sexta-feira, 24 de abril de 2009

PENSAMENTO DO DIA

“O termo “jacobino” terminou por assumir dois significados: existe o significado próprio, historicamente caracterizado, de um determinado partido da Revolução Francesa, que concebia o desenvolvimento da vida francesa de um modo determinado, com um programa determinado, com base em forças sociais determinadas, e que explicitou sua ação de partido e de governo com método determinado que era caracterizado por uma extrema energia, decisão e resolução,derivado da crença fanática na virtude tanto daquele programa quanto daquele método. Na linguagem política, os dois aspectos do jacobinismo foram cindidos e se chamou de “jacobino” o político enérgico, resoluto e fanático, porque fanaticamente persuadido das virtudes traumatúrgicas de suas idéias, fossem quais fossem: nessa definição prevaleceram os elementos destrutivos derivados do ódio contra os adversários e os inimigos, mais do que aqueles construtivos, derivados do fato de terem adotado as reivindicações das massas populares; o elemento sectário, de conventículo, de pequeno grupo, de individualismo desenfreado, mais do que o elemento político nacional.”

(Antonio Gramsci, “Cadernos do Cárcere” volume 5, págs. 68-69 – Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2002)

A comunicação na batalha das ideias

Dênis de Moraes
Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil


A comunicação jamais esteve tão fortemente entranhada na batalha das ideias pela direção moral, cultural e política da sociedade. Reconhecendo o caráter estratégico da produção simbólica nas disputas pelo poder, compartilho da ideia de Jean-Paul Sartre (1994: 23) de que a mídia desempenha os papéis de “servidores da hegemonia e guardiães da tradição”. Ocupa posição proeminente no âmbito das relações sociais, visto que fixa os contornos ideológicos da ordem hegemônica, elevando o mercado a instância máxima de representação de interesses.

Sob alegação de que exerce uma função social específica (informar a coletividade), a mídia não quer submeter-se a freios de contenção e se põe fora do alcance das leis e da regulação estatal. A opinião pública é induzida ao convencimento de que só tem relevância aquilo que os meios divulgam. Não somente é uma mistificação, como permite, perigosamente, a absorção de tarefas, funções e papéis tradicionalmente desempenhados por instâncias intermediárias e representativas da sociedade (sistema escolar, família, partidos políticos, organismos da sociedade civil, etc.). Os grupos de comunicação sentem-se desimpedidos para selecionar as vozes que devem falar e ser ouvidas — geralmente aquelas que não ameaçam suas conveniências políticas e metas mercadológicas.

Essa posição hipertrofiada dos meios tem a ver com a sua condição privilegiada de produtores e distribuidores de conteúdos, tal como fixado por Karl Marx (1997, v. 1: 67): “Transportam signos; garantem a circulação veloz das informações; movem as ideias; viajam pelos cenários onde as práticas sociais se fazem; recolhem, produzem e distribuem conhecimento e ideologia”.

Nos Cadernos do cárcere, Antonio Gramsci (2000:78) situa a imprensa (o principal meio de comunicação de sua época) como “a parte mais dinâmica” da superestrutura ideológica das classes dominantes. Caracteriza-a como “a organização material voltada para manter, defender e desenvolver a ‘frente’ teórica ou ideológica”, ou seja, um suporte ideológico do bloco hegemônico. Enquanto aparelhos político-ideológicos que elaboram, divulgam e unificam de concepções de mundo, jornais e revistas cumprem a função de “organizar e difundir determinados tipos de cultura” (ib., 32), articulados de forma orgânica com determinado agrupamento social mais ou menos homogêneo, o qual contribui com orientações gerais para exercer influência na compreensão dos fatos sociais.

Ao referir-se à imprensa italiana do início do século XX, Gramsci (ib., 218) situa a ação dos jornais como verdadeiros partidos políticos, na medida em que influem, com ênfases e enfoques determinados, na formação da opinião pública e nos modos de assimilação dos acontecimentos: “Jornais italianos muito mais bem-feitos do que os franceses: eles cumprem duas funções — a de informação e de direção política geral, e a função de cultura política, literária, artística, científica, que não tem um seu órgão próprio difundido (a pequena revista para a média cultura). Na França, aliás, mesmo a função distinguiu-se em duas séries de cotidianos: os de informação e os de opinião, os quais, por sua vez, ou dependem diretamente de partidos, ou têm uma aparência de imparcialidade (Action Française – Temps – Débats). Na Itália, pela falta de partidos organizados e centralizados, não se pode prescindir dos jornais: são os jornais, agrupados em série, que constituem os verdadeiros partidos”. Mas ele ressalva que a imprensa não é o único instrumento de publicização: “Tudo o que influi ou pode influir sobre a opinião pública, direta ou indiretamente, faz parte dessa estrutura. Dela fazem parte: as bibliotecas, as escolas, os círculos e os clubes de variado tipo, até a arquitetura, a disposição e o nome das ruas” (ib., 78).

No artigo “Os jornais e os operários”, de 1916, Gramsci (2005) insiste que os operários devem recusar os jornais burgueses, mantidos por capitais privados, visto que privilegiam as verdades de partidos, políticos e classes dominantes. Para ele, os operários precisam lembrar sempre que “o jornal burguês (qualquer que seja sua cor) é um instrumento de luta movido por ideias e interesses que estão em contraste com os seus. Tudo o que se publica é constantemente influenciado por uma ideia: servir a classe dominante, o que se traduz sem dúvida num fato: combater a classe trabalhadora. [...] E não falemos daqueles casos em que o jornal burguês ou cala, ou deturpa, ou falsifica para enganar, iludir e manter na ignorância o público trabalhador”.

O filósofo italiano reprova o trabalhador que lê regularmente e ajuda a manter com seu dinheiro os jornais burgueses, “aumentando a sua potência” e esquecendo-se de que tais veículos “apresentam os fatos, mesmo os mais simples, de modo a favorecer a classe burguesa e a política burguesa com prejuízo da política e da classe operária”. Exemplifica com a cobertura tendenciosa das greves: “Para o jornal burguês os operários nunca têm razão. Há manifestação? Os manifestantes, apenas porque são operários, são sempre tumultuosos, facciosos, malfeitores”. Assim, o convencimento sobre o irremediável conflito de interesses entre a classe trabalhadora e a imprensa da burguesia justifica a atitude política que Gramsci julga mais consequente: boicotar os jornais vinculados às elites hegemônicas.

