distante do campo dos princípios.
Não há uma reação conjunta ou sustentada num critério geral. Cada legenda reclama na medida da contrariedade de seu interesse específico.
O PSDB levantou a bandeira quando Cássio Cunha Lima foi tirado do governo da Paraíba e o PDT acordou para o tema quando Jackson Lago foi condenado a deixar o cargo por decisão do Tribunal Superior Eleitoral ainda passível de recurso.
O PT em breve se associa ao movimento. O próximo da lista é Marcelo Déda, de Sergipe, seguido por Luiz Henrique (SC) e Marcelo Miranda (TO), o que fará o PMDB engrossar o rol dos indignados.
É justo que defendam os seus. Mas o protesto contra uma Justiça ativa e corretiva não é compatível com a pregação em prol da reforma nos meios e modos políticos.
A interrupção de mandatos por crimes eleitorais comprovados é ponto pacífico. Pelo menos enquanto os partidos não se reunirem para assumir de peito aberto a insatisfação e instituírem a legalidade do uso da máquina em favor do gestor público.
Em aberto fica a forma de substituição do condenado: se por ascensão do derrotado ou por nova eleição.
Questão a ser examinada proximamente pelo Supremo Tribunal Federal, que deverá julgá-la, abrindo espaço a um debate excelente. Mais não seja para sacudir da política brasileira um pouco da poeira do finório faz-de-conta.
Afinidade transitória
O senador Aloizio Mercadante acha que faltou uma "leitura mais profunda" sobre a eleição de Fernando Collor para a presidência da Comissão de Infraestrutura do Senado, segundo ele resultado de uma "aliança espúria" entre as forças do atraso.
A maioria delas aliada ao governo Lula, Mercadante não nega. No episódio, o PT aliou-se ao PSDB, o que, na visão do senador petista, aflora afinidades antes já reveladas entre os dois partidos.
A votação, aponta, reproduziu a conformação partidária que ajudou a derrubar o governo Collor.
"O DEM deu o último voto que garantiu a presidência da comissão, repetindo o apoio dado pelo PFL 20 anos atrás. Do outro lado, PT, PSDB e PDT, aliados no segundo turno da eleição de 1989 e, depois, na CPI do PC."
Logo, "temos valores semelhantes e isso nos diferencia dos partidos sem projeto de poder". Na opinião de Mercadante, é justamente a disputa do poder o que os distancia e os faz reféns da fisiologia.
Até onde a vista dele alcança, de maneira irremediável. "Daí a impossibilidade de uma chapa Dilma-Aécio, ou coisa parecida."
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO
Dois governadores no exercício do mandato foram cassados pela Justiça Eleitoral e outros seis correm o risco de perder os mandatos por abuso do poder econômico nas respectivas eleições.
Convenhamos, uma situação inteiramente nova numa terra de costumes eleitorais discutíveis, embora social, política e juridicamente tolerados. Mais: consolidados.
Tão sólidos que se o espírito (de porco) não estiver vigilante chega a soar aceitável a grita dos partidos em defesa da tese de que a Justiça desrespeita e pretende se substituir à vontade do eleitor.
É que nos dois casos já julgados se determinou a posse dos segundos colocados na eleição, rejeitados nas urnas.
O eleitorado não os quis governadores, é verdade. A Justiça Eleitoral deveria por isso ignorar sua convicção firmada a partir do relato dos autos e mandar às favas os fatos em nome do fato consumado?
Sempre foi essa a escolha. Fechar os olhos, manter os ouvidos tampados e se entregar ao mandamento do voto como o santo remédio para todos os pecados.
Mas e se os pecados cometidos no processo tiverem alterado a vontade real do eleitor que não seria aquela expressa na proclamação dos resultados e defendida com tanto afinco?
Como em toda polêmica, há razão de parte a parte. A Justiça não pode deixar de julgar ações nem decidir contra o que diz a lei. Ao mesmo tempo, o eleitor também não é obrigado a aceitar a vitória do perdedor.
O dilema se estabelece porque não há como saber se o abuso condenado alterou ou não o resultado da eleição. Se tiver modificado, a substituição pelo segundo colocado é justa; se não tiver mudado a ordem dos fatores, o eleitor é punido junto com o infrator.
A reclamação amesquinhada dos partidos não resolve a questão. Ao contrário. Denota vontade de manter as coisas como estão. É um sofisma, para não dizer um elogio ao cinismo, o argumento de que há perigo de as cassações na Justiça virarem rotina.
Primeiro, porque parte da premissa de que o Judiciário possa tomar decisões levianas, sem sustentação factual. Em segundo lugar, denota total despreocupação com a rotina de infrações em vigor por anos a fio.
Se o abuso é rotineiro, a Justiça tem obrigação de fazer da punição um hábito incorporado ao cenário e pedagogicamente inibidor de novas transgressões.
Interessante perceber como o protesto dos partidos é seletivo, distante do campo dos princípios.
Não há uma reação conjunta ou sustentada num critério geral. Cada legenda reclama na medida da contrariedade de seu interesse específico.
O PSDB levantou a bandeira quando Cássio Cunha Lima foi tirado do governo da Paraíba e o PDT acordou para o tema quando Jackson Lago foi condenado a deixar o cargo por decisão do Tribunal Superior Eleitoral ainda passível de recurso.
O PT em breve se associa ao movimento. O próximo da lista é Marcelo Déda, de Sergipe, seguido por Luiz Henrique (SC) e Marcelo Miranda (TO), o que fará o PMDB engrossar o rol dos indignados.
É justo que defendam os seus. Mas o protesto contra uma Justiça ativa e corretiva não é compatível com a pregação em prol da reforma nos meios e modos políticos.
A interrupção de mandatos por crimes eleitorais comprovados é ponto pacífico. Pelo menos enquanto os partidos não se reunirem para assumir de peito aberto a insatisfação e instituírem a legalidade do uso da máquina em favor do gestor público.
Em aberto fica a forma de substituição do condenado: se por ascensão do derrotado ou por nova eleição.
Questão a ser examinada proximamente pelo Supremo Tribunal Federal, que deverá julgá-la, abrindo espaço a um debate excelente. Mais não seja para sacudir da política brasileira um pouco da poeira do finório faz-de-conta.
Afinidade transitória
O senador Aloizio Mercadante acha que faltou uma "leitura mais profunda" sobre a eleição de Fernando Collor para a presidência da Comissão de Infraestrutura do Senado, segundo ele resultado de uma "aliança espúria" entre as forças do atraso.
A maioria delas aliada ao governo Lula, Mercadante não nega. No episódio, o PT aliou-se ao PSDB, o que, na visão do senador petista, aflora afinidades antes já reveladas entre os dois partidos.
A votação, aponta, reproduziu a conformação partidária que ajudou a derrubar o governo Collor.
"O DEM deu o último voto que garantiu a presidência da comissão, repetindo o apoio dado pelo PFL 20 anos atrás. Do outro lado, PT, PSDB e PDT, aliados no segundo turno da eleição de 1989 e, depois, na CPI do PC."
Logo, "temos valores semelhantes e isso nos diferencia dos partidos sem projeto de poder". Na opinião de Mercadante, é justamente a disputa do poder o que os distancia e os faz reféns da fisiologia.
Até onde a vista dele alcança, de maneira irremediável. "Daí a impossibilidade de uma chapa Dilma-Aécio, ou coisa parecida."
Jobim e os búfalos
Os Estados Unidos eram o potencial "inimigo principal". A eleição de Barack Obama, porém, transforma essa preocupação numa espécie de delírio
No começo da semana passada, vestido para a guerra, o ministro da Defesa, Nelson Jobim, depois de voar duas horas em aviões da FAB, visitou o Pelotão de Fronteira de Ipiranga, na divisa com a Colômbia, acompanhado do chefe do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas dos Estados Unidos, almirante Mike Mullen, e sua comitiva. A visita teve por objetivo dar aos militares ianques uma visão geral da estrutura de Defesa brasileira na Amazônia. Mullen é o segundo homem na hierarquia militar dos Estados Unidos.
