segunda-feira, 20 de abril de 2009

PENSAMENTO DO DIA

“Ao nos aproximarmos da Cúpula das Américas, nosso continente se depara com uma clara escolha. Podemos superar nossos desafios compartilhados com um sentido de objetivo comum, ou podemos ficar atolados em velhos debates do passado. Para o bem de nosso povo, precisamos escolher o futuro.”

(Barack Obama, presidente dos Estados Unidos, em artigo em O Globo de 16/4/2009)

''Doutrina Obama'' inicia nova era nas relações com América Latina

Patrícia Campos Mello
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO


Estratégia de diálogo aberto até com líderes antiamericanos conquista países que viam EUA com suspeita

A estreia da "Doutrina Obama" na América Latina foi festejada como "uma nova era" no relacionamento entre os EUA e o resto do hemisfério. O presidente americano, Barack Obama, deixou a Cúpula das Américas em Trinidad e Tobago elogiado por quase todos os líderes da esquerda, que viam com muitas reservas seu predecessor, George W. Bush. O novo líder americano comemorou o resultado de sua estratégia de se aproximar de países adversários. "Nos últimos dias, vimos sinais positivos na natureza das relações entre os EUA, Cuba e Venezuela", disse. Segundo ele, a neutralização das tensões na região fortalece os EUA. "Fica muito mais fácil para países amigos colaborarem conosco porque seus vizinhos e populações nos veem como uma força do bem ou, pelo menos, não como uma força do mal."

Nos EUA, porém, a aproximação de Obama e Chávez causou ruídos. Ontem o senador republicano John Ensign descreveu como "irresponsável" o presidente ser visto sorrindo ao lado de "um dos líderes mais antiamericanos do mundo". Em resposta, Obama reconheceu discordar de Chávez sobre política econômica e externa e sobre a inflamada retórica antiamericana do venezuelano, mas defendeu a nova "relação mais construtiva" com Caracas. "Venezuela é um país cujo orçamento de Defesa é provavelmente ínfimo se comparado ao dos EUA... é improvável que apertar a mão ou ter uma conversa educada com Chávez seja uma ameaça aos interesses estratégicos dos EUA", disse.

Obama defendeu sua doutrina de conversar com nações adversárias, lançada durante a campanha, quando o então candidato declarou que se aproximaria de Irã, Síria, Cuba e Venezuela. "Não concordo com todos os líderes em todas as questões, mas demonstramos aqui que é possível avançar quando há disposição de esquecer discussões antigas e velhas ideologias que têm distorcido o debate neste hemisfério."

A mensagem ecoou. No sábado, o presidente venezuelano, Hugo Chávez, disse que Obama era "inteligente" e o abordou afirmando "quero ser seu amigo". Manuel Rosales, presidente de Honduras, país-membro da Alternativa Bolivariana para as Américas, afirmou: "A chegada de Obama significa uma nova era no relacionamento entre os EUA e a América Latina."

Alguns, porém, continuaram reticentes. Em reunião da Unasul, o presidente boliviano, Evo Morales, afirmou esperar que Obama "repudiasse" uma suposta tentativa de golpe que teria sofrido com apoio americano. Obama respondeu enfaticamente ao apelo: "Condeno qualquer tentativa de derrubar governos eleitos democrativamente. Essa não é uma política de nosso governo."

O líder americano também admitiu que apertos de mão e sorrisos para foto não serão suficientes . "O teste para todos nós não são simplesmente as palavras, mas os atos." Na Europa, por exemplo, Obama foi recebido como estrela, mas saiu de mãos vazias, sem conseguir um aumento significativo de tropas da Otan para o Afeganistão. "Na Europa, a política deles dificulta que líderes apoiem o envio de mais soldados. Isso não mudará por eu ser popular lá ou porque os líderes acham que eu tenho respeito por eles."

Obama também salientou que pretende mudar a política americana para a América Latina. "Se nossa única interação com esses países for de combate a drogas ou militar, nós não vamos aumentar nossa influência na região", disse. "Reconhecemos que ações militares são apenas um tipo de poder, e nós precisamos usar o poder diplomático e de ajuda ao desenvolvimento para que as pessoas vejam melhoras concretas em suas vidas em consequência da política externa americana."

Ritmo do PAC não reflete discurso de Lula

Renée Pereira
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Gasto foi de apenas 28% em 2 anos

O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) gastou apenas 28% do orçamento desde que foi criado, há dois anos. E, para cumprir o cronograma de inauguração de obras até 2010, ano de eleições presidenciais, os ministérios terão de gastar em um ano mais de R$ 37 bilhões, o dobro do que foi executado em 2007 e 2008, segundo a Confederação Nacional da Indústria (CNI). O desempenho não reflete o discurso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que defende a ampliação do investimento público para enfrentar a crise mundial.

Ritmo do PAC não reflete o discurso de Lula

Presidente quer investimento público contra crise, mas até agora seu governo só gastou 28% do que podia

O desempenho do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) está longe de refletir o discurso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em defesa da ampliação dos investimentos públicos para enfrentar a crise mundial. Nos dois primeiros anos de existência do PAC, o governo federal conseguiu gastar apenas 28% do orçamento destinado aos projetos. Agora, se quiserem cumprir o cronograma previsto e inaugurar as obras até 2010, ano da eleição do substituto de Lula, os ministérios terão de gastar mais de R$ 37 bilhões em apenas um ano, o dobro da soma das execuções de 2007 e 2008, segundo cálculos da Confederação Nacional da Indústria (CNI).

Os primeiros números do ano, no entanto, não apontam para este caminho. Até 31 de março, o governo havia gasto apenas 4% dos recursos disponíveis. Se forem excluídos os valores de restos a pagar (empenhados em anos anteriores, mas não desembolsados), a execução cai perigosamente para 0,8% do orçamento atual. Nesse ritmo, especialistas calculam que apenas metade das obras do PAC, que dependem de recursos do governo, será concluída até o ano que vem.