Ao retomar mais tarde, nos Cadernos do cárcere, a análise crítica sobre a imprensa, Gramsci assinala que o papel dos jornais transcende, muitas vezes, a esfera ideológica em sentido estrito. Chama a atenção para as determinações econômico-financeiras das empresas jornalísticas, que as impelem a agregar o público leitor para assegurar rentabilidade e influência. Avalia que a imprensa burguesa se move em direção ao que pudesse agradar o gosto popular (e não ao gosto culto ou refinado), com o propósito de atrair “uma clientela continuada e permanente”. A seu juízo, “os jornais são organismos político-financeiros e não se propõem divulgar as belas-letras ‘em suas colunas’, a não ser que estas belas-letras aumentem a receita” (2002d: 40).

Esses componentes socioeconômicos e ideológicos estão na base do que Gramsci denomina de “jornalismo integral”, isto é, o jornalismo que não somente visa satisfazer as necessidades de seu público, “mas pretende também criar e desenvolver estas necessidades e, consequentemente, em certo sentido, gerar seu público e ampliar progressivamente sua área” (2000: 197). O jornalismo integral de Gramsci atua como aparelho privado de hegemonia, na medida em que procura intervir no plano político-cultural para organizar e difundir informações e ideias que concorrem para a formação do consenso em torno de determinadas concepções de mundo.

Aos jornais, segundo Gramsci, interessa conquistar “o leitor em toda a sua concretude e densidade de determinações histórico-políticas e culturais, de motivações éticas, como indivíduo e como expoente de uma associação humana, como depositário de recursos intelectuais latentes e como ‘elemento econômico”, ou seja, precisamente como adquirente de uma mercadoria, de um produto”. Existem aí nexos e remissões entre as dimensões políticas (a intervenção na formação da opinião pública) e econômicas (o caráter empresarial e mercadológico) que incidem na atividade jornalística. Gramsci atribui ao jornalismo integral o exercício de um pressuposto categórico à orientação ideológica hegemônica: “É dever da atividade jornalística (em suas várias manifestações) seguir e controlar todos os novos movimentos e centros intelectuais que existem e se formam no país. Todos”.

Se pensarmos no contexto contemporâneo, poderemos perceber ecos da apreciação gramsciana. Os meios de comunicação elaboram e divulgam equivalentes simbólicos de uma formação social já constituída e possuidora de significado relativamente autônomo. Na essência, o discurso midiático se propõe fixar a interpretação dos fatos por intermédio de signos fixos e constantes que tentam proteger de contradições aquilo que está dado e apareça como representação do real e verdade. Tal discurso interfere preponderantemente na cartografia do mundo coletivo, propondo um conjunto de linhas argumentativas sobre a realidade, aceitas ou consideradas por amplos setores da sociedade. Assume, pois, uma função ideológica que consiste, segundo Chauí (1982: 21), em compor “um imaginário e uma lógica da identificação social com a função precisa de escamotear o conflito, dissimular a dominação e ocultar a presença do particular, enquanto particular, dando-lhe a aparência do universal”.

O estabelecimento de uma concepção dominante consiste, assim, em “conservar a unidade ideológica de todo o bloco social, que é cimentado e unificado precisamente por aquela determinada ideologia” (Gramsci, apud Gruppi, 1978: 69-70). Do ponto de vista das corporações midiáticas, trata-se de regular a opinião social através de critérios exclusivos de agendamento dos temas que merecem ênfase, incorporação, esvaziamento ou extinção. O ponto nodal é disseminar conteúdos que ajudem a organizar e a unificar a opinião pública em torno de princípios e medidas de valor. Por isso, formar a opinião pública é uma operação ideológica “estreitamente ligada à hegemonia política, ou seja, é o ponto de contato entre a ‘sociedade civil’ e a ‘sociedade política’, entre o consenso e a força” (Gramsci, 2002a: 265). O processo da hegemonia importa, então, disputa pelo monopólio dos órgãos formadores de consenso, tais como meios de comunicação, partidos políticos, sindicatos, Parlamento etc., “de modo que uma só força modele a opinião e, portanto, a vontade política nacional, desagregando os que discordam numa nuvem de poeira individual e inorgânica”.

Daí a importância crucial de se analisarem as formas de convencimento, de formação e de pedagogia, de comunicação e de difusão de visões de mundo, as formas peculiares de sociabilidade, as maneiras de ser coletivas e as clivagens, assim como as contradições presentes em cada período histórico (Fontes, 2008: 145). A referência à difusão de ideias, valores e padrões de comportamento tem a ver com um dos reconhecimentos decisivos no pensamento crítico atual: é no domínio da comunicação que se esculpem os contornos ideológicos da ordem hegemônica e se procura reduzir ao mínimo o espaço de circulação de ideias alternativas e contestadoras — por mais que estas continuem se manifestando e resistindo. A meta precípua é esvaziar análises críticas e expressões de dissenso, evitando atritos entre as interpretações dos fatos e os modos de entendimento por parte de indivíduos, grupos e classes.

Sem esquecer a constante reverberação do ideário dominante nos canais midiáticos, devemos reconhecer que fatores mercadológicos, socioculturais e políticos repercutem de alguma maneira na definição das programações. Um dos traços distintivos da mídia, enquanto sistema de produção de sentido, é a sua capacidade de processar certas demandas da audiência. Os meios não vivem na estratosfera; pelo contrário, estão entranhados no mercado e dele dependem para suas ambições monopólicas. Do mesmo modo, precisam ter seus radares permanentemente ativados para captar sinalizações, insatisfações e carências. E com isso preencher vácuos abertos, antecipar tendências, criar modismos, atenuar variações e repensar aproximações. Decisivo não perder de vista que tais deslocamentos devem ocorrer, o máximo possível, dentro das margens de controle delineadas por estrategistas e gestores corporativos.