Amazônia
Ciceroneados pelo comandante militar da Amazônia, general Augusto Heleno Ribeiro, os militares americanos conheceram os problemas de logística e as principais armas brasileiras para o combate nas selvas e nas fronteiras: soldados de origem indígena e búfalos. Sim, búfalos, perfeitamente adaptados ao terreno, depois de pesquisas com outros animais de cargas, como cavalos, jegues e mulas. Eles conseguem transportar o equivalente ao seu peso, e podem tracionar o dobro. Um búfalo adulto se alimenta da própria selva e carrega a comida consumida por 10 combatentes durante uma semana. Isso significa autonomia operacional para uma patrulha ou pequeno grupo de artilharia por igual período.
Participaram da comitiva o embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Clifford Sobel, os comandantes da Marinha, almirante-de-Esquadra Júlio Soares de Moura Neto; do Exército, general-de-exército Enzo Martins Peri; e da Aeronáutica, tenente-brigadeiro-do-ar Juniti Saito. Em sua palestra, o general Heleno destacou que a região não é para o mais forte, “é do mais sóbrio e inteligente, que pode durar mais na ação”. Detalhe: os búfalos foram usados pelos vietcongs na Guerra do Vietnã.
Heleno, aquele general que protestou por causa da demarcação em terras contínuas da reserva indígena Raposa-Serrra do Sol, é considerado oficial brilhante e exerce liderança na tropa. Defende o deslocamento dos principais efetivos das Forças para a Amazônia e também pensa que o Brasil não deve subestimar os históricos interesses “anglo-saxões” na região. Talvez por isso, a fronteira escolhida para a visita tenha sido a daColômbia, cuja aliança militar com os Estados Unidos é estratégica, por causa das FARC e do narcotráfico, e não a da Venezuela, do nosso histriônico vizinho Hugo Chávez. Por trás do eufemismo de que o “inimigo pode ser qualquer um” do Plano de Defesa Nacional do governo Lula, está a ideia de que os Estados Unidos têm olho grande na Amazônia. O Exército treina soldados-índios e cria búfalos porque sabe que nem a Marinha nem a Aeronáutica teriam condições de enfrentar uma improvável agressão norte-americana. Sem poder de dissuasão, a única alternativa militar seria a guerra de guerrilhas contra uma eventual força de ocupação, principalmente na Amazônia. Parece ideia de jerico, mas os militares acham que tudo pode acontecer daqui a 50 anos, com o esgotamento de reservas de petróleo, manganês, urânio, nióbio e outros minerais estratégicos cobiçados pelos Estados Unidos.
O Rubicão
O ministro Jobim é considerado o primeiro ministro da Defesa de fato pela linha-dura do Exército. Homem de Estado, foi o subrelator da atual Constituição brasileira e presidente do Supremo Tribunal Federal. Se voltar para a advocacia amanhã, terá o crédito de deixar como legado, juntamente com o ministro Mangabeira Unger, um Plano de Defesa digno desse nome, visando fortalecer a indústria bélica nacional e construir um relativo “poder de dissuasão”. Nos bastidores, Jobim compartilha as mesmas preocupações nacionalistas de nossos militares. Mas o Plano foi elaborado num cenário de deriva à esquerda da América Sul, em confronto com a belicosa política externa do ex-presidente Bush. Os Estados Unidos eram o potencial “inimigo principal”. A eleição de Barack Obama, porém, transforma essa preocupação numa espécie de delírio ultranacionalista.
É aí que surgem novas divergências em relação ao Plano de Defesa, principalmente por causa da crise econômica, envolvendo a autonomia dos comandos e as prioridades para o reaparelhamento das Forças Armadas. Jobim resolveu afirmar o Poder Civil e subordinar o Exército, a Aeronáutica e a Marinha ao Estado-Maior Conjunto da Defesa, a quem caberia elaborar o orçamento, estabelecer as prioridades para o reaparelhamento militar e liberar recursos para os projetos e licitações aprovados. O Alto Comando do Exército não aceita a mudança, quer manter o orçamento próprio. Quem lidera a rebelião é o comandante Militar do Leste, general-de-exército Luiz Cesário da Silveira Filho, um remanescente da antiga linha-dura do regime militar.
Irrealismo da economia real
Luiz Gonzaga Belluzzo
DEU NA FOLHA DE S. PAULO
As flutuações da economia são fenômenos compatíveis com o progresso tecnológico e o aumento do bem-estar
INSTIGADO pelo quadro sombrio da crise financeira, o economista Willem Buiter, em seu blog no "Financial Times", desferiu petardos de grosso calibre contra as cidadelas, já em ruínas, do pensamento econômico dominante. O alvo principal são as teorias monetárias ditas novo-clássicas. Para Buiter, a revolução novo-clássica das expectativas racionais -associada aos nomes de Robert Lucas e Thomas Sargent, entre outros- "tornou-se autorreferencial (...) impulsionada por uma lógica interna e por quebra-cabeças estéticos, em vez de motivada pelo desejo de compreender como a economia funciona (...). Assim, os economistas profissionais estavam despreparados quando a crise eclodiu".
Lucas e outros não circunscreveram suas aventuras científicas ao campo da teoria monetária.
DEU NA FOLHA DE S. PAULO
As flutuações da economia são fenômenos compatíveis com o progresso tecnológico e o aumento do bem-estar
INSTIGADO pelo quadro sombrio da crise financeira, o economista Willem Buiter, em seu blog no "Financial Times", desferiu petardos de grosso calibre contra as cidadelas, já em ruínas, do pensamento econômico dominante. O alvo principal são as teorias monetárias ditas novo-clássicas. Para Buiter, a revolução novo-clássica das expectativas racionais -associada aos nomes de Robert Lucas e Thomas Sargent, entre outros- "tornou-se autorreferencial (...) impulsionada por uma lógica interna e por quebra-cabeças estéticos, em vez de motivada pelo desejo de compreender como a economia funciona (...). Assim, os economistas profissionais estavam despreparados quando a crise eclodiu".
Lucas e outros não circunscreveram suas aventuras científicas ao campo da teoria monetária.
Invadiram a área da teoria dos ciclos econômicos com a elegante teoria dos ciclos reais. Essa inovação teórica dos estetas novo-clássicos é descendente da dicotomia entre economia real e economia monetária, que concede privilégios às forças reais em contraposição aos motivos monetários. Os ciclos econômicos são produzidos por choques desferidos no sistema por alterações nas preferências de agentes -empresários ou consumidores- que, na busca de maximizar a sua função-utilidade, suscitam alterações na matriz tecnológica e na estrutura do consumo. Os choques são absorvidos, mesmo diante de informações incompletas, pela percepção dos agentes racionais a respeito da trajetória provável da economia. Isso impede que os protagonistas cometam erros sistemáticos. Assim, a ação racional dos indivíduos reconduz a economia a uma nova situação de equilíbrio.
As flutuações da economia são fenômenos compatíveis com o progresso tecnológico, o aumento do bem-estar e o equilíbrio a longo prazo. A condição para que isso aconteça é deixar aos mercados competitivos a incumbência de produzir os incentivos para a alocação mais eficiente da riqueza ao longo do tempo. Aos governos nada resta senão cruzar os braços para não turbar os sinais que o mercado emite e não produzir "ruído" nas informações.
Posso estar exagerando, mas a prosopopeia da Nova Economia, espalhada como dogma na segunda metade dos anos 90 e início do terceiro milênio, era uma versão popularesca das teorias novo-clássicas do ciclo real, cujo patriarca é o economista Robert Lucas. As justificativas para a prosperidade americana nos anos 90 e no início do terceiro milênio apoiavam-se em grande medida nessas fantasias. Estava ocorrendo, diziam, um choque de produtividade na economia dos EUA, que, entre curtas flutuações, garantiria crescimento duradouro. Teria havido um deslocamento forte das condições da oferta. Não foi por acaso que Greesnpan, apesar de ter denunciado, em meados da década, a "exuberância irracional", revelou, por vezes, em seus pronunciamentos, simpatia pela tese dos formidáveis ganhos de produtividade, o que, no final das contas, justificaria o avanço fantástico dos preços das ações e dos imóveis.
A realidade do ciclo financeiro e monetário deixou na pior a teoria do ciclo real.
Luiz Gonzaga Belluzzo , 66, é professor titular de Economia da Unicamp. Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo (governo Quércia).