"O que podemos concluir é que há muita propaganda e nenhuma gestão para acelerar os investimentos", afirma o professor de avaliação de empresas do Ibmec São Paulo, Eduardo Padilha, especialista em infraestrutura.

A crítica é que, apesar de haver recursos disponíveis para os investimentos, o dinheiro não chega na ponta final. Exemplo disso é que uma prática que deveria ser exceção acabou virando regra no Brasil. Trata-se dos restos a pagar.

Segundo os dados da CNI, o País iniciou o ano com mais de R$ 18 bilhões referentes a recursos de orçamentos passados que não foram pagos até hoje. No início de 2008, esse número estava em R$ 12,8 bilhões. "O crescimento dessa conta é um reflexo da morosidade das obras no Brasil, já que é a última etapa da execução orçamentária", diz o especialista em contas públicas, Raul Velloso.

Ele explica que o motivo de tanta lentidão está na estrutura ultrapassada da gestão pública. Não faltam problemas para reduzir a velocidade das obras. Entre elas estão as dificuldades no licenciamento ambiental dos projetos e as paralisações do Tribunal de Contas da União (TCU) por irregularidades no processo.

No último relatório do órgão, de 2008, havia 11 empreendimentos do PAC com recomendação de paralisação das obras e 10 com retenção cautelar.

Há ainda questões como projetos executivos mal elaborados, que precisam de revisão no meio do caminho, além de falta de mão de obra qualificada para conduzir os projetos com eficiência. A soma de todos esses entraves resulta na morosidade da execução orçamentária, afirma o vice-presidente da CNI, José de Freitas Mascarenhas.

O efeito disso é que alguns projetos ficam anos em obras por causa da descontinuidade do processo. O cronograma da avenida perimetral da margem direita do Porto de Santos, essencial para melhorar a operação no maior complexo portuário da América Latina, era para estar pronto em junho de 2008. Depois de tantas paralisações e revisões, a expectativa agora é concluir a construção em dezembro deste ano.

Também no setor portuário, o programa nacional de dragagem para elevar o aprofundamento dos canais brasileiros está com o cronograma original bastante comprometido e dificilmente será cumprido.

Vários portos não tinham o projeto básico elaborado nem licença ambiental para o lançamento do edital de licitação. Os serviços de dragagem, que vão custar R$ 1,5 bilhão, estavam previstos para terminar entre o último trimestre deste ano e o primeiro semestre de 2010. Mas alguns ainda nem tem o edital publicado.

No setor rodoviário, obras em dois trechos da BR-101, no Nordeste, estavam com suspeitas de irregularidades. Até o último balanço do PAC, o problema não havia sido solucionado. Segundo especialistas, esse tipo de pendência acaba desviando o foco dos ministérios no esforço de melhorar a infraestrutura do País. Mas muitas vezes o problema está na qualidade dos projetos, que dão margens a erros.

"O que o Brasil precisa é de projetos de engenharia de qualidade, que faça uma definição virtual do empreendimento, que permita um planejamento adequado para a construção", destaca o presidente do Sindicato Nacional das Empresas de Arquitetura e Engenharia (Sinaenco), José Roberto Bernasconi. Na avaliação dele, hoje o PAC apenas anda onde há capacidade organizada para gastar. "Sem isso, o gasto se transforma em desperdício."

A opinião é compartilhada pelo presidente do Sindicato Nacional da Indústria da Construção Pesada (Sinicon), Luiz Fernando Santos Reis. Para ele, se o governo quer usar os investimentos de infraestrutura para combater os efeitos da crise, será necessário mudar a máquina pública.

Mas isso, reconhecem os especialistas, não é algo que se consegue fazer do dia para o outro. "Para melhorar a gestão, o governo precisa fazer uma reengenharia das equipes e novos entendimentos com TCU e Ministério Público", completa o Mascarenhas, do CNI.

Estado do Rio e Espírito Santo têm 2ª maior queda na arrecadação federal

Martha Beck
DEU EM O GLOBO

Segundo Receita, isso se deve ao impacto da crise nas grandes empresas


BRASÍLIA. O Rio de Janeiro é um dos estados que mais têm refletido os efeitos da crise financeira sobre a arrecadação tributária federal. Um levantamento feito nas dez regiões fiscais do país mostra que a sétima região, que abrange Rio e Espírito Santo, registra a segunda maior queda no recolhimento de tributos federais no primeiro trimestre de 2009: 14,57% em termos reais (já descontada a inflação), em relação ao mesmo período no ano passado. Essa queda só fica atrás da ocorrida na sexta região, que representa Minas Gerais, com 14,77%. Em termos nominais, a perda de receita de Rio e Espírito Santo foi de R$4,384 bilhões, tendo somado R$25,706 bilhões entre janeiro e março.

Segundo a superintendente da Receita Federal na sétima região, Eliana Polo, o Rio é um estado que concentra grandes empresas de setores fortemente afetados pela crise financeira global. Entre estas estão Petrobras, PSA Peugeot Citroën, Vale e Companhia Siderúrgica Nacional (CSN). - São empresas muito grandes, e qualquer impacto em seus resultados afeta a arrecadação - explicou Eliana.

Imposto de Importação, por outro lado, sobe 17,56%

De acordo com dados da Receita, os segmentos da economia que mais deixaram de recolher tributos este ano, em comparação ao primeiro trimestre de 2008, foram: o de combustíveis, que deixou de recolher 38%; o de fabricação de veículos (42%); o de extração de minerais metálicos (49,9%); e o de metalurgia (17,91%). Os tributos que mais estão caindo são o Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ), que reflete a lucratividade das empresas, o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), o PIS e a Cofins.