É impossível conceber o campo midiático como um todo harmonioso e homogêneo, pois está atravessado por sentidos e contrassentidos, imposições e refugos, aberturas e obstruções. Daí a existência de entrechoques de concepções que se enfrentam e se justapõem em diferentes circunstâncias históricas. É um campo atravessado por contradições, oscilações de gostos, preferências e expectativas. Enquanto mediadora autoassumida dos desejos, a mídia tenta identificar indicações do cotidiano e eventuais alternâncias de sentimentos que podem incidir em predisposições consensuais ao consumo. Para tentar sintonizar-se com essas demandas, os veículos procuram substituir formas disciplinares clássicas por um marketing mais macio e persuasivo, capaz de seduzir consumidores de diferentes estratos sociais e somar capitais publicitários, patrocínios e audiências. Ainda que prescrevam fórmulas e juízos, não há dúvida de que, em maior ou menor grau, absorvem, essencialmente por razões de mercado, determinadas inquietações do público. Quando as incorporam em suas programações, fazem-no de acordo com suas escalas interpretativas, sem deixar de avaliar intenções concorrenciais. Seria, portanto, um equívoco ignorar injunções que se alojam nas diretivas dos veículos e em seus perfis específicos e fisionomias competitivas.

O aparato midiático tem que atualizar programações e ofertas para assegurar máxima fidelidade possível da audiência, em consonância com suas conveniências estratégicas. O que não quer dizer que as atualizações resultem em qualidade editorial ou pluralidade real de pontos de vista. O fulcro de grande parte dos ajustes é seguir modelando comportamentos e consciências, bem como influenciando agendas públicas e privadas. Busca-se incorporar peculiaridades socioculturais a determinados produtos e serviços, de modo a usufruir vantagens simbólicas associadas ao trabalho de conversão de identidades à lógica consumista.

Em paralelo, a exploração de brechas dentro das corporações midiáticas não deve ser descartada como recurso tático na resistência ao pensamento único. Claro que a grave assimetria comunicacional — uma parte ínfima da sociedade é proprietária dos veículos, enquanto a coletividade é apenas destinatária — impõe limitações e obstáculos. Mas não impede que sejam desenvolvidas algumas ações criativas no interior das organizações, conseguindo-se, às vezes, veicular materiais informativos que contrastam com o edifício ideológico construído por seus proprietários.

Existem, simultaneamente, pontos de resistência aos discursos hegemônicos que abrem horizontes de enfrentamentos de pontos de vista. A começar pelos meios alternativos de comunicação, impressos, eletrônicos ou virtuais, que se contrapõem aos modelos e crivos midiáticos. Eles procuram disseminar ideias que contribuam para a elevação da consciência social, o exercício da crítica e a intensificação do debate sobre possibilidades de transformação do mundo vivido. De igual maneira, é essencial a reivindicação de políticas públicas que possam coibir monopólios e oligopólios e conter a obsessão comercial das indústrias culturais, ao mesmo tempo estimulando a produção audiovisual independente, as mídias comunitárias e a organização cooperativa em redes e coletivos de comunicação, bem como assegurando o controle social democrático sobre empresas concessionárias de licenças de rádio e televisão.

Em qualquer dos cenários, não podemos alimentar falsas ilusões no enfrentamento do poderio midiático. Seria grave erro subestimar a agressividade ideológica, a penetração social e a eficiência mercadológica das organizações de mídia. Trata-se, isto sim, de conceber estratégias criativas e consistentes de difusão e pressão, que se traduzam na ocupação de espaços táticos na sociedade civil por meios alternativos, bem como no interior das corporações. O objetivo primordial é desenvolver dinâmicas informativas que reverberem visões de mundo comprometidas com a efetiva liberdade de expressão, o pluralismo e os direitos da cidadania. Essa ação ideológico-cultural precisa inserir-se no plano geral de lutas sistemáticas para debilitar as estruturas da dominação exercida pelas classes dominantes e alcançar, progressivamente, novas condições concretas de hegemonia que priorizem a justiça social e a diversidade.

Dênis de Moraes é professor da UFF. Este texto é parte do ensaio “Imaginário social, hegemonia cultural e comunicação”, incluído no seu novo livro, A batalha da mídia. Rio de Janeiro: Pão e Rosas, 2009.

Referências bibliográficas

CHAUÍ, Marilena. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. São Paulo: Moderna, 1982.

FONTES, Virginia. “Intelectuais e mídia — quem dita a pauta?”. In: COUTINHO, Eduardo Granja (Org.). Comunicação e contra-hegemonia: processos culturais e comunicacionais de contestação, pressão e resistência. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008.

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Org. de Carlos Nelson Coutinho, Marco Aurélio Nogueira e Luiz Sérgio Henriques. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999 (v. 1), 2000 (v. 2), 2002a (v. 3), 2001 (v. 4), 2002c (v. 5) e 2002d (v. 6).

---------. Cartas do cárcere (v. 2: 1931-1937). Org. de Luiz Sérgio Henriques. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005a.

----------. Escritos políticos. Org. de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004a (v. 1: 1910-1920) e 2004b (v. 2: 1921-1926).

----------. “Os jornais e os operários”, disponível em Arquivo marxista na Internet, 2005.

GRUPPI, Luciano. O conceito de hegemonia em Gramsci. Rio de Janeiro: Graal, 1980.

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Textos (3 v.). São Paulo: Edições Sociais, 1977.

MORAES, Dênis de (Org.). Sociedade midiatizada. Rio de Janeiro: Mauad, 2006.

----------. Cultura mediática y poder mundial. Buenos Aires: Norma, 2006.

OTTOLENGHI, Franco. “Jornalismo”, em Gramsci e o Brasil.

SARTRE, Jean-Paul. Em defesa dos intelectuais. São Paulo: Ática, 1994.

Embate político

Merval Pereira
DEU EM O GLOBO


O desentendimento, transmitido ao vivo e em cores, entre o presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, e o ministro Joaquim Barbosa não é nada trivial e não faz nada bem à democracia. Os aspectos pessoais tiveram sua influência, são dois homens de temperamento difícil, o primeiro exercendo de maneira voluntarista a presidência, o segundo já tendo um histórico de desentendimentos com vários outros ministros.

Mas há um componente político forte no embate entre duas visões distintas do Judiciário, não só no campo teórico, como também no que se refere ao cotidiano da política. É verdade que há um mal-estar no Supremo com o hábito de Gilmar falar sobre qualquer assunto a qualquer hora. A Lei Orgânica da Magistratura impede, pelo dever de imparcialidade, que o juiz se pronuncie fora dos autos, para não revelar sua posição.

Mas o Supremo é presidencialista, e Gilmar Mendes é voluntarista.

Sua tese é que ele é chefe de um poder político e, como tal, não estaria sobre a regra do silêncio da Lei Orgânica da Magistratura.