As flutuações da economia são fenômenos compatíveis com o progresso tecnológico, o aumento do bem-estar e o equilíbrio a longo prazo. A condição para que isso aconteça é deixar aos mercados competitivos a incumbência de produzir os incentivos para a alocação mais eficiente da riqueza ao longo do tempo. Aos governos nada resta senão cruzar os braços para não turbar os sinais que o mercado emite e não produzir "ruído" nas informações.
Posso estar exagerando, mas a prosopopeia da Nova Economia, espalhada como dogma na segunda metade dos anos 90 e início do terceiro milênio, era uma versão popularesca das teorias novo-clássicas do ciclo real, cujo patriarca é o economista Robert Lucas. As justificativas para a prosperidade americana nos anos 90 e no início do terceiro milênio apoiavam-se em grande medida nessas fantasias. Estava ocorrendo, diziam, um choque de produtividade na economia dos EUA, que, entre curtas flutuações, garantiria crescimento duradouro. Teria havido um deslocamento forte das condições da oferta. Não foi por acaso que Greesnpan, apesar de ter denunciado, em meados da década, a "exuberância irracional", revelou, por vezes, em seus pronunciamentos, simpatia pela tese dos formidáveis ganhos de produtividade, o que, no final das contas, justificaria o avanço fantástico dos preços das ações e dos imóveis.
A realidade do ciclo financeiro e monetário deixou na pior a teoria do ciclo real.
Luiz Gonzaga Belluzzo , 66, é professor titular de Economia da Unicamp. Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo (governo Quércia).
O mundo precisa de mulheres livres
Hillary Clinton*
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO
Desafios atuais são grandes e complexos demais para serem resolvidos sem a participação delas
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO
Desafios atuais são grandes e complexos demais para serem resolvidos sem a participação delas
Há 11 anos, em viagem à China, encontrei ativistas que me relataram seus esforços para melhorar a situação da mulher no país. Elas me apresentaram os desafios enfrentados pelas mulheres: discriminação no emprego, assistência médica inadequada, violência doméstica, leis antiquadas.
Reencontrei algumas delas há poucas semanas, durante minha primeira viagem à Ásia como secretária de Estado. Desta vez, ouvi sobre progressos obtidos na década passada. No entanto, mesmo após alguns avanços importantes, essas mulheres chinesas não deixaram dúvidas de que ainda existem obstáculos e injustiças, como ocorre em muitas partes do mundo.
Tenho ouvido histórias como as delas em todos os continentes. Em 8 de março, ao comemorarmos o Dia Internacional da Mulher, temos a chance de avaliar tanto os avanços conquistados quanto os desafios remanescentes - e de pensar sobre o papel vital que as mulheres devem desempenhar na solução dos desafios globais do século 21.
Os problemas que enfrentamos hoje são demasiadamente grandes e complexos para serem resolvidos sem a plena participação das mulheres. Fortalecer os direitos das mulheres não é somente obrigação moral, é também uma necessidade, no momento em que enfrentamos uma crise econômica global, disseminação do terrorismo e das armas nucleares, conflitos regionais e mudanças climáticas, com seus respectivos perigos para a saúde e a segurança mundiais. Esses desafios exigem tudo o que temos. Não os resolveremos com meias medidas. Mas com frequência metade do mundo é deixada de fora dessas e muitas outras questões.
Atualmente, mais mulheres chefiam governos, empresas e ONGs do que nas gerações anteriores. Mas essa boa notícia tem outro lado. As mulheres ainda constituem a maioria dos pobres, desnutridos e não escolarizados do mundo. Ainda estão sujeitas a estupro como tática de guerra e ainda são exploradas em âmbito mundial por traficantes, em atividades criminosas que rendem bilhões.
Crimes em nome da honra, mutilação genital, além de outras práticas violentas e degradantes cujo alvo são mulheres, continuam a ser toleradas em muitos lugares. Há poucos meses, uma jovem do Afeganistão estava a caminho da escola quando um grupo de homens jogou-lhe ácido no rosto, causando-lhe danos permanentes à visão, só porque se opunham à sua busca por instrução. A tentativa de aterrorizar a moça e sua família fracassou. "Meus pais disseram para eu continuar na escola, ainda que possa ser morta", disse ela.
A coragem e a determinação dessa jovem servem de inspiração para que todos nós - mulheres e homens - continuemos a trabalhar com o maior empenho possível para garantir que meninas e mulheres consigam seus merecidos direitos.
Especialmente em meio a esta crise financeira, devemos lembrar o que um conjunto crescente de pesquisas nos diz: o apoio a mulheres é um investimento de alto retorno, que resulta em economias mais fortes, sociedades civis mais vigorosas, comunidades mais saudáveis e mais paz e estabilidade. Investir nas mulheres é um modo de apoiar futuras gerações, pois elas gastam a maior parte de sua renda em alimentos, remédios e escolas para os filhos.
Mesmo em países desenvolvidos, o pleno poder econômico das mulheres está longe de ser alcançado. Mulheres de muitas nações continuam a ganhar menos que os homens para fazer o mesmo trabalho - uma lacuna contra a qual o presidente Barack Obama deu um passo adiante nos Estados Unidos este ano, ao assinar a Lei Lilly Ledbetter de Pagamento Justo, que fortalece a capacidade das mulheres de contestar salários desiguais.
É necessário dar às mulheres a oportunidade de trabalhar com salários justos, ter acesso a crédito e abrir negócios. Elas merecem igualdade na esfera política, acesso igual à urna eleitoral, liberdade para apresentar reivindicações ao governo e candidatar-se a cargos públicos. Elas têm direito à assistência médica para si e suas famílias e o direito de enviar os filhos e filhas à escola. Elas desempenham um papel vital no estabelecimento da paz e da estabilidade no mundo inteiro. Em regiões arrasadas pela guerra, são frequentemente mulheres que dão um jeito de superar diferenças e descobrir interesses comuns.
Ao viajar pelo mundo em minha nova função, não me esquecerei das mulheres que já encontrei - mulheres que lutaram contra adversidades extraordinárias para mudar leis de modo a poder possuir bens, ter direitos no casamento, frequentar escola, apoiar a família e até atuar como pacificadoras.
Serei uma defensora veemente, trabalhando com meus pares de outras nações, assim como com ONGs, empresas e indivíduos, para continuar a promover o avanço dessas questões. Reconhecer o pleno potencial e o comprometimento das mulheres não é apenas questão de justiça. Trata-se de fortalecer a prosperidade, o progresso e a paz global para as próximas gerações.
* Hillary Clinton é secretária de Estado dos Estados Unidos
Retorno às trevas
Alberto Dines
DEU NO JORNAL DO COMMERCIO (PE)
Um dia antes, entre compungida e devota, a quase-candidata Dilma Rousseff leu a Bíblia e participou do show-missa bizantino do Padre Marcelo Rossi. Nesta sexta-feira, no Espírito Santo, o presidente da República deixou o script de lado, esqueceu as conveniências políticas e a estratégia de agradar a todos e fez um veemente protesto contra a excomunhão dos médicos que fizeram o aborto na menina estuprada pelo padrasto. “Neste aspecto, a medicina está mais correta do que a Igreja”, proclamou o presidente.
Neste aspecto e em muitos outros. E não apenas a Igreja Católica: as religiões, todas as religiões, estão redondamente enganadas ao imaginar que a humanidade ainda não passou pelo Renascimento e o Iluminismo e que o processo civilizatório deteve-se no tempo.
Mais piedosa e, sobretudo, mais humana do que o arcebispo de Olinda e o Recife que pronunciou o anátema, a diretora do centro médico onde se processou o aborto, declarou: “Graças a Deus estou no rol dos excomungados.” “Graças a Jesus Cristo sou ateu”, escreveu o filósofo e político italiano Gianni Vattimo, no diário espanhol El País (domingo, 01/03, p. 25).