A queda no faturamento do setor produtivo ocorrida no final do ano passado em função da crise está aparecendo agora na arrecadação, pois as empresas prestam contas desses ganhos à Receita posteriormente. Segundo dados da consultoria Economática, houve uma redução de 50,6% no lucro líquido das 85 maiores empresas não financeiras com ações negociadas na Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa).

Com isso, na sétima região, o recolhimento do IRPJ, por exemplo, caiu 8,45% no primeiro trimestre em termos nominais, ficando em R$5 bilhões até março. A Cofins, por sua vez, caiu 26,25%, acumulando R$4,7 bilhões.

O IPI teve queda de 15,8% na mesma comparação, sendo que, no caso do setor automotivo - para o qual o governo reduziu a alíquota do imposto -, a perda de arrecadação foi de 81,48%. A receita com IPI no segmento ficou em R$18,9 milhões. De acordo com a superintendência, isso corresponde a apenas 51,5% do montante esperado para o período.

Já o Imposto de Importação fez o caminho oposto e subiu 17,56% no primeiro trimestre. A superintendente lembrou que o Rio é uma das principais portas de entrada de mercadorias no país e, por isso, reflete o aumento das compras de empresas brasileiras no exterior.

- O Porto de Itaguaí, por exemplo, é muito importante no comércio de minério - disse Eliana.

A queda nas receitas federais em 2009 também tem sido fortemente influenciada por compensações tributárias feitas pela Petrobras. A estatal compensou quase R$4 bilhões em PIS/Cofins e Cide (que incide sobre os combustíveis) somente este ano. Essas operações ocorrem quando uma empresa recolhe mais que o devido num período e depois ganha um crédito como forma de compensação.

Presidente do BC critica ‘otimismo exagerado’

Lino Rodrigues*
DEU EM O GLOBO

Meirelles afirma que crise global não foi resolvida e pode levar a novas decepções

Ao fim de uma semana na qual o presidente Lula e o ministro da Fazenda, Guido Mantega, adotaram um tom otimista para a crise financeira, o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, disse ontem que não se deve ceder ao que chamou de “otimismo exagerado”, diante dos sinais de recuperação de alguns setores da economia. Para o presidente do BC, não se pode confundir sinais de melhora com a superação do problema. Ao participar de um fórum que reuniu na Bahia empresários, governadores e parlamentares, Meirelles chegou a alertar: "Vamos devagar. Otimismo exagerado pode levar a novas decepções.” Um sinal de cautela é a queda da arrecadação de tributos federais, na qual o Rio teve um dos piores resultados no primeiro trimestre.

Sem "otimismo exagerado"

A qualquer sinal negativo, desespero pode voltar ao mercado, diz presidente do BC

Opresidente do Banco Central (BC), Henrique Meirelles, afirmou ontem que a crise global não foi resolvida e que não se deve ceder ao que chamou de "otimismo exagerado", diante de sinais de recuperação de alguns setores da economia. Segundo ele, ao primeiro sinal negativo, "todo mundo, de novo, entrará em desespero".

- Não há dúvida de que há sinais importantes de recuperação da economia, e é justo comemorá-los - afirmou Meirelles. - O que não se pode é confundir sinais de melhora com a superação do problema. Já dizem que o Brasil é o porto seguro entre os emergentes. Vamos devagar... O otimismo exagerado pode levar a novas decepções.

A afirmação foi feita durante o 8º Fórum Empresarial, promovido pelo Grupo de Líderes Empresariais (Lide) em Comandatuba, na Bahia. Além do presidente do BC, o evento, que acaba hoje, reúne empresários de vários setores, governadores e parlamentares.

- Temos que nos acautelar, porque notícias negativas podem aparecer - afirmou Meirelles.

Ele deu como exemplo os dados do PIB (soma de bens e serviços produzidos no país) no primeiro trimestre, que só devem ser divulgados em junho - e podem chegar já num momento de recuperação.

- Ou seja, esse resultado, ainda que se refira a uma fase já superada, pode frustrar o mercado, se entrarmos numa onda de euforia otimista - disse Meirelles, acrescentando que não se pode "cair na ilusão de que a maior crise desde 1929" será resolvida em pouco tempo.

Meirelles pede redução de "spreads"

Pressionado por empresários presentes e até pelo senador Aloizio Mercadante (PT-SP) para que atue no sentido de reduzir a taxa de juros, Meirelles respondeu com uma série de números sobre a economia brasileira, que segundo ele, é robusta e levará o Brasil a sair da crise antes de outros países e mais forte, justamente porque resistiu às pressões de curto prazo.

- Estamos comprometidos com a estabilidade. Esta é uma das razões de os investimentos estarem voltando. Vamos sair da crise sem criar problemas, como o aumento da inflação - afirmou.

Meirelles voltou a reclamar dos spreads (diferença entre as taxas captadas pelos bancos e as cobradas nos empréstimos ao consumidor) elevados praticados pelos bancos. Segundo ele, o BC já adotou uma série de medidas, como liberação do compulsório e ampliação das garantias de crédito para pequenas e médias instituições, para derrubar a taxa, mas ela permanece alta.

- Vamos continuar olhando. Se houver necessidade, vamos tomar outras medidas, porque o spread ainda está muito alto e tem de cair muito mais - disse Meirelles.

Também presente ao evento, o presidente da Federação Brasileira dos Bancos (Febraban), Fabio Barbosa, contestou Meirelles, afirmando que os spreads bancários só cairão quando o governo atacar as causas que elevam as taxas, como o imposto que incide sobre operações financeiras, o compulsório, o crédito direcionado, a demora na aprovação do cadastro positivo e, mais recentemente, o aumento da inadimplência.

- Não se trata simplesmente de buscar a redução pela redução, mas atacar as causas - disse Barbosa.