Um bom exemplo de como encara sua função: no comunicado oficial do Pacto Republicano, Gilmar aparecia como “representante do Poder Judiciário”, pois tecnicamente o Judiciário é plural, um tribunal de um estado não deve obediência administrativa ao Supremo, só doutrinária.

Como os demais signatários do pacto — o presidente Lula, o senador José Sarney e o deputado Michel Temer — apareciam como “chefes” de seus respectivos poderes, Gilmar Mendes exigiu uma mudança e passou a ser designado como “chefe” do Judiciário.

O Supremo Tribunal Federal está no centro das discussões políticas desde que Gilmar, a partir de uma denúncia da revista “Veja”, levou diretamente ao presidente da República uma exigência de apuração sobre uma escuta telefônica clandestina de que teria sido vítima.

A transcrição de uma conversa com o senador Demóstenes Torres, confirmada pelos dois, seria a prova de que a Operação Satiagraha, conduzida pelo delegado Protógenes Queiroz, teria grampeado ilegalmente diversas autoridades, na sequência da investigação que levou à prisão do banqueiro Daniel Dantas.

O diretor da Abin, Paulo Lacerda, foi afastado do cargo, e uma investigação da corregedoria da própria Polícia Federal acabou indiciando criminalmente o delegado por ilegalidades na operação, entre elas escutas telefônicas não autorizadas.

As constantes intervenções de Gilmar Mendes contra os abusos da Polícia Federal nas investigações e prisões, fazendo com que uma súmula vinculante sobre a limitação do uso das algemas fosse promulgada, levaram a que fosse acusado de estar protegendo o banqueiro Daniel Dantas, a quem concedeu dois habeas corpus. Foi o que bastou para que seus adversários tentassem imprimir ao Supremo o rótulo de “protetor dos ricos”.

São certamente essas acusações que baseiam a afirmação de Joaquim Barbosa de que Gilmar Mendes estaria “desmoralizando o Judiciário”, embora as decisões tenham sido referendadas pelo plenário do Supremo.

Há quem atribua os constantes atritos entre os juízes do Supremo ao fato de que nos últimos anos houve uma renovação dos seus membros, fazendo com que hoje haja mais ministros sintonizados com o espírito da Constituição de 1988.

A partidarização do Supremo, no entanto, não parece ser a tônica de sua composição, fenômeno que seria mais tipicamente dos Estados Unidos, onde há o bipartidarismo, do que no Brasil, onde Lula tanto é capaz de nomear o ministro Carlos Alberto Direito, um conservador católico, como Eros Grau, que se diz marxista.

Já Joaquim Barbosa, escolhido por indicação de Frei Beto, ex-assessor especial de Lula, não pode ser identificado explicitamente com Lula, no máximo com uma ala do PT, tanto que aceitou a denúncia contra os 40 do mensalão.

Nomeado por Fernando Henrique Cardoso, Gilmar Mendes mantém um retrato do ex-presidente em sua mesa de trabalho.

Mas o bate-boca entre os dois ministros revelou também um debate doutrinário latente, quando Gilmar Mendes acusou Joaquim Barbosa de fazer “populismo judicial”, argumentando que “esse negócio de classe não cola”. Ao que Joaquim Barbosa retrucou que levava em conta “as consequências” de suas decisões.

Gilmar Mendes estava se referindo aos ataques que tem sofrido devido às últimas decisões do Supremo, como a de que o acusado só ficará preso depois de acabarem todos os recursos legais.

Mas revelava que também no Supremo há um debate entre os “consequencialistas”, que interpretam a lei atentos ao resultado da decisão, contra os “formalistas”, que se atêm à letra da lei. Esse debate doutrinário é sério, e ocorre em vários lugares do mundo.

Mesmo que tenha uma postura voluntarista que pode causar mal-estar em colegas de Supremo — três deles se recusaram a assinar nota com sanções diretas a Joaquim Barbosa —, o presidente do Supremo, no seu “ativismo judicial”, tem defendido apenas o estado de direito.

Está destruindo o estado policialesco que estava se implantando no país, e leva o Supremo a ter uma influência efetiva nas políticas públicas nacionais, questionando a atuação do MST ou de ONGs, ou provocando o Pacto Republicano, que vai levar os três Poderes a tratarem de direitos fundamentais do cidadão, desde o sistema penitenciário até o uso de algemas e escutas clandestinas.

O caso Lugo

O governo brasileiro tem a informação de que faltam apenas dois votos para que o presidente do Paraguai, o exbispo católico Fernando Lugo, tenha seu impeachment aprovado pelo Congresso.

A nau dos insensatos

Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

O Congresso tem recursos de comunicação suficientes para se defender de todas as acusações que lhe são feitas. São quatro emissoras de rádio e televisão, sítios na internet, boletins impressos, mais a prerrogativa de convocação de rede nacional.

Portanto, nada impede o Poder Legislativo de "dialogar com a sociedade", como propõe o deputado Ciro Gomes, passando ao largo da "plutocracia e da mídia".

Se não o fez até agora, ao se completarem exatos 80 dias de escândalos ininterruptos, foi porque não quis, não pôde ou não soube fazê-lo de forma organizada, civilizada e, sobretudo, convincente.

Seja qual for o motivo, fato é que o Parlamento se manifesta de maneira cada vez mais desorganizada, refutável e, nas últimas 48 horas, com variações entre a demência e a selvageria.

Fenômeno diverso do ocorrido no Supremo Tribunal Federal, onde os nervos, os temperamentos, os complexos e as vaidades levam magistrados a abrir mão da compostura. Como se o fato de o Judiciário ter sido obrigado, pelos desmandos gerais, a se manifestar além dos "autos" autorizasse também os ministros a liberar em público desavenças pessoais na forma de insultos.

No Legislativo, assistimos à perda da razão coletiva. Em ambos os sentidos: do juízo e do argumento.

A reação à mínima restrição no uso das passagens aéreas suscitou um triste espetáculo de desequilíbrio mental e emocional. Os fatos falam por eles mesmos há 80 dias sem que tenha sido tomada uma única providência eficaz e objetiva contra o abuso nas cotas de telefones, na contratação de funcionários fantasmas, no pagamento irregular de auxílios-moradia, na devolução de horas extras pagas no recesso, na extinção de diretorias inúteis, no nepotismo cruzado; nem mesmo se dá notícia sobre o andamento do processo contra o ex-corregedor Edmar Moreira, por gasto irregular da verba indenizatória.