Além de cometer o pecado da arrogância e da soberba, o arcebispo d. José Cardoso Sobrinho criou um caso diplomático entre a Santa Sé e o Estado brasileiro. A afoiteza da sua manifestação contraria frontalmente a recente Concordata assinada em Roma pelo presidente Lula e o papa Bento XVI. Trata-se de uma clara ingerência nos assunto internos do País já que na quarta-feira, quando excomungou os médicos e a mãe da menina violentada (que autorizou a intervenção médica), o arcebispo declarou que quando uma lei promulgada pelos legisladores contraria a lei de Deus, essa lei humana não tem qualquer valor. O sacerdote insubordina-se contra as leis que deveria respeitar na condição de representante de um Estado estrangeiro e promove abertamente a subversão da ordem no país que lhe oferece proteção e liberdade. Esta é uma oportunidade preciosa para retomar a discussão sobre o caráter laico e secular do Estado moderno. Os conceitos de democracia e cidadania não têm condição de conviver com dogmas cerceadores da liberdade de escolher.
Como aconteceu recentemente na Itália (quando o Vaticano desafiou as autoridades que aceitaram a interrupção da alimentação venosa da jovem Eluana Englaro há 17 anos em estado vegetativo), é imperioso estabelecer limites nítidos entre as crenças individuais e as normas que regem a sociedade. Crer ou descrer são prerrogativas íntimas, não podem ser desrespeitadas nem impostas.
Quando foi divulgada a suposta agressão de Paula Oliveira por skinheads suíços, o país reagiu com veemência às doutrinas xenófobas e racistas que tomam conta da Europa.
Agora, por coerência, não podemos nos curvar ao totalitarismo pseudo-espiritual que anula o direito de pensar e individuar-se.
Os fantasmas e ameaças que hoje rondam a aldeia global só poderão ser exorcizados com um instrumental ético e regulamentos morais imunes às hipocrisias confessionais.
Cinismo é o nome do Inimigo Público Nº 1, ele é o pai e a mãe da corrupção. Falsidade e dissimulação só prosperam em sociedades ambíguas que confundem valores, impedidas de buscar a verdade.
Ao proclamar que o aborto é mais grave do que o estupro o arcebispo curva-se à violência. Seu fundamentalismo é o grande fomentador de um relativismo que acabará por liquidar qualquer tipo de solidariedade, respeito humano e amor ao próximo.
Raras vezes conseguiu o presidente Lula expressar com tamanha clareza tamanho consenso. Não lhe fará mal algum – ao contrário só o engrandecerá – se levar adiante uma profissão de fé humanista e humanitária. Sua inata religiosidade não será afetada se mantiver a disposição de evitar o seqüestro do Estado pelos egressos do feudalismo e os cruzados das trevas.
» Alberto Dines é jornalista
DEU NO JORNAL DO COMMERCIO (PE)
Um dia antes, entre compungida e devota, a quase-candidata Dilma Rousseff leu a Bíblia e participou do show-missa bizantino do Padre Marcelo Rossi. Nesta sexta-feira, no Espírito Santo, o presidente da República deixou o script de lado, esqueceu as conveniências políticas e a estratégia de agradar a todos e fez um veemente protesto contra a excomunhão dos médicos que fizeram o aborto na menina estuprada pelo padrasto. “Neste aspecto, a medicina está mais correta do que a Igreja”, proclamou o presidente.
Neste aspecto e em muitos outros. E não apenas a Igreja Católica: as religiões, todas as religiões, estão redondamente enganadas ao imaginar que a humanidade ainda não passou pelo Renascimento e o Iluminismo e que o processo civilizatório deteve-se no tempo.
Mais piedosa e, sobretudo, mais humana do que o arcebispo de Olinda e o Recife que pronunciou o anátema, a diretora do centro médico onde se processou o aborto, declarou: “Graças a Deus estou no rol dos excomungados.” “Graças a Jesus Cristo sou ateu”, escreveu o filósofo e político italiano Gianni Vattimo, no diário espanhol El País (domingo, 01/03, p. 25).
Além de cometer o pecado da arrogância e da soberba, o arcebispo d. José Cardoso Sobrinho criou um caso diplomático entre a Santa Sé e o Estado brasileiro. A afoiteza da sua manifestação contraria frontalmente a recente Concordata assinada em Roma pelo presidente Lula e o papa Bento XVI. Trata-se de uma clara ingerência nos assunto internos do País já que na quarta-feira, quando excomungou os médicos e a mãe da menina violentada (que autorizou a intervenção médica), o arcebispo declarou que quando uma lei promulgada pelos legisladores contraria a lei de Deus, essa lei humana não tem qualquer valor. O sacerdote insubordina-se contra as leis que deveria respeitar na condição de representante de um Estado estrangeiro e promove abertamente a subversão da ordem no país que lhe oferece proteção e liberdade. Esta é uma oportunidade preciosa para retomar a discussão sobre o caráter laico e secular do Estado moderno. Os conceitos de democracia e cidadania não têm condição de conviver com dogmas cerceadores da liberdade de escolher.
Como aconteceu recentemente na Itália (quando o Vaticano desafiou as autoridades que aceitaram a interrupção da alimentação venosa da jovem Eluana Englaro há 17 anos em estado vegetativo), é imperioso estabelecer limites nítidos entre as crenças individuais e as normas que regem a sociedade. Crer ou descrer são prerrogativas íntimas, não podem ser desrespeitadas nem impostas.
Quando foi divulgada a suposta agressão de Paula Oliveira por skinheads suíços, o país reagiu com veemência às doutrinas xenófobas e racistas que tomam conta da Europa.
Agora, por coerência, não podemos nos curvar ao totalitarismo pseudo-espiritual que anula o direito de pensar e individuar-se.
Os fantasmas e ameaças que hoje rondam a aldeia global só poderão ser exorcizados com um instrumental ético e regulamentos morais imunes às hipocrisias confessionais.
Cinismo é o nome do Inimigo Público Nº 1, ele é o pai e a mãe da corrupção. Falsidade e dissimulação só prosperam em sociedades ambíguas que confundem valores, impedidas de buscar a verdade.
Ao proclamar que o aborto é mais grave do que o estupro o arcebispo curva-se à violência. Seu fundamentalismo é o grande fomentador de um relativismo que acabará por liquidar qualquer tipo de solidariedade, respeito humano e amor ao próximo.
Raras vezes conseguiu o presidente Lula expressar com tamanha clareza tamanho consenso. Não lhe fará mal algum – ao contrário só o engrandecerá – se levar adiante uma profissão de fé humanista e humanitária. Sua inata religiosidade não será afetada se mantiver a disposição de evitar o seqüestro do Estado pelos egressos do feudalismo e os cruzados das trevas.
» Alberto Dines é jornalista
Em nome do Pai
Eliane Cantanhêde
DEU NA FOLHA DE S. PAULO
BRASÍLIA - Neste 8 de março, Dia Internacional da Mulher, quero fazer um agradecimento público ao arcebispo de Olinda e Recife, dom José Cardoso Sobrinho.
Ele calou sobre o crime hediondo de um padrasto que estuprava a enteada desde os 6 anos de idade e a engravidou de gêmeos aos 9. Mas excomungou a mãe da menina e a equipe médica pelo aborto que tenta salvar sua vida, sua essência de criança, sua capacidade de ser feliz. Essa inversão produziu excelentes resultados, no melhor momento: mobilizou a imprensa local e nacional e indignou milhões de pessoas na semana que antecedeu o Dia da Mulher, expondo o quanto o fundamentalismo religioso pode ser não apenas retrógrado mas cruel, desumano e, em certa dose, também ridículo, em casos que envolvem de fato vida e futuro. Os assim, particulares. Ou os coletivos, como a pesquisa de células tronco.
Foi uma verdadeira aula, contra o arcebispo, a favor da menina, para mulheres, homens, jovens, velhos, todos os que olharam para a grande vítima horrorizados, chocados, com uma piedade que faltou justamente ao "homem de Deus".
Até a CNBB teve dificuldade para respaldar sua atitude. Numa nota visivelmente constrangida, condena antes o estuprador (que dom José nem sequer citara), reitera a posição contrária ao aborto e não faz uma só defesa da excomunhão.
Para dom José, estuprar crianças é pecado, mas não muito. O que não pode é tentar corrigir as sequelas do estupro, acolher aquela menina, salvar-lhe o corpo, talvez a mente, garantir-lhe o futuro. Para ele, portanto, aborto é mais grave do que estupro. Os médicos que o realizaram são piores do que o suspeito de pedofilia em Catanduva (SP).