(*) O repórter viajou a convite da organização do evento

Tom diferente do restante do governo

DEU EM O GLOBO

Mantega e Lula adotam discurso mais otimista sobre o pior da crise financeira já ter passado

BRASÍLIA. A cautela que marcou o discurso do presidente do Banco Central (BC), Henrique Meirelles, ontem, em Comandatuba, contrasta com a euforia do restante do governo. Não é de hoje que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o ministro da Fazenda, Guido Mantega, procuram passar um tom mais otimista que o da autoridade monetária quando o assunto é a crise internacional. Sobretudo nas últimas semanas, quando o governo tomou diversas medidas voltadas a estimular o setor produtivo, como reduções do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) de veículos, materiais de construção e eletrodomésticos.

A equipe econômica e o núcleo político do governo se esforçam para mostrar que a recuperação econômica começou em março e que, daqui para frente, tende a ganhar mais força. No último trimestre de 2008, o Produto Interno Bruto (PIB, soma de bens e serviços produzidos no país) encolheu 3,6%, e estima-se que nos três primeiros meses de 2009 a economia também terá registrado retração.

Ao comentar os resultados à época, Lula - que logo após a explosão da crise classificou a turbulência de "marolinha" - afirmou:

- O que aconteceu com o PIB brasileiro já era esperado pela equipe econômica no primeiro trimestre (sic, na verdade no último trimestre de 2008). Tínhamos consciência de que, em função do que aconteceu a partir de outubro, teríamos o primeiro trimestre fraco e temos consciência de que é possível dar a volta por cima e começar, a partir de março, a recuperação em várias áreas da atividade econômica.

Na semana passada, Lula afirmou ainda:

- O Brasil vive realmente um momento privilegiado de estabilidade e credibilidade política. E aqui não tem nenhuma venda barata de otimismo.

A diferença de tom entre o BC e o restante da equipe econômica é clara quando se olha para as previsões de crescimento para 2009. Enquanto Mantega e equipe calculam uma expansão de 2%, que é a projeção oficial do governo, a autoridade monetária enxerga quase a metade: 1,2%. O BC está mais inclinado a considerar que a recuperação efetiva da economia só ocorrerá no segundo semestre.

Para o ministro da Fazenda, porém, o momento mais agudo das turbulências já ficou para trás. Ele aposta que a tendência é a economia acelerar daqui em diante. Na semana passada, por exemplo, Mantega defendeu:

- Posso dizer que acredito que o fundo do poço já passou no Brasil. Não quer dizer que a crise já passou, mas que a fase mais aguda foi deixada para trás.

PAC, gerenciamento zero

Sérgio Guerra
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


O PAC é mais uma prova da fraqueza gerencial do governo Lula. Em 2 anos, o desempenho é sofrível: 62% dos projetos estão atrasados

O PROGRAMA de Aceleração do Crescimento, carro-chefe dos investimentos da União em infraestrutura, é mais uma prova da fraqueza gerencial do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

O PAC, com suas várias iniciativas vindas do governo anterior e adaptadas sob nova sigla pelo Palácio do Planalto, completou dois anos com desempenho sofrível: 62% dos projetos estão atrasados. Até dezembro passado, R$ 1,9 bilhão em verbas previstas pelo programa nem sequer foi empenhado. Apesar dos alegados percalços burocráticos, o resultado ruim deve-se mesmo ao péssimo gerenciamento.

A gestão Lula tenta usar a mesma abordagem de programas anteriores, mas com piores resultados.

O pico de investimentos públicos federais deu-se na era Fernando Henrique Cardoso, com 1,12% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2001. Na fase Lula, foi 0,97% em 2007. Hoje, a expansão dos improdutivos gastos públicos federais continua concentrada nas despesas correntes, e não nos investimentos.

Em 1996, o governo do PSDB adotou a prática de implantar projetos de alcance estratégico, e o presidente Fernando Henrique optou por enfrentar o desafio de alcançar suas metas com o auxílio da máquina pública.

Para tanto, lançou mão de métodos avançados de gerenciamento de projetos e sistemas de informação em tempo real. Os programas Brasil em Ação (1996-99) e Avança Brasil (2000-02) foram implantados sob essa inspiração moderna.

Para assinalar alguns, lembramos dos aeroportos e sistemas de saneamento para desenvolver o turismo no Nordeste (Prodetur), o gasoduto Bolívia-Brasil (Gasbol), a interligação Norte-Sul dos sistemas elétricos, a conclusão da hidrelétrica de Xingó, os portos de Suape e Pecém, o porto de Sepetiba (concluído 60 dias antes do cronograma), a hidrovia do rio Madeira, a Ferronorte, a linha de transmissão para o oeste do Pará, a duplicação das rodovias Fernão Dias (São Paulo-Belo Horizonte) e BR 101 (trecho São Paulo-Curitiba-Florianópolis), o Rodoanel de São Paulo (trecho oeste) e tantos outros. Todos realizados dentro dos prazos estabelecidos.

Onde estão as diferenças? Os 42 projetos do Brasil em Ação e os 50 projetos do Avança Brasil foram selecionados tendo por base o planejamento territorial do país e as políticas públicas de maior capacidade de transformação da nossa realidade.

O PAC, por sua vez, com seus 2.000 projetos, não expressa uma visão estratégica. É apenas uma coleção de obras.

Projetos capazes de acelerar o crescimento são aqueles de efeito multiplicador do investimento produtivo privado e nos quais cada real de investimento público induz muitos outros reais de investimento privado. Esse foi um dos critérios de seleção de projetos promotores do desenvolvimento nos dois governos FHC.

O Programa de Desenvolvimento do Turismo no Nordeste (Prodetur) é um exemplo dentre vários. Os novos aeroportos, o saneamento básico e a recuperação de sítios históricos ou ambientais no litoral do Nordeste provocaram e continuam provocando inúmeros investimentos privados de micro a macroempreendedores. A oferta de gás natural no Sul e Sudeste (Gasbol) teve igual efeito nos investimentos industriais e de energia.