Esses fatos criaram pernas próprias, caminham sozinhos e descontrolados na proporção direta em que os parlamentares perdem a cabeça. Um perigo, pois nessa batida a população acaba acrescentando à má imagem do Legislativo o diagnóstico de insanidade.

Falam-se as maiores barbaridades a título de defesa do Parlamento sem que seus autores percebam o efeito nefasto dessa autoflagelação à deriva.

Alguém, em sã consciência, pode concordar com deputado Silvio Costa quando ele vê risco de dissolução de casamentos porque mulheres e filhos não podem usar as cotas de passagens dos parlamentares para viajar?

E o líder do DEM na Câmara, deputado ACM Neto, vociferando que a imprensa "quer fechar o Congresso"? Irreconhecível.

Fernando Gabeira, em sua autocrítica da tribuna por também ter dado passagens à família, acusou a imprensa de retaliar porque o Legislativo não abastece os veículos de comunicação com verbas publicitárias. Escorregou na contradição.

Se as denúncias são fruto de vingança vil - "aqui é possível criticar sem que se seja ameaçado de perder anúncios" -, não têm fundamento. Neste caso, a que "luta" se refere o deputado quando se diz disposto a conduzir uma batalha pela moralização e modernização do Legislativo?

O senador Epitácio Cafeteira exorbita e vê na cobrança por limites na distribuição de passagens de avião um sinal de que "daqui a pouco" os parlamentares serão obrigados a viajar de ônibus, mediante cotas de "vale-transporte".

Ciro Gomes, então, rompeu de vez relações com as estribeiras porque na listagem de bilhetes apareceu uma pessoa de nome Maria e sobrenome Gomes, citada "possivelmente" como a mãe do deputado. Ele nega. Perfeito.

Bastaria, pois a notícia não afirmava o parentesco. Não precisaria insultar a tudo e a todos com palavrões que, ditos nas dependências do Congresso em altíssimo som, desmoralizam ainda mais a instituição.

No tempo devido, o Legislativo não ouviu os alertas de que caminhava para o abismo. Insistiu e agora grita. Não por medo de ser fechado, mas por anseio de calar a crítica.

O que é o que é?

O líder do PP na Câmara, Mário Negromonte, lançou uma questão ao debate: "É preciso saber que tipo de parlamentar a sociedade brasileira quer; um deputado bem remunerado para ser incorruptível ou um que ganhe pouco e vá ao Congresso defender o interesse dos grandes grupos."

Ou seja, para o deputado quem não é bem pago é - ou poderá vir a ser - corrupto.

Embora a excelência não tenha informado a que categoria pertence, cumpre lhe informar: considerando a existência de outro tipo de gente, políticos inclusive, se consultada a respeito, a "sociedade brasileira" não ficaria com nenhuma das alternativas por ele propostas.

Escolheria poder contar com parlamentares prestadores de bons serviços, cientes de seus deveres, zelosos do bem público. Merecedores de boa remuneração e, no limite da necessidade, de recursos adicionais para o melhor exercício do mandato.

Nenhum genocídio deve ser esquecido

José Serra
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Aqueles que insistem em ressuscitar o conceito de raça devem ser contidos, sob pena de incitarem processos odiosos

O DIA de hoje, 24 de abril, lembra a campanha de extermínio movida pelo governo turco contra a população armênia em 1915, durante a Primeira Guerra Mundial.

Nesse dia começaram a ser executadas ordens expressas de extermínio. Em dezenas de cidades do Império Turco-Otomano, onde conviviam pacificamente famílias de diferentes etnias, toda a população armênia masculina foi reunida à força, executada e empilhada em vales e cursos d"água.

Famílias inteiras foram amarradas e jogadas vivas nos rios, com um de seus membros morto a tiros, levando todos os demais ao afogamento. Estima-se que pelo menos 1,5 milhão de armênios tenham sido assassinados.

Pelo menos em um caso, homens foram concentrados em uma caverna e asfixiados com o gás carbônico produzido por imensas fogueiras. Mulheres e crianças foram deportadas de todo o império para os arredores de Alepo, na Síria (que integrava o Império Otomano), e reunidas em campos de concentração.

Parte da deportação se fez em trens de carga destinados ao transporte de gado. Nas centenas de quilômetros percorridos pela população feminina, a maioria a pé, grande parte das deportadas morreu de inanição ou de doença e as demais foram executadas.

As razões invocadas para o massacre -uma vez que a política de extermínio é até hoje negada- foram principalmente a alegada traição dos armênios, que teriam colaborado com o exército russo no início da guerra, a necessidade de limpeza racial para converter a Turquia, então multirracial, em uma nação uniformemente turca, e o fato de os armênios serem geralmente mais educados e mais ricos do que o restante da população.

Os assassinatos foram em grande número, houve deportações em massa, para dificultar a identificação dos perseguidos e limitar sua capacidade de reação ou de contar com ajuda externa. Recorreu-se à asfixia por gases, à inculpação das vítimas e, mais importante ainda, à denegação sistemática e à pressão e intimidação contra os que tentaram reconstituir os acontecimentos históricos. Nisso tudo o genocídio dos armênios foi exemplar.

Os fatos foram amplamente registrados, na época, pela imprensa americana e europeia, com destaque aos jornais britânicos. Documentos diplomáticos de diversos países relatam os massacres sistemáticos da população armênia masculina e a deportação em massa das mulheres com tudo o que isso implicava de estupros e mortes por doença e inanição, sem excluir o massacre final.

Líderes daquele tempo referiram-se ao extermínio -como Winston Churchill, em seu livro "The Aftermath"- e ninguém menos do que o controverso Kemal Ataturk, que viria a ser considerado o pai do moderno Estado turco, reconheceu em 1920 a existência do massacre, considerando-o "um ato vergonhoso".

Não obstante suas diferenças relevantes, não há dúvida de que o extermínio dos armênios foi precursor no século 20 do genocídio judaico. O próprio Hitler, que concebeu e executou o Holocausto dos judeus, teria feito a comparação com a política nazista de deportação e extermínio em massa de poloneses: "Afinal, quem ainda fala sobre os armênios?".

Mas ainda se fala, sim. Há relatos detalhados das atrocidades, um volume impressionante de resultados de pesquisas arqueológicas e, principalmente, depoimentos de vítimas que escaparam dos massacres.