Trata-se do típico caso em que a igreja anda para um lado, enquanto o mundo e as pessoas, para o outro, em sentido contrário. É assim que seus pastores perdem seus rebanhos para as evangélicas, as espíritas, as umbandistas. Ou para o ateísmo, puro e simples.
DEU NA FOLHA DE S. PAULO
BRASÍLIA - Neste 8 de março, Dia Internacional da Mulher, quero fazer um agradecimento público ao arcebispo de Olinda e Recife, dom José Cardoso Sobrinho.
Ele calou sobre o crime hediondo de um padrasto que estuprava a enteada desde os 6 anos de idade e a engravidou de gêmeos aos 9. Mas excomungou a mãe da menina e a equipe médica pelo aborto que tenta salvar sua vida, sua essência de criança, sua capacidade de ser feliz. Essa inversão produziu excelentes resultados, no melhor momento: mobilizou a imprensa local e nacional e indignou milhões de pessoas na semana que antecedeu o Dia da Mulher, expondo o quanto o fundamentalismo religioso pode ser não apenas retrógrado mas cruel, desumano e, em certa dose, também ridículo, em casos que envolvem de fato vida e futuro. Os assim, particulares. Ou os coletivos, como a pesquisa de células tronco.
Foi uma verdadeira aula, contra o arcebispo, a favor da menina, para mulheres, homens, jovens, velhos, todos os que olharam para a grande vítima horrorizados, chocados, com uma piedade que faltou justamente ao "homem de Deus".
Até a CNBB teve dificuldade para respaldar sua atitude. Numa nota visivelmente constrangida, condena antes o estuprador (que dom José nem sequer citara), reitera a posição contrária ao aborto e não faz uma só defesa da excomunhão.
Para dom José, estuprar crianças é pecado, mas não muito. O que não pode é tentar corrigir as sequelas do estupro, acolher aquela menina, salvar-lhe o corpo, talvez a mente, garantir-lhe o futuro. Para ele, portanto, aborto é mais grave do que estupro. Os médicos que o realizaram são piores do que o suspeito de pedofilia em Catanduva (SP).
Trata-se do típico caso em que a igreja anda para um lado, enquanto o mundo e as pessoas, para o outro, em sentido contrário. É assim que seus pastores perdem seus rebanhos para as evangélicas, as espíritas, as umbandistas. Ou para o ateísmo, puro e simples.
Caminho longo
Panorama Econômico :: Miriam Leitão
DEU EM O GLOBO
A política tem produzido um volume extravagante de fatos desalentadores nos últimos tempos. Nisso, a longa sessão do Senado em torno do senador Jarbas Vasconcelos foi um alento: o discurso e alguns dos apartes tinham o tom raro da sensatez simples e direta. O professor Bruno Speck, estudioso da corrupção, diz que ela pode ser detida com as políticas públicas certas.
DEU EM O GLOBO
A política tem produzido um volume extravagante de fatos desalentadores nos últimos tempos. Nisso, a longa sessão do Senado em torno do senador Jarbas Vasconcelos foi um alento: o discurso e alguns dos apartes tinham o tom raro da sensatez simples e direta. O professor Bruno Speck, estudioso da corrupção, diz que ela pode ser detida com as políticas públicas certas.
A informação acima de Speck é a boa notícia. A má notícia é que ele acha que essa construção institucional de barreiras à corrupção vai nos tomar 20 ou 30 anos. Bom, o Brasil levou 25 anos lutando contra a ditadura militar, e mais de 20 anos contra a superinflação. Nossos desafios são sempre de longo alcance. Boa seria a sensação de estar caminhando na direção certa.
Entrevistei o cientista político da Unicamp, Bruno Speck, e o economista político Alexandre Marinis, da Mosaico, sobre corrupção esta semana, para a Globonews. A ideia de fugir, no programa, do atormentado terreno da economia para o conturbado mundo da política surgiu depois de passar duas horas e 40 minutos ouvindo a sessão do Senado em que Jarbas Vasconcelos repetiu sua acusação de corrupção ao próprio partido, o PMDB, e disse verdades simples, como "o exercício da política não pode ser transformado num balcão de negócios".
Os apartes, um caso à parte. Foram da sinceridade de português de boa qualidade do senador Cristovam Buarque ao envergonhado e confuso protesto do senador Almeida Lima, da tropa de choque de Renan Calheiros. Uma ausência esteve presente todo o tempo, como se fossem aquelas fotos em que se recorta um dos fotografados: o recentemente eleito presidente do Senado, José Sarney, que não presidiu a sessão.
Os que foram autênticos ao falar contra a corrupção pediram mudanças: uma reforma política, mudanças na formulação e execução do Orçamento, descentralização federativa. O que realmente funciona?
Bruno Speck me disse, no programa, que não acredita no financiamento público exclusivo de campanha como remédio para os males da corrupção. Acha difícil um financiamento que seja exclusivamente público, porque isso só incentivará o caixa dois. Prefere aperfeiçoar o sistema atual de transparência das contribuições legais feitas. Ele acha que esse "caixa um" é bem transparente, e pode ser acompanhado.
- O caminho mais viável é cumprir as regras em vigor - disse Speck.
Alexandre Marinis não acredita que o Congresso Nacional faça alguma reforma política. Na sessão do Senado, o senador Marco Maciel lembrou que ou se faz este ano, ou não poderá ser feita no ano que vem, que é eleitoral. O economista lembrou que o Congresso tem se enrolado há 10 anos em várias propostas de reformas, e, mesmo quando chega a consenso sobre uma medida correta, ela acaba derrubada, como aconteceu com a cláusula de barreira.
Marinis lembrou de uma pesquisa feita pelo Ibope, anos atrás, em que 82% disseram que achavam "grave e inaceitável" o uso de caixa dois na política, mas 29% disseram que fariam uso dela se fossem políticos, e esse percentual aumentava entre os de maior renda: 40% usariam caixa dois.
- Isso me fez lembrar de uma entrevista de João Ubaldo Ribeiro, que na época me deixou chocado, em que ele falava que o Brasil era um país corrupto. Hoje, tendo a concordar com ele - disse Marinis.
Speck admite que também tem essa impressão:
- Creio que sim, há muita corrupção no Brasil, mas o combate à corrupção surgiu nos últimos 15 anos na agenda nacional, indo para as primeiras páginas dos jornais. Isso é importante. Temos que nos acostumar que o combate à corrupção vai se dar através de adoção de políticas públicas durante 20, 30 anos. Foi assim que aconteceu nos países de democracia institucionalizada. O combate à corrupção será como a erradicação da pobreza, ou a proteção ao meio ambiente: será feito com uma série de políticas públicas, e não com uma reforma.
Um dos passos será mudar a forma de fazer e executar o Orçamento. Do jeito que está, é um horror. Ele é feito sem transparência, com aprovação negociada na base do tráfico das emendas parlamentares, engessado, não cumprido pelo Executivo que, além disso, cria despesas por medida provisória.
Alexandre Marinis acha que o Orçamento já é, hoje, uma batalha dos grupos organizados na lógica da "farinha pouca, meu pirão primeiro". Os de dentro do Estado assumiram uma fatia maior no governo Lula.
- Este foi o maior ciclo de reajuste para funcionários, que chegaram a receber até 142% de aumento, e foram contratados 200 mil servidores.
Ele disse que se o governo federal não tivesse comprometido tanto a sua renda com funcionários, teria muito mais agora para gastar com políticas para evitar a crise econômica. Mas nessas políticas, de novo, os poderosos estão ficando com a parte do leão. As isenções de impostos beneficiam as grandes empresas, mas não as pequenas, que criam mais empregos em seu conjunto.
As emendas de parlamentares deveriam ser suprimidas, disseram os dois especialistas. Tem sido uma fonte enorme de distorção. Há outras mudanças que podem ser feitas nos próximos anos para proteger o contribuinte dos males da corrupção. Existem duas ferramentas básicas: transparência e avaliação de políticas.