Implantar grandes projetos no setor público não é tarefa fácil, pois depende da superação de barreiras ambientais, burocráticas, institucionais, políticas etc. Por isso, exigem grande capacidade de gerenciamento.

Os métodos de trabalho e o desempenho dos gerentes e suas equipes devem romper com a tradição burocrática da administração pública. Os alvos desejados requerem disposição para inovar: seleção rigorosa dos gerentes de projetos com delegação de mais poder a eles, responsabilização da linha gerencial de cada projeto (ministro, secretário ou presidente de entidades públicas e gerente), decisões em tempo real com informações de qualidade, vinculação do fluxo de recursos à execução física, acionamento rápido e monitorado das decisões de escalões superiores para superar obstáculos, estímulo à cobrança de resultados pela sociedade.

Nenhum ministro consegue cobrar resultados e, sobretudo, responsabilizar outro ministro pela falta de resultados. Nesse sentido, a divulgação de gastos não é a melhor forma de informar a sociedade. A avaliação fundamental é a da execução física: o que vem sendo realizado de concreto com o dinheiro público gasto.

A capacidade de gerenciamento é de longe o fator mais importante. Os projetos estratégicos devem merecer uma atenção especial em todos os níveis, inclusive do presidente da República. Nem que seja apenas entre um palanque e outro.

Severino Sérgio Estelita Guerra, 61, economista, é senador da República pelo PSDB-PE e presidente nacional do PSDB.

A maior aliança do Ocidente

Fernando Rodrigues
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


BRASÍLIA - Três fatores devem ser considerados a respeito da candidatura oficial do governo para suceder Lula em 2010: 1) o fim da verticalização; 2) Aécio Neves em conflito com José Serra e 3) os efeitos da crise econômica sobre a popularidade do presidente.

Em 2002 e em 2006, vigorou o sistema conhecido como verticalização. Os partidos com candidato a presidente ou apoiando algum concorrente ao Planalto só podiam, nos Estados, fazer alianças iguais à do plano federal. Outra opção seria ficar sozinho nas disputas estaduais. Agora, vale tudo.

A verticalização acabou. Era uma ótima desculpa para partidos governistas enrolarem o Planalto. Apesar de ocupar um ministério, o político dizia ao presidente de turno: "Sinto muito, mas não posso fazer coligação federal porque fico engessado no meu Estado". Agora, esse argumento não cola mais.

Além do PT, estão na Esplanada lulista PC do B, PDT, PMDB, PP, PR, PRB, PSB, PTB e PV. Como esses partidos convencerão Lula a deixá-los com os cargos de ministro sem dar o tempo de TV para Dilma Rousseff fazer campanha?

Política não se faz apenas com régua e compasso, mas são reais as chances de Dilma formar uma das maiores alianças do Ocidente, como no slogan da velha Arena.

Esses cerca de 70% do tempo de TV para a candidata de Lula tornam ainda mais dramática a situação de José Serra. Se o tucano paulista for o candidato e não convencer Aécio Neves a apoiá-lo, Minas Gerais vira terra de ninguém. Como o mineiro tem dito que não pode ser vice "numa chapa que vai perder", o PSDB tem um pepino enorme nas mãos.

Por fim, os efeitos da crise econômica podem limar parte da popularidade de Lula. Por enquanto, tem sido pequena a queda. Mas ninguém sabe como será daqui a um ano. Essa é a possível janela para Serra -algo para lá de incerto.

O espírito da Constituição

Almir Pazzianotto Pinto
DEU NO CORREIO BRAZILIENSE
Ex-ministro do Trabalho e ex-presidente do Tribunal Superior do Trabalho, aposentado


Carlos de Montesquieu escreveu, em 1784, revolucionária obra destinada a investigar o espírito das leis. “Ao deixar o colégio” — registrou o notável filósofo — “colocaram-me nas mãos livros de direito; tratei de investigar-lhes o espírito”.

Na linguagem jurídico-político, dá-se o nome de Constituição à lei à qual se submetem todas as demais leis. Nesse sentido, pode ser definida como o conjunto de regras colocado no ápice do sistema normativo.

O Brasil vive sob a oitava Constituição, se como tal for considerada a Emenda nº 1 à Constituição de 1967. Ou, então, sob a sétima, diferença pouco importante, pois, sétima ou oitava, são muitas para 184 anos de vida independente, o que nos dá, em média, uma para cada período de 25 anos.
A Constituição Imperial, outorgada por D. Pedro I em 25 de março de 1824, era impregnada de espírito monárquico. Consolidou a unidade nacional, mantendo as províncias administradas por presidentes de livre escolha do imperador. Chefe supremo da nação e investido do Poder Moderador, a ele incumbia o dever de velar pela manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos demais poderes.

A Proclamação da República exigiu nova Constituição, caracterizada por espírito republicano. Segundo Aliomar Baleeiro, “o povo cansara-se da monarquia, cuja modéstia espartana não incutia nos espíritos a mística e o esplendor dos tronos europeus”. Adotou-se, então, o regime presidencialista e a República Federativa, com a transformação das províncias em estados dirigidos por constituições próprias, respeitados os princípios regentes da União.

A Revolução de 30 pôs abaixo a Constituição de 1891. A rigor, não havia motivos para fazê-lo. Desde então, o Brasil passou a viver clima de instabilidade, refletido na vulnerabilidade daquela que deveria ser a lei mais conhecida, respeitada, amada e defendida pelo povo.