Uma versão romantizada, mas não menos realista do massacre e das deportações iniciadas em 24 de abril, é o extraordinário filme dos irmãos Paolo e Vittorio Taviani, "La Masseria delle Allodele" ("A Casa das Cotovias"). Com sua conhecida sensibilidade e sofisticação de narrativa, os Taviani mostram o terrível emaranhado de sentimentos que uma situação de extermínio provoca dentro de uma família e de uma comunidade, com suas renúncias e cobiças, seus pequenos heroísmos e traições, e sua dor sem medida, que tanto desumanizam algozes e vítimas.
A noção de crime contra a humanidade pressupõe a ideia de negar às vítimas de uma campanha deliberada de extinção a própria condição de seres humanos, com seu direito inerente à existência. Esse é, aliás, o passo mais extremado de uma atitude que começa com o preconceito, estende-se à discriminação e culmina com o racismo. De fato, todos os processos conhecidos de extermínio em massa têm como pressuposto a superioridade de um credo ou de uma raça e a consequente inferioridade de outra.

Aqueles que, em pleno século 21, insistem em ressuscitar o conceito de raça e em criar legislações baseadas na premissa de que elas merecem tratamento diferenciado pelo Estado devem ser contidos em suas ações e pretensões, sob pena de incitarem, em algum momento do futuro, processos odiosos que não podem ser aceitos pela humanidade.

Por isso, nenhum genocídio deve ser esquecido, todos devem ser lembrados, seus responsáveis execrados, suas causas e motivações sempre pesquisadas e analisadas, suas brutalidades reconstituídas, suas vítimas homenageadas. Nunca esquecer para que não volte a acontecer.

José Serra, 67, economista, é o governador de São Paulo. Foi senador pelo PSDB-SP (1995-2002) e ministro do Planejamento e da Saúde (governo Fernando Henrique Cardoso) e prefeito de São Paulo (2005-2006).

Muito mais do mais

Wilson Figueiredo
Jornalista
DEU NO SITE OPINIÃO E NOTICIA

O presidente da Câmara dos Deputados, em quem o senador Antônio Carlos Magalhães via a expressão sobrenatural de “mordomo em filme de terror”, não perdeu a oportunidade de revelar que está aí para restaurar, sem pagar direito autoral, o estilo parlamentar de Pacheco para dizer o óbvio com a imponência oral com que Eça o imortalizou. Michel Temer não deixou por menos, mutatis mutandi, o rompante com que seu antecessor luso foi direto ao ponto quando, da tribuna da câmara dos deputados de Portugal, se dirigiu ao plenário com a frase retumbante: “enquanto eu aqui desta tribuna faço ciência, vossas excelências ai do plenário fazem ruído”. A diferença entre o original e o eco na Veja desta semana é suficiente para garantir Temer, por todo o século, como sucessor de Pacheco.

Temer abriu o festival preocupado com a dilaceração da imagem do Congresso pelo emaranhado de escândalos de deputados e senadores. Arrogou-se a iniciativa de tomar as “medidas de transparência nos primeiros dois meses de gestão, com a divulgação dos gastos (dos deputados, claro) com a verba indenizatória, que permitiu a revelação desses escândalos.” E, num assomo de Pacheco, “há confusão entre o que se pode fazer e o que não se pode fazer”. Os casos serão apurados, mas “pouco a pouco. Não dá para chegar arrombando a porta”. Por que não? Quer melhorar a imagem da Câmara em cima desse pântano? Em tom paternal, “esses descuidos comportamentais são históricos” e, com ênfase, “número mínimo de casos” que precisam ser condenados. Bastaria fechar a tesouraria. Antes de mais nada, vai dispersar as idéias radicais que pedem plebiscito sobre fechamento do Congresso. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. A levar a sério proposta com tal teor, em nome da democracia, pode-se encomendar logo missa de sétimo dia. Primeiro porque não se conhece nenhum Congresso que tenha sido fechado por plebiscito. Talvez em conseqüência de um, sim. Segundo, porque a democracia não deve ao plebiscito senão a certeza de que se trata de cortesia do autoritarismo , se ela se distrair. Até agora, a única concessão ditatorial que se conhece da democracia é o plebiscito, entendido como manipulação consentida do eleitorado. Democracias não vivem dele e ditaduras o têm ao alcance da mão para o que der e vier.

Ação imediata para conter idéias radicais seria um exagero para a instituição que tem poucas idéias para o tamanho da crise de confiança do eleitorado nos eleitos. O senador Cristóvão Buarque foi metafórico para não ser confundido. Resolveu como outro Cristóvão, o Colombo, que foi pragmático quando, desafiado a equilibrar um ovo em pé, quebrou a casca na ponta maior e resolveu o problema. Sem citar Joseph Stalin, que – sem nada a ver com Pacheco - não se cansava de repetir, judiciosamente, que não se fazem omeletes sem quebrar ovos.

A partir daí, o presidente da Câmara destampou o óbvio: “já determinei (ao deputado que abusou dos gastos) que ele mandasse uma explicação”, “vou aguardar a resposta e enviá-la ao corregedor, para que ele examine o caso e uma eventual punição”. Pacheco, para não resolver, não diria melhor. “O problema da punição é que a ordem jurídica vigente diz apenas que o crédito das passagens (aéreas) é do deputado”. “Na norma legal, não houve erro”. E daí, Pacheco? Michel Temer concorda, como presidente da Câmara, que falta fiscalização das verbas e auxílios por fora da remuneração ( e que já virou salário): “foi por isso que surgiu a idéia de acabar com a verba indenizatória”, com valor de 15 mil para despesas de bolso. Surgiu e se escondeu? Qualquer presidente da Câmara (e do Senado) diria o mesmo e não desataria o nó. A culpa não é de Michel Temer. Nem de Pacheco. Também não é do eleitor. A desintegração do tecido de confiança política deixa o eleito com a garantia de que está acima do mal (do bem, não) e o eleitor percebe, com atraso, que lhe bateram a carteira. Não há democracia de punguistas dotada de vida longa e, em conseqüência, cada qual quer o seu quinhão antes que a festa acabe.

Mesmo no papel de Pacheco, Temer mandou fazer um estudo que “mostrou na ponta do lápis que haverá grande economia para os cofres públicos se esse auxílio de 15 mil reais (pelo secundário imagina-se o principal) fosse incorporado ao salário” de senadores e deputados federais e estaduais. Mas, há sempre uma adversativa no meio do caminho, “desisti de levar adiante a proposta”. Motivo: a confusão seria total. Certamente jornais, rádios e televisões iriam dizer que os congressistas estavam tratando do aumento de salários em plena crise. E não seria, Pacheco, ainda que por outro lado do raciocínio?