Visão estrangeira
Que a crise internacional não é uma simples "marola" já está demonstrado pela queda do resultado da produção industrial de janeiro em relação ao ano passado, e pelo consequente aumento do desemprego no país. Se o país vai ser o primeiro a sair da crise, como garante o Ministro da Fazenda nesse jogo de otimismo que o governo teima em fazer, isso veremos. As vantagens comparativas do Brasil em relação aos demais países, vistas dentro da crise, são os seus antigos defeitos no modelo econômico que agora está sendo necessariamente revisado. A condescendência do Estado brasileiro com o custo alto de um governo grande e intervencionista representa, pelo menos momentaneamente, uma garantia, como registrou recentemente a revista inglesa "The Economist", especialmente no campo financeiro, num mundo que está tendo que estatizar a economia para sair da crise.
Mas enquanto governos dos Estados Unidos e da Europa tratam a estatização como uma solução provisória e trabalham para salvar o capitalismo de seus excessos e desvios, o governo brasileiro a cada dia dá mais mostras de que considera que o modelo estatizante deve ser o objetivo final.
Mesmo com todos os equívocos que estão sendo cometidos no enfrentamento da crise internacional, há um "modelo brasileiro" que está em discussão no mundo, e que tem também vantagens comparativas reais, como a liderança na política de combustíveis alternativos.
Na semana passada, num programa da televisão holandesa, o economista Marcelo Neri, da Fundação Getulio Vargas no Rio, teve oportunidade de defender esse "modelo brasileiro", na comparação com os modelos de desenvolvimentos dos Estados Unidos, da Europa e da Ásia.
Esta semana, o filósofo e historiador americano Jim Garrison, presidente do State of the World, uma ONG criada por Mikhail Gorbachev dedicada à preservação do meio ambiente, está no Brasil para convidar o presidente Lula a comparecer em novembro ao simpósio que realizará em Washington, onde pretende reuni-lo com o presidente americano Barack Obama e Al Gore no lançamento de um plano cujo objetivo ambicioso é, em dez anos, reverter a questão climática no mundo.
Ele quer organizar aqui a segunda reunião em 2010. A ideia é fazer uma conferência em uma cidade diferente nos próximos dez anos, "para chamar a atenção para esse enorme desafio", diz Garrison. Para ele, se não fizermos nada, as forças ecológicas podem sair definitivamente do nosso controle. "Estamos tentando fazer com que diversos governos do mundo trabalhem em conjunto, e achamos que o Brasil deve ser um dos líderes desse movimento", diz ele, levando em conta justamente a política de combustíveis alternativos como o biodiesel e as condições climáticas favoráveis também à energia solar e de ventos.
Neste momento, diz ele, Estados Unidos e Europa estão preocupados com a crise econômica, que acreditam que é uma crise no sistema, "mas eu estou convencido de que a realidade é que temos uma crise do sistema, e essa política de jogar milhões de dólares nos bancos não vai ter sucesso. A única maneira de lidar com a crise financeira é lidar com o aquecimento global".
No programa da televisão holandesa, numa discussão internacional sobre o próximo modelo econômico ("The Next Super Model"), o economista Marcelo Neri colocou para um "júri" de especialistas o que considera nossos pontos fortes. Segundo sua definição, o Brasil vem trilhando o que se pode chamar o caminho do meio, "nem tanto ao Estado, nem tanto ao mercado, combinando programas sociais com respeito às regras do mercado, com um governo grande, guloso e "generoso", mas sem ímpeto reformista".
Para ele, as reservas externas brasileiras funcionam como uma gordura a mais que pode ser queimada. Fora a pujança do mercado consumidor interno e do que classifica de "teimoso otimismo oficial", Marcelo Neri vê outros "fatores amortecedores dos impactos da crise externa no Brasil".
Ele lembra que, "apesar da abertura externa crescente e do crescimento do crédito recentes, o Brasil ainda se encontra pouco vulnerável a estes canais de transmissão", pois ainda somos uma economia relativamente fechada e regulada financeiramente. Ou seja, ressalta ele, o que era inépcia na fase de ouro mundial, passa a se tornar virtude em tempos magros.
"Nossa ineficiências e iniquidades atuais se transformam em virtudes prospectivas se forem combatidas", diz ele, comparando a nossa carga tributária à cintura de um cidadão de meia-idade que vinha crescendo a cada ano garantindo um superávit fiscal primário.
Para ele, "compramos sem saber seguro para uma crise não anunciada. Nosso prévio excesso de regulação financeira se torna uma vantagem comparativa nas circunstâncias atuais".
A inflação, que também apresentava "algum sinal de excesso de demanda, o que seria inevitavelmente desaquecido por ação do Banco Central, será agora pela ação da propagação da crise em curso".
Marcelo Neri faz a comparação: "Em época de inverno econômico rigoroso que teremos pela frente as reservas acumuladas durante o verão econômico de outrora garantem a sobrevivência nos tempos de urso".
O Brasil, que estava fora do padrão de excelência internacional pelas "ineficiências e gorduras localizadas apresentadas, se encaixa melhor no modelito imposto pela crise em curso", conclui.
No concurso do programa holandês, porém, embora a política brasileira tenha sido elogiada, especialmente o combate à desigualdade, os especialistas foram unânimes em dizer que o modelo vencedor no futuro continuará sendo o da economia dos Estados Unidos, reformulada e revigorada depois da crise.
TCU aponta desvios em convênios com MST
Evandro Éboli
DEU EM O GLOBO
DEU EM O GLOBO
Auditorias do Tribunal de Contas da União detectaram irregularidades em convênios entre o governo federal e entidades ligadas ao MST e apontam desvio de pelo menos R$20 milhões. Os auditores concluíram que não houve controle do dinheiro, que falta prestação de contas e que, em alguns casos, o dinheiro pagou projetos que não estavam previstos no contrato.
Páginas 3 a 5
Irrigação de irregularidades
TCU constata falta de controle e desvios em convênios com entidades ligadas ao MST
Auditorias do Tribunal de Contas da União (TCU) detectaram uma série de irregularidades em convênios celebrados entre o governo federal e entidades ligadas ao MST. Os auditores concluíram que não houve controle do dinheiro repassado por 15 ministérios e secretarias, que inexiste prestação de contas e que a verba foi desviada para finalidades diferentes das previstas nos contratos. A fiscalização do TCU envolveu 109 convênios firmados de 1998 a 2004, num montante de R$42,7 milhões repassados pelo Executivo. Mas, até hoje, os processos para reaver o dinheiro não foram concluídos. O tribunal estima que foram desviados cerca de R$20 milhões.
Segundo os auditores do TCU, mais da metade dos R$42,7 milhões (R$22,8 milhões) foi destinada para 63 convênios de órgãos do governo federal com a Associação Nacional de Cooperação Agrícola (Anca), ligada ao MST. No imóvel da entidade, em São Paulo, funcionava a Secretaria Nacional do MST, constatou o tribunal.
Em alguns convênios, o MST, que não tem CGC, aparece diretamente como o beneficiado, como numa parceria entre o Ministério da Cultura e a Anca, de 1998. "A definição do MST como gestor é devido a seu trabalho direto com a base social. Desde o início, já nas primeiras ocupações de terra, os sem-terra vêm criando símbolos de fortalecimento na luta, como a bandeira e o hino do MST", dizia o convênio, contestado pelo TCU.
Outro convênio, com o Ministério do Trabalho, destinava R$500 mil para capacitação de 1.500 trabalhadores rurais assentados, trabalho que seria feito em apenas 15 dias, em dezembro de 1998. "A descrição do objeto é imprecisa e as metas de execução são insuficientes, sem conter informações qualitativas e os resultados esperados e que cursos serão ministrados", concluíram os técnicos do TCU.
Parecer técnico é ignorado
O tribunal constatou ainda que a Anca, em 2005, tinha apenas oito funcionários e duas faxineiras, sem estrutura para cumprir os convênios. Para o TCU, a Anca e a Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil (Concrab) eram apenas repassadores de dinheiro para o MST. "Pode-se concluir que a Anca e a Concrab atuam muito mais como agências de captação de recursos para financiamento de atividades de interesse de pessoas e demais organizações vinculadas aos chamados movimentos sociais do que como agentes próprios de execução de ações relativas a políticas públicas descentralizadas".