A Constituição de 46 não sobreviveu à deposição de João Goulart. A de 67, redigida por determinação do presidente Castello Branco, foi estrangulada pela Emenda nº 1 da Junta Militar. Encerrado o período autoritário, grandes esperanças aguardavam a Nova República e o fruto da Assembleia Nacional Constituinte. A prolixa Constituição, cujo espírito seria voltado para o homem e os direitos da cidadania, permaneceu intocada cinco anos. Hoje, mostra-se anêmica, indefesa e envelhecida, emendada mais de 50 vezes, com dezenas de dispositivos ignorados ou à espera de regulamentação.

Prova da falência do direito constitucional acaba de ser dada pelos quatro eminentes chefes dos Três Poderes, fazendo-se fotografar na cerimônia de assinatura do Pacto Republicano, cujos objetivos seriam assegurar ao cidadão comum — tão logo os projetos que o integram recebam aprovação do Congresso — proteção contra a violência de agentes do Executivo, Legislativo e Judiciário.

Não tem sido bastante a Lei Suprema declarar que o Estado democrático tem como fundamentos a cidadania e a dignidade da pessoa humana, que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, se não em virtude de lei, submetido a tratamento desumano ou degradante, garantir a inviabilidade da honra e da imagem pessoal, o sigilo das comunicações telefônicas, a proteção dos atos praticados por advogados no exercício da profissão, ou fixar que a administração pública obedece aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.

Pululam exemplos de violação dos direitos individuais, bem como da prática interminável da corrupção nos altos escalões da República. É destes dias a imagem de ilustre membro da Câmara dos Deputados dilapidando alegremente o dinheiro do contribuinte, com passagens aéreas e hospedagem para a namorada, conhecida estrela da TV, em bailes de carnaval na capital potiguar. As fotos do sorridente casal, no camarote do clube, valem mais, como demonstrativo da corrupção dos costumes, do que 10 mil palavras.

Até que o Legislativo examine e aprove o inusitado pacto, assinado com o objetivo de fazer com que os Três Poderes respeitem a Constituição, ninguém, portanto, garante nada. E depois? Também não. Os fatos simplesmente confirmam frase de antigo presidente-ditador: “As constituições são como as virgens; existem para serem violadas”.

Um negócio fora dos trilhos

Renato Lessa* -
DEU EM O ESTADO DE S.PAULO /ALIÁS

As ferrovias privatizadas e seus gestores irresponsáveis

- Metonímia é a alusão à totalidade pela menção de uma de suas partes. Na expressão "a mão que empurra", utilizada para descrever a força que precipitou alguém em um abismo, o termo "mão" substitui, na verdade, o agente responsável pela gentileza. Metonímias não são, contudo, apenas figuras de linguagem. Podem ser simplesmente figuras da vida. Se a elas aplicarmos uma prima irmã sua - no campo das figuras de linguagem -, a celebérrima metáfora, podemos dizer, metaforicamente, que há metonímias sociais. Fatos e fenômenos cotidianos podem ser interpretados como índices de configurações e processos mais amplos, revelando-se com alta capacidade de condensação dramática.

A literatura dos sobreviventes dos campos de extermínio utiliza com frequência esse poderoso recurso estilístico. É o caso pungente de Primo Levi, que descreveu em livro clássico, É isto um Homem?, a imagem de roupas infantis, penduradas por mães zelosas para secar em uma cerca de arame farpado, na véspera da partida para o campo de extermínio. A visão do detalhe evoca a enormidade, o horror do Holocausto de uma forma muito mais empática que qualquer enumeração estatística da quantidade de mortos por país, idade ou gênero, tal como preferem fazê-lo os sociômetras.

O Rio testemunhou na manhã de quarta-feira um evento metonímico. Em uma estação da zona norte carioca - Madureira - "seguranças" uniformizados e contratados pela empresa concessionária dos serviços de transporte ferroviário foram flagrados por uma câmera de televisão a surrar passageiros, com socos, pontapés e chicotadas. A cena foi placidamente assistida por um policial militar cujo comportamento evidenciava familiaridade com o que estava a acontecer. As cenas são chocantes. Sob o pretexto de fazer com que as pessoas entrassem nos vagões, para permitir a partida da composição, as supostas "forças da ordem" agrediram os usuários, além de proferir uma enxurrada de insultos racistas e sociofóbicos.

Como de hábito, a busca de elucidação do fato seguiu o curso usual: determinar os responsáveis e proceder às punições exemplares de praxe. Sobrou para os "seguranças" flagrados (houve quatro demissões). Se depender da empresa concessionária - designada não sem ironia como Supervia - é o que vai acontecer. Tendo sido ouvida, declarou-se chocada com o comportamento dos seus empregados, segundo ela, incompatível com o "código de ética" da firma, um delicioso oxímoro. Seu presidente, constrangido, amaldiçoou os meliantes sob sua responsabilidade. Foi incapaz, contudo, de deixar de transmitir a sensação de que seu compromisso prioritário é para com os acionistas da firma, e não para com a malta usuária.

Tal como no caso dos rapazes do Morro da Providência, entregues por um oficial do Exército a traficantes para que estes procedessem a corretivos apropriados, há quem identifique na "falta de treinamento" a razão da estupidez. Naquela altura, um especialista vetusto na área foi à televisão explicar que o Exército não estava treinado para lidar com segurança pública (sic). É no mínimo curioso supor que pessoas trucidem outras pessoas por "falta de treinamento". No caso em questão, tudo parece indicar que se trata antes da presença de certo treinamento, voltado para o castigo físico e para a violência autorizada, quando dirigida a quem está em baixo, do que de ausência. É agressão à inteligência mais primária supor que os meliantes flagrados agiram de forma improvisada.