A porção pachecal de Michel Temer é sufocante: Jarbas Vasconcelos foi, a seu ver, “genérico demais” quando abriu o bico. Em compensação, ele, Temer, foi de menos. Pressionado a levá-lo ao Conselho de Ética ou expulsá-lo do PMDB (acumula presidências), Temer acendeu uma vela a Deus e outra ao Diabo. Pediu-lhe que especificasse, com caligrafia de dedo duro, as suspeitas que lançava a esmo. E aí Pacheco deu o aparte por intermédio de Michel Temer: “Não há condições de apurar essa corrupção”. E ai se enrola: “quando há corrupção é preciso punir os responsáveis e não generalizar”. Só que tem uma coisa: para punir, é preciso chegar aos responsáveis, mas o corporativismo não separa o joio e o trigo e, dependendo da quantidade de um e de outro, na incerteza prévia o melhor é não punir ninguém.

Sobre três eleições a que o PMDB compareceu sem candidato próprio, embora seja o maior partido, a explicação não está nos limites do que parece, mas do que esconde. O maior partido é o fiel da balança, e seu peso é decisivo em vantagens que lhe perpetuam a importância eleitoral em altos cargos. Joga direto com o presidente da República. Dobrou o número de ministros. Mas Temer sempre foi pela candidatura própria. Na última sucessão presidencial, teve a iniciativa de propor eleição prévia para escolher candidato próprio, mas ninguém acreditou, nem os próprios pretendentes enrolados na farsa. Pobres Germano Rigotto e Garotinho.

Mas o que ressalta no atual Michel Temer são as frases que fariam a glória do próprio Pacheco e com o qual ele passa a ser visto como muito mais do mesmo: “em política as surpresas acontecem”. Não só em política, deputado. O soneto, segundo um ditado famoso, também. A modéstia não perde oportunidade: “dizem que vou ser vice da Dilma”, “como já se falou da possibilidade de ser vice de Serra”, e mais não disse nem lhe foi perguntado por ser ocioso.

Tem mais: “não há possibilidade de limitar o poder das CPIs”. Melhor saber para lhe levarem ao conhecimento o que excede ou falta às noticias. Há quem considere que elas abusam, “mas eu discordo da tese”. Porque as CPIS passam ao Ministério Público o que apuram e não, certamente, o que fica por ser apurado.

Nem no elogio ao presidente, Temer deixaria passar a oportunidade: “os grandes segredos de Lula são a espontaneidade e a intuição política extraordinárias”. Tudo bem, mas deixaram de ser segredo desde que ele se elegeu e, principalmente, depois que se reelegeu. E ter emprestado dinheiro ao FMI, mais do que uns trocados, vale um prêmio político com que o presidente deveria retribuir para estimular o hábito de pensar por conta própria.

Na seqüência, o presidente (da Câmara e do PMDB) garante que só falta a este governo pegar o pessoal que veio “das classes D e E para a classe C, e dar um espaço de trabalho para incorporá-lo à nacionalidade”. Por que não? “É este o ponto que deve ser a seqüência do governo”. Ao fundo, Pacheco é o maestro: “Não se pode ficar só no Bolsa Família”, evidentemente, para que não ocorra a volta em massa à classe E. Não deixa de ser alfabetização em massa.

“O Legislativo só é enaltecido, diz Michel Temer (ou seria Pacheco?) quando o país está saindo do regime autoritário”. Conclusão, trabalha mal na democracia. “Na história brasileira sempre foi assim”. Foi resignação, e não piedade. Lembra que, de 1964 a 82, o Legislativo apagou-se (mas os legisladores receberam em dia). Da eleição de Tancredo Neves a Fernando Collor, porém, a democracia foi um festival. Claro que a memória nacional, como a Lua, tem diferentes fases.Todas previsíveis.E, por último e para aliviar a atmosfera, “o processo penal e o processo político são duas coisas totalmente distintas”. É o melhor estilo Pacheco. “E, de uma maneira ou de outra, todos os deputados envolvidos em escândalos foram punidos”. Mas, qual das duas?

Dá-lhe Rigoni: “A avaliação política é muito pessoal. Há influência psicológica para cassar e para não cassar”. Ora, bolas. “No processo político (tomem nota) tudo se baseia na hipótese de conveniência”. A hipótese: um presidente é julgado e se confirma a suspeita. “Pode perder o cargo e levar o país à guerra civil”. Que fazer? “Evitar o caos institucional” ao preço da interrupção de cassação do presidente.” Freud explicaria melhor.

Aos que estão por vir

Fernando Gabeira
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


RIO DE JANEIRO - Na crista da crise mundial, sopram ventos de mudanças. No norte, banqueiros e executivos tornam-se vilões. Aqui, políticos sofrem um bombardeio.

Pelos seus traços fortes, caricaturais, os Parlamentos são alvo predileto. É perigoso concentrar só neles. Às vezes, acho que o governo escapa, sobretudo porque é um grande anunciante. Mas, pensando melhor, não é esse o ponto.

O caso dos cartões corporativos ganhou grande espaço. Tanto ele como o escândalo das passagens são de fácil entendimento. Licitações, editais, relações com ONGs são temas ásperos, que não se reduzem a falas de 30 segundos nem se traduzem na linguagem visual.

O que dizer da transparência no Judiciário, no Ministério Público? Não há demanda para saber como se comportam juízes e procuradores nem como é gasto o dinheiro com eles.

Não são eleitos pelo voto popular. Independem dessa confiança básica, renovável. Com suas limitações, o processo que o avanço social e técnico deflagrou é a semente dos novos tempos.

Na internet e entre os leitores, a sensação é a de que todos os políticos são iguais e deveriam desaparecer. É um equívoco. Depois de uma explosão nuclear, nem todos desaparecem: as baratas sobrevivem. Um Congresso fantasma ou um Congresso fechado não interessam à democracia. Vale um esforço para ajustar sua conduta agora e renová-lo em 2010. Quem dá um passo à frente?

A sociedade avançou, a política envelheceu. É uma crise de crescimento da democracia. Jamais alcançaremos a perfeição. Mas vai melhorar. E os que estão por vir, como no poema de Brecht, serão compreensivos com os tempos sombrios que vivemos.