Num convênio entre o Incra e a Concrab, de 2003, que previa um Plano de Desenvolvimento Agrário, foi ignorado parecer técnico de um servidor do próprio instituto. "Discordamos de financiar tal coisa", concluiu ele. Mesmo assim, ainda houve complementação de R$230 mil. O TCU considerou "grave irregularidade".
Num outro convênio, destinado oficialmente à Campanha Nacional de Documentação, o dinheiro foi usado para produção de material de divulgação, como cartilha, cartazes e vinhetas do MST e também um livro sobre "novas relações de gênero". Dividido em seis capítulos, entre os quais "Luta e gênero de classe" e "Uma revolução dentro da revolução", o livro foi considerado um despropósito pelo TCU.
A maior parte dos R$42,7 milhões foi repassada para as entidades entre 2003 e 2004, no governo Lula. Os principais financiadores foram o Incra, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) e o Ministério do Trabalho. O TCU conclui também que Anca e Concrab não tinham quadros especializados nas áreas de execução dos convênios com o governo.
Na última sexta-feira, o Ministério do Desenvolvimento Agrário, o principal repassador de recursos a entidades ligadas ao MST, negou haver vinculação entre as liberações e ocupações de terra.
Sem limites
Especial
Expedito Filho
DEU NA VEJA
Expedito Filho
DEU NA VEJA
Documentos provam que o delegado Protógenes Queirozbisbilhotou ilegalmente a vida de autoridades. Pior, ele dizia agir em nome do presidente Lula, cujo filho Fábio Luísteria sido, nas palavras do policial, "cooptado" peloex-banqueiro Daniel Dantas
A Operação Satiagraha, da Polícia Federal, conduzida pelo delegado Protógenes Queiroz, será lembrada como um sucesso por ter conseguido o feito inédito na história do combate à corrupção no Brasil de levar à condenação na Justiça Criminal um ex-banqueiro – no caso, Daniel Dantas, dono do grupo Opportunity. Mas a operação também ficará marcada para sempre por ter servido de fachada para o funcionamento de uma máquina ilegal de espionagem que, em ousadia e abrangência, também não tem paralelo na história brasileira. Protógenes, que durante um ano e meio comandou a Operação Satiagraha, está sendo investigado por tais abusos pela própria Polícia Federal. O inquérito em andamento tem como uma de suas principais fontes de evidências o conteúdo do computador apreendido por policiais na casa de Protógenes. Na semana passada, VEJA teve acesso à integra desse material. O conteúdo é estarrecedor e prova que o delegado centralizava o trabalho de uma imensa rede de espionagem que bisbilhotou secretamente desde a vida amorosa da ministra Dilma Rousseff até a antessala do presidente Lula, no Palácio do Planalto – passando pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e pelo governador José Serra, além de senadores e advogados.
Nos documentos encontrados na residência do delegado há relatórios que levantam suspeitas graves sobre as atividades de ministros do governo, fotos comprometedoras que foram usadas para intimidar autoridades e gravações ilegais de conversas de jornalistas – tudo produzido e guardado à margem da lei. O material clandestino – 63 fotografias, 932 arquivos de áudio, 26 arquivos de vídeo e 439 documentos em texto – foi apreendido em novembro do ano passado pela Polícia Federal e estava armazenado em um computador portátil e em um pen drive guardado no apartamento do delegado no Rio de Janeiro. Os policiais buscavam provas de ações ilegais da equipe de Protógenes, entre as quais o áudio da interceptação clandestina de uma conversa entre o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes, e o senador Demóstenes Torres. A existência do grampo foi revelada a VEJA em agosto do ano passado por um agente da Abin que participou da Operação Satiagraha como encarregado da transcrição de centenas de outras conversas captadas ilegalmente. O resultado final da investigação deve ser anunciado até maio, mas, pelo que já se encontrou nos arquivos pessoais de Protógenes, não resta mais sombra de dúvida sobre a extensão de suas ações ilícitas, cuja ousadia sem limite chegou à antessala do presidente Lula e a seu filho Fábio Luís.
A investigação da corregedoria da Polícia Federal reconstituiu parte dos bastidores da Satiagraha. O delegado Protógenes Queiroz foi encarregado pelo ex-diretor da arapongagem federal, a Abin, delegado Paulo Lacerda, de montar uma equipe para se dedicar exclusivamente às investigações sobre o banqueiro Daniel Dantas. Em maio de 2006, VEJA publicou uma reportagem revelando que o banqueiro havia montado, com a ajuda de espiões internacionais, um dossiê para constranger autoridades do governo, entre elas o presidente Lula e o próprio Lacerda – que cedeu "informalmente" espiões da agência para ajudar o delegado. Protógenes recrutava os espiões com o argumento patriótico de que eles estavam sendo convocados para uma "missão presidencial". A suposta ordem do presidente e o nome de Fábio Luís da Silva surgiram nos depoimentos dos arapongas. Um deles, Lúcio Fábio Godoy, contou aos policiais que ouvira de Protógenes que Lula tinha interesse na investigação porque "seu próprio filho teria sido cooptado por essa organização criminosa". Não se sabe com que autoridade o delegado Protógenes usou o nome do presidente Lula. A suposta "cooptação" do filho do presidente pela organização criminosa se deve a um fato bastante conhecido. Em 2004, a Brasil Telecom, empresa de telefonia então controlada por Dantas, contratou a Gamecorp, produtora de games do filho do presidente. Pelo contrato, Dantas dava 100.000 reais por mês a Fábio Luís.
Os depoimentos contidos nos nove volumes do inquérito comprovam de modo irretorquível que os arapongas da Abin participaram massivamente da Satiagraha e, pior, manusearam as conversas telefônicas interceptadas pela PF – o que é expressamente ilegal. O espião Jerônimo Jorge da Silva Araújo, por exemplo, contou ao delegado Amaro Vieira, responsável pelo inquérito que apura o vazamento da Satiagraha, que sua função na equipe consistia em degravar áudios da investigação. Ele trabalhava clandestinamente no quarto de um hotel de São Paulo e tinha acesso ilegal ao sistema Guardião, que organiza as gravações feitas pela PF e registra todos os usuários. Há um detalhe especialmente perturbador no depoimento do araponga. Diz Jerônimo: "Na base do hotel, eu acessava outro tipo de sistema, do qual não me recordo o nome, mas posso afirmar que era um sistema diferente do Guardião e que os áudios que eram acessados pareciam estar gravados no próprio computador que era utilizado para degravação". A afirmação do espião é grave: o único sistema utilizado oficialmente pela PF para acessar grampos é o Guardião. Por que recorrer a "outro sistema"? E por que recorrer a alguém da Abin para fazer isso? São perguntas que esperam respostas claras e inequívocas das autoridades.
Os arquivos de Protógenes mostram um especial interesse pelas atividades do ex-ministro José Dirceu. O delegado e seus arapongas apelidaram o petista de "Zeca Diabo" – nome de um matador de aluguel da primeira novela em cores do Brasil, O Bem Amado. Um dos documentos, arquivado sob o nome "Informações Zeca", relata que o ex-ministro-chefe da Casa Civil "embarcou ontem, 17/04, para o Panamá. De lá, segue um roteiro internacional de negócios até 10 de maio". Em outros trechos, os espiões escrevem sobre possíveis negócios do ex-ministro e supostos encontros de Dirceu com deputados envolvidos no escândalo do mensalão. O petista já havia reclamado ao presidente Lula que estava sendo monitorado ilegalmente. Em vão. No ano passado, o escritório dele foi arrombado. Os invasores só levaram um computador e documentos. Até a petista Dilma Rousseff, chefe da Casa Civil e pré-candidata à Presidência da República, foi alvo dos espiões. Em um documento, eles descrevem em termos grosseiros supostas relações amorosas da ministra, cujo parceiro eles identificam. Como e por que essas barbaridades interessaram ao delegado Protógenes a ponto de ele as guardar em seu computador é algo que o inquérito da PF sobre ele deverá esclarecer. A existência em si desses registros na casa de um servidor é um escândalo administrativo de grandes proporções. Quando se acrescem os métodos clandestinos utilizados para produzi-los, a máquina de espionagem do Dr. Protógenes começa a tomar ares mais tenebrosos.