Investigar quem são os perpetradores é importante, mas talvez não seja o que mais precisamos. É fundamental, além disso, proceder à escuta dos vitimados. Nesse particular, os relatos são elucidativos. A violência acidentalmente registrada pela câmera - uma espécie de ombudsman errático dos desvalidos - é diária e habitual. Os maus tratos aos usuários são frequentes, com uso regular da violência. O evento flagrado condensa velho e renitente hábito do uso da força ilegítima contra os segmentos populares, e esta é uma de suas dimensões metonímicas. É como se uma cultura de castigo seletivo estivesse inscrita em nosso DNA civilizatório e a dizer que os pobres são um contingente passível de receber castigo físico. São eles as vítimas preferenciais da truculência policial e os que frequentam com mais assiduidade as gavetas dos necrotérios, sob a cobertura legal dos famigerados autos de resistência (uma autorização para proceder à matança, por parte de agentes da ordem).

Há os que dizem que a democracia está firmemente consolidada no país. Apegam-se a dados que indicam o funcionamento pleno das instituições. Encantados, dedicam-se a descrevê-las e mensurá-las, com a pretensão de corrigir, por imperitas, as impressões em contrário. Com efeito, para os que, com regularidade, têm seus corpos e vidas à disposição do castigo físico contumaz, a sensação é bem outra. É fundamental, para o bem da democracia, escutá-los.

A metonímia ferroviária indica ainda o estado da arte das ferrovias brasileiras. Outrora uma malha considerável e encarada como algo de responsabilidade pública e estratégica para o País, hoje apresenta-se desconfigurada e submetida a monopólios privados, cujos gestores respondem a acionistas ferroviariamente irresponsáveis. Os ferroviários, um segmento organizado dos trabalhadores brasileiros orgulhoso de sua identidade coletiva, perdeu, pela redução da malha brasileira, centralidade e viu esfumar-se na memória suas tradições de luta e seu papel de politização por onde os trilhos passavam. A ferrovia hoje é um negócio, vitimado por choques de gestão sucessivos e por administradores demofóbicos.

As imagens da televisão mostram uma composição parada na estação de Madureira. Os usuários que estavam nas portas do primeiro vagão sofreram os afagos dos meliantes a soldo. Quando a composição se pôs em movimento, outros usuários foram atingidos, na medida em que os vagões passavam, por chicotadas. No último dos vagões, na última janela, um jovem a rir apontava para a plataforma a corneta de um extintor de incêndio a exalar espuma, dando o toque momesco à pequena tragédia do dia 15. Ao reter a fisionomia desse tataraneto dos cariocas que, em 1902, despejaram os estoques das quitandas dos subúrbios, por onde a linha de trem passava, sobre o comboio que conduzia o ex-presidente Campos Salles de volta a São Paulo ao fim de seu mandato, tive a sensação de que nem tudo está perdido.
*Professor titular de Filosofia Política do Iuperj e da UFF, presidente do Instituto Ciência Hoje/SBPC

Aos trancos e barrancos

Fábio Wanderley Reis
DEU NO VALOR ECONÔMICO


Evoquei, há um par de semanas, a sugestão de análises de Philip Converse sobre as dificuldades trazidas à realização do ideal de representação pela assimetria na capacidade de diferentes categorias socioeconômicas de transmitir "sinais" claros aos seus representantes, em contraste com meros "ruídos": as "bases" socioeconomicamente menos favorecidas, sendo menos informadas politicamente e menos envolvidas com a política, se veriam parcialmente excluídas da representação.

Essa sugestão se integra num amplo conjunto de velhas observações e teorias em que se relacionam a estratificação social e suas implicações intelectuais, de um lado, e a atuação política, de outro. Há a conhecida proposição do marxismo no sentido de que, justamente pela hegemonia intelectual e ideológica das classes dominantes, a transformação revolucionária dependeria do acesso à "consciência de classe" pelos proletários, que depende de problemáticas "condições objetivas". Clássicos das ciências sociais modernas, com destaque para trabalhos do próprio Converse, bem como pesquisas sobre questões correlatas executadas mesmo no Brasil, poderiam ter suas conclusões postas em termos afins às análises marxistas e com ressonâncias algo irônicas: a capacidade de dar tradução política aos interesses de classe - se se quiser, a "consciência de classe" - seria maior entre os de posição social mais elevada, onde estariam aqueles que Converse descreve como caracterizados por maior "estruturação ideológica" e por serem politicamente mais atentos e refinados.

O tema tem ramificações relevantes para a questão dos partidos e da ligação dos eleitores com eles, ou da "identificação partidária". Tenho mencionado às vezes o ideal de uma democracia na qual cidadãos sofisticadamente informados sobre os problemas de natureza variada que ganhassem relevância política tomariam posição diante dos diferentes problemas e optariam por um partido ou outro em função da correspondência entre suas posições pessoais e as posições dos partidos sobre os mesmos problemas. É provavelmente certo que se poderá fazer melhor democracia se se contar com cidadãos ou eleitores em geral intelectualmente sofisticados.

Embora a ideia de "identificação partidária" seja despojada de algo de sua força nesse quadro hipotético de eleitores que ponderam judiciosamente questões diversas, o partido poderia, naturalmente, surgir aí como o rótulo sintético para um conjunto de posições com respeito a elas, ou um "programa", como em certa concepção corrente e idealizada de "política ideológica".

Mas a indagação é a de como avançar politicamente em condições em que a maioria dos eleitores - talvez mesmo a grande maioria, como na desigualdade brasileira - carece de sofisticação intelectual em geral e, portanto, também de sofisticação política. Algumas análises sugerem que mesmo a estabilidade das atitudes envolvidas na identificação com um partido ou outro mostraria relação positiva com a sofisticação intelectual (aumentando com o aumento da sofisticação), já que tais atitudes teriam, no caso de gente sofisticada, o suporte trazido pela teia de diferentes aspectos apreendidos cognitivamente. Mas isso fica aquém do tamanho do desafio: não se trata apenas de que o eleitor, mesmo o eleitor sofisticado, "economize informação" por meio da referência ao partido, mas antes de que se possa economizar sofisticação no processo de construção institucional relativamente aos partidos. O que o desafio envolve pode ser assinalado em alguns pontos.