Resta trabalhar para que a energia dos escândalos não esgote a busca de soluções. Devem andar juntas, como luz e sombra.

Rio - amor e bala perdida (poema)

Graziela Melo

São beijos
Que bóiam
Na água

Abraços
Flutuam
No ar...

Desejos
Se escondem
Nas folhas,
Nas flores,

Nos frutos
Do pomar...

É
A vida
Que corre
Com pressa

É alguém
Virando
A esquina

E a morte
Tentando
Pegar.

É a bala
Que mata
A menina

É a bala
Perdida
Zunindo
No ar!!!

É a bala
Certeira
Que vem
Pra matar!!!

"Não há crise, não há arranhão", diz Mendes

Andréa Michael e Felipe Seligman
Da Sucursal de Brasília
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Presidente do STF se recusa a fazer comentários específicos sobre o bate-boca com Barbosa; ministros tentam esfriar caso

A colegas, Barbosa havia dito que se sentia tratado de forma diferente por Mendes; Lula minimiza episódio, mas faz crítica velada a ministros

Um dia depois de protagonizar a contenda com o colega Joaquim Barbosa, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, negou a existência de crise institucional e disse que a imagem da corte é a "melhor possível".

"Não há crise, não há arranhão. O tribunal tem trabalhado muito bem", afirmou Mendes, em entrevista, ao sair de um encontro com o presidente da Câmara, Michel Temer (PMDB-SP). Ele completou ontem um ano na presidência do STF. Questionado por diversas vezes sobre o bate-boca, recusou-se a responder especificamente sobre o assunto. O dia de ontem foi dedicado ao esfriamento da confusão. A maior parte dos integrantes da corte se recusa a falar do caso.

O presidente Lula também tentou minimizar o episódio ontem, mas deixou um recado aos magistrados: que não resolvam diferenças em público. "Creio que, quando nós temos determinadas funções, é importante que a gente diga tudo o que quiser nos autos do processo, e não fique dizendo pela imprensa. Mas esse é o pensamento de um leigo, não de um magistrado", afirmou ao ser questionado sobre a discussão por jornalistas brasileiros durante entrevista na sede do governo argentino.

Lula explicou o episódio à presidente da Argentina, Cristina Kirchner, como uma "troca de acusações verbais e palavras duras". E lançou uma crítica velada aos ministros ao afirmar que, "se esse tipo de briga, assistida por toda a sociedade brasileira, ajuda a sociedade e a democracia, tudo bem".

A Folha apurou que, na avaliação do Planalto, Mendes estaria "expondo demais o Supremo", segundo a expressão de um ministro próximo a Lula. Por exposição excessiva, o Planalto entende a série de declarações de Mendes, que despertariam polêmicas públicas. Na opinião desse ministro, o Supremo deve falar pouco para que tenha peso quando houver uma manifestação do tribunal -sobretudo o presidente da corte. "Quando o Supremo falou, tá falado.

É assim que funciona nos outros países", disse o auxiliar direto de Lula.

Para o Planalto, seria ruim e o Supremo se enfraqueceria ao se transformar em personagem de polêmicas e que isso seria ruim para as instituições.

"Lamentável"

Na mesma linha, o decano do STF, Celso de Mello, disse que "episódios como esses são lamentáveis e afetam negativamente a imagem da instituição, por isso exortamos todos os juízes a observarem os limites impostos pela ética judiciária". Ontem, os ministros Carlos Ayres Britto e Ricardo Lewandowski foram com Barbosa almoçar em um restaurante de Brasília, em demonstração de que o colega não está isolado dentro do tribunal.

No encontro, os ministros, inclusive Barbosa, concordaram que o episódio foi "lamentável" e que a partir de agora é necessário encontrar uma forma para que o tribunal retome sua "normalidade". A Folha apurou que Barbosa não mostrou arrependimento, chegando a dizer que não foi ele quem começou o bate-boca, mas que teria reagido a uma provocação de Mendes.

Anteontem depois da discussão, segundo a Folha apurou, Barbosa disse aos colegas Britto e Celso de Mello que as palavras dirigidas em plenário ao presidente do STF foram uma reação por se sentir tratado de maneira diferente daquela que Mendes dispensaria aos demais integrantes do tribunal.

A explicação foi dada quando os dois ministros procuraram Barbosa e pediram a ele que se retratasse dos ataques, a fim de contornar a crise. No ápice da discussão, Barbosa havia dito: "Vossa Excelência, quando se dirige a mim, não está falando com com seus capangas de Mato Grosso, ministro Gilmar. Respeite, respeite".

A Folha apurou que a intenção do ministro era sinalizar para Mendes, publicamente, que não aceitava ser tratado como um subalterno. Procurado pela reportagem, Barbosa informou, por meio de um assessor, que não comentaria o assunto. Também por meio de sua assessoria , Mendes disse que não falaria. Além de Mendes, seu mais novo desafeto, Barbosa não fala com os ministros Eros Grau e Marco Aurélio Mello, com os quais já discutiu na corte.

Colaborou Thiago Guimarães, de Buenos Aires

BB: seis vices são ligados ao PT

Patrícia Duarte
DEU EM O GLOBO

Indicado do PMDB vai para cargo que cuida da área de crédito

BRASÍLIA. O novo presidente do Banco do Brasil (BB), Aldemir Bendine, assumiu o cargo ontem, e sua primeira atitude foi confirmar a troca de quase 70% das vice-presidências da segunda maior instituição financeira do país. Dos nove cargos, seis mudaram de comando. Agora, seis são ligados ao PT, um, ao PMDB, e dois não têm ligação partidária.

Ricardo Flores, que ocupava a vicepresidência de Governo, assumiu a vice-presidência de Crédito, Controladoria e Risco Global, indicado pelo PMDB. Com isso, Flores passa a ocupar a vice-presidência mais importante, já que a mudança no comando do BB foi feita com o objetivo de reduzir juros e o spread — diferença entre o custo de captação do banco e a taxa cobrada do consumidor final.

Alexandre Abreu, até então diretor de Seguridade, Previdência e Distribuição, foi para a vice-presidência de Varejo. Ricardo de Oliveira, que era assessor especial da presidência, assume a vice-presidência de Governo.

Os dois são aliados de Bendine e próximos ao PT.

Allan Simões Toledo, que ocupava a diretoria comercial, assume a vicepresidência de Negócios Internacionais e Atacado, no lugar de José Maria Rabelo, que não tinha ligações