Um desses documentos está arquivado sob a rubrica "Confidencial e Privilegiado", com data de 11 de janeiro de 2005. Ali, apresenta-se o resultado de uma detalhada investigação sobre a relação do atual ministro Roberto Mangabeira Unger com o Opportunity. Mangabeira nunca foi investigado formalmente no decorrer da Operação Satiagraha, e sua proximidade com Daniel Dantas é notória há anos. Quando Lula o convidou para assumir a recém-criada Secretaria de Assuntos Estratégicos, o professor foi obrigado a comprovar que não mantinha mais relações contratuais com a turma de Daniel Dantas. Mesmo assim, a nomeação de Mangabeira causou desconforto em setores do PT que sempre combateram os métodos criminosos do ex-banqueiro – situação perfeita para acionar a mente paranoica do delegado Protógenes. Como o relatório final da Operação Satiagraha demonstrou, o raciocínio bicolor do delegado não comporta meios-termos nem nuances. Se Mangabeira já esteve no bolso de Daniel Dantas, ele fatalmente entrou no governo para servir ao banqueiro. Simples assim. Embora não haja nenhuma evidência de que Mangabeira tenha feito qualquer tipo de gestão favorável ao banqueiro, Protógenes empenhou-se em investigar clandestinamente o professor.
Num documento intitulado "Caso Mangabeira", há cópia de contratos assinados entre o professor e o Opportunity, assim como planilhas de pagamentos feitos pelo banqueiro a Mangabeira, entre os anos de 2002 e 2005, enquanto o professor trabalhava para Dantas. Mas Protógenes foi além. Citando "evidências colhidas pela BT (Brasil Telecom)", ele – ou quem quer que tenha produzido o relatório – afirma que Mangabeira viajou a Nova York no dia 29 de janeiro de 2004 para se encontrar com os arapongas da Kroll, agência de investigação contratada pelo banqueiro para espionar seus adversários. Em 2004, a Polícia Federal desmontou o esquema de espionagem criado pela Kroll contra os inimigos de Dantas – entre eles, o ex-ministro Luiz Gushiken. Mangabeira, frise-se, nunca foi acusado de cometer nenhuma ilegalidade. Não se sabe como o delegado obteve as informações e os documentos sobre o ministro, mas, uma vez de posse deles, Mangabeira foi promovido a "político associado" do grupo Opportunity num organograma secreto, preparado pelos arapongas. O ministro não é o único "político associado". Ele está ao lado do nome dos senadores Heráclito Fortes, do DEM do Piauí, e ACM Júnior, do DEM da Bahia. Heráclito é amigo do empresário Carlos Rodenburg, sócio de Dantas, e atua como defensor do grupo Opportunity no Congresso. A inclusão do nome de ACM Júnior, no entanto, é misteriosa. Não se sabe qual seria a relação dele com Dantas.
O ápice da metodologia de trabalho de Protógenes está registrado num relatório da PF classificado como "confidencial", com data de 12 de junho do ano passado. Nele, o delegado diz que tem sido "alvo de constantes vigilâncias". A única "vigilância" que Protógenes cita no documento teria acontecido no restaurante Original Shundi, em Brasília. Na noite anterior à elaboração do documento, o delegado diz que jantava no restaurante quando o advogado Nélio Machado, que trabalha para Dantas, se sentou numa mesa próxima, acompanhado de um grupo de "pessoas não identificadas". Narra o relatório: "(Os advogados) passaram a se comportar em (sic) atitudes suspeitas, o que por dever de ofício obrigou o DPF Queiroz a sacar o celular e fazer o registro fotográfico das pessoas que ali se encontravam" – o que, de fato, Protógenes fez. As fotos estavam no computador do delegado e mostram o advogado e seus amigos... jantando. Muito suspeito. Durante meses, o delegado Protógenes espalhou que o advogado Nélio Machado estava acompanhado de assessores do ministro Gilmar Mendes, em uma clara insinuação de que haveria uma relação promíscua entre o presidente do STF e a defesa do banqueiro. Ele dizia que tinha fotos que provavam o encontro. Nunca as mostrou. Agora a razão disso ficou clara. Quando a Polícia Federal identificou as pessoas que são vistas nas imagens, o blefe de Protógenes apareceu em toda a sua pomposa falsidade. Foi mais uma tentativa criminosa do delegado de atingir o presidente do STF, portanto, chefe de um dos poderes independentes da República.
O material apreendido pela PF está dividido em duas partes. Uma delas é formada por relatórios policiais, gravações telefônicas e ambientais, vídeos, planilhas e transcrições de conversas interceptadas. São peças do inquérito, comandado por Protógenes, que investigou Daniel Dantas, obtidas pelo delegado com base em diligências autorizadas pela Justiça. É estranho que Protógenes tenha aberto um baú em casa para guardar documentos sigilosos que deveriam integrar apenas o inquérito oficial. A segunda parte do material, porém, é bem mais que isso. Ela reúne gravações telefônicas de conversas entre membros da comunidade de inteligência e dirigentes da Abin, fotografias, imagens de pessoas que não eram investigadas na operação e informes de arapongas sobre a vida íntima e profissional de autoridades e ex-autoridades. A polícia ainda não conseguiu abrir alguns documentos apreendidos com a equipe do delegado e que estão protegidos por senhas de acesso, com codinomes como "Tucano", "FHC" e "Serra". Os arquivos de Protógenes Queiroz continham até um manual detalhado sobre como operar um equipamento clandestino de interceptação de telefonemas e mensagens de celular. Interceptações autorizadas pela Justiça são feitas pelas companhias telefônicas e seu conteúdo é armazenado em computadores da Polícia Federal. Por que será que Protógenes Queiroz guardava um manual assim em casa?
Uma pista pode ser encontrada no próprio baú digital do delegado. Analisados em seu conjunto, os documentos apreendidos mostram que gravações ilegais eram uma de suas principais ferramentas de investigação. Uma das investidas mais perversas foi usada pela turma do delegado contra a jornalista Andréa Michael, da Folha de S.Paulo. Andrea é autora de uma reportagem, publicada em abril passado, que noticiou a investigação da PF sobre Daniel Dantas. A reportagem levou os advogados do banqueiro a fazer uma varredura na Justiça Federal de São Paulo em busca de detalhes da investigação e despertou a ira da turma do delegado Protógenes. No pen drive do delegado foi encontrado um vídeo, de 7 minutos e 39 segundos, no qual a jornalista aparece conversando com um emissário dele. Não há nada que a desabone, o que não impediu Protógenes e sua equipe de vinculá-la no inquérito à "organização criminosa" e pedir sua prisão preventiva. O vídeo é uma prova de como a equipe do delegado utilizou expedientes ilegais e clandestinos para investigar pessoas que não eram alvo de sua operação. É a constatação também de que a ausência de provas não foi obstáculo para incluir essas mesmas pessoas no inquérito.
Há uma vertente importante que deve ser apurada sobre a famosa Satiagraha – o consórcio formado entre a polícia, o Ministério Público e a Justiça. As ilegalidades da operação podem acabar livrando da cadeia um vilão do calibre de Daniel Dantas. Por causa disso, o juiz do caso, Fausto de Sanctis, está sob investigação da corregedoria da Justiça Federal. Já o Ministério Público, desde que foi regulamentado, em 1988, não apresentava uma atuação tão incomum. Em São Paulo, procuradores, em vez de apurar os abusos denunciados, tentaram usar todos os instrumentos legais para manter intacto o conteúdo dos computadores do delegado. Os procuradores chegaram a bater de frente com o juiz Ali Mazloum, da 7ª Vara Federal, que já informou que pretende solicitar vários procedimentos sobre as ações clandestinas do delegado Protógenes – e conta para isso com o apoio do Conselho Nacional de Justiça. O deputado Marcelo Itagiba, presidente da CPI dos Grampos, disse que ainda não examinou os documentos, que chegaram à comissão apenas na semana passada. "Mas tudo parece muito grave e, se confirmado, vou pedir a prorrogação dos trabalhos", garantiu o parlamentar ao ser informado do conteúdo. O delegado Protógenes não foi encontrado. Um dos arquivos de seu computador mostra que ele estava se dedicando a escrever uma autobiografia. Título: "Protógenes, a Lenda".
Com reportagem de Alexandre Oltramari e Diego Escosteguy
O QUE PENSA A MÍDIA
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