Primeiro, o de que os partidos são mais necessários no quadro de deficiências materiais e intelectuais, como instrumentos para criar "identidades" político-institucionais e canalizar e dar consistência à participação político-eleitoral, eventualmente neutralizando a disponibilidade do eleitorado popular para manipulações propriamente personalistas e fraudulentamente populistas - o que não exclui, naturalmente, em particular nas condições deficientes supostas, o papel importante de lideranças pessoais e talvez "carismáticas" no processo geral. Nessas condições, de todo modo, não há como evitar que a identificação partidária se faça com base em fatores que surgem como espúrios na perspectiva exigente do ideal do eleitor sofisticado e informado: imagens mais ou menos toscas, "projeções" baseadas em informações precárias ou errôneas e percepções simples ou mesmo simplórias etc. Seja como for, os diversos componentes em si mesmo pouco atraentes dessa dinâmica remetem a um rescaldo positivo que a história variada da democracia moderna tem corroborado: o de que partidos capazes de assim canalizar estavelmente a participação popular acabam resultando - aos trancos e barrancos, em alguma medida - em instrumentos importantes de políticas redistributivas e igualitárias, através das quais tradições de elitismo e desigualdade foram superadas.

Pesquisas sobre identificação partidária no Brasil têm mostrado uma minoria de ao redor de 35% dos eleitores que se identificam com um partido ou outro, dentre os quais a maior parcela (incluindo proporção apreciável de gente sofisticada e politicamente atenta) se identifica recentemente com o PT. A grande pergunta a respeito da eventual consolidação de um sistema partidário em nosso caso é a de se e quando virá a produzir-se a identificação partidária estável na massa dos eleitores menos envolvidos politicamente (ou seja, os cerca de 65% restantes), independentemente do caráter menos ou mais sofisticado ou "ideológico" dessa identificação.

Uma condição crucial para isso seria a estabilidade da "oferta" partidária, que tem sido comprometida nas turbulências da história política do país e que o enfrentamento PT-PSDB parecia há pouco prometer superar. É difícil pretender que a promessa ainda se reitere.

Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras

Cúpula das Américas

Luiz Carlos Bresser-Pereira
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


O conceito geográfico de América é naturalmente verdadeiro, mas, além disso, o que significa a América?

QUANDO ESCREVO este artigo, não sei ainda qual foi o resultado da Cúpula das Américas, mas, apesar da esperança que o mundo deposita em Barack Obama, não creio que ele possa mudar um fato simples: a reunião é inconsequente, porque o conceito político e econômico de América não faz sentido. O conceito geográfico de América, ou das três Américas, é naturalmente verdadeiro, mas, além disso, o que significa a América?

Para que uma região do mundo tenha um sentido econômico e político, é necessário que entre os países que a compõem existam interesses comuns que não se estendem aos demais. Além de comuns, portanto, os interesses devem ser relativamente exclusivos. É difícil, porém, ver quais são os interesses exclusivos que os países em desenvolvimento da América Latina têm com os Estados Unidos e o Canadá. Esses dois países partilham interesses reais e exclusivos com os europeus porque seus níveis de desenvolvimento e de salários são semelhantes. Com os demais países do continente americano -sejam os pobres ou os de nível médio-, a relação ou é de conflito devido aos salários menores destes ou é simplesmente imperial.

A relação dos Estados Unidos com a América Latina foi sempre a do império com a colônia. A célebre frase do presidente Monroe -"a América para os americanos"- poderia ser pensada como uma manifestação de solidariedade continental, mas é apenas a expressão do nacionalismo e do caráter imperial do grande país que estava então se formando. Até 1930, a América Latina era o "quintal dos Estados Unidos"; alcançou razoável autonomia entre essa década e os anos 1980, mas nos anos 1990 voltou à condição anterior, semicolonial, então expressa na subordinação ao Consenso de Washington.

Desde os anos 2000, vários países vêm recuperando autonomia -algo que desagrada às elites americanas e principalmente às suas empresas multinacionais, que dispõem dos mercados internos da América Latina como seus mercados-reserva em troca de quase nada.Barack Obama terá condições de mudar essa relação? Terá condição de abandonar a ideia de que os países latino-americanos necessitam da "ajuda" dos Estados Unidos e tratar de encontrar interesses realmente comuns? Não creio, até porque mudança dessa natureza não está na agenda de ninguém. O que está na agenda latino-americana é apenas o fim do bloqueio econômico a Cuba, enquanto os Estados Unidos estão interessados em assinar acordos bilaterais com países latino-americanos que, em troca de modesta abertura do mercado americano, têm as vantagens de dividir a região e limitar gravemente a autonomia do país contratante. Para os países da América do Sul, não faz mais sentido sequer o conceito de América Latina depois que o México aceitou a dependência aos Estados Unidos por meio do Nafta.

O que pode fazer sentido, como bem sabe nossa diplomacia, é uma maior união com os países da América do Sul. A condição essencial para que haja um acordo real -um nível de salários semelhante- existe. Mas alguns países, como o Chile, a Colômbia e o Peru, ainda não estão convencidos de que seu real interesse é o de se associarem a seus semelhantes em vez de se subordinarem aos Estados Unidos. A Cúpula das Américas pode ser útil para algumas ações coletivas internacionais como o combate à droga e ao crime organizado, mas mesmo em relação a esses problemas não há por que pensar nas Américas -é melhor pensar a nível maior porque são questões mundiais.

Luiz Carlos Bresser-Pereira, 74, professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (governo Sarney), da Administração e Reforma do Estado (primeiro governo FHC) e da Ciência e Tecnologia (segundo governo FHC), é autor de "Macroeconomia da Estagnação: Crítica da Ortodoxia Convencional no Brasil pós-1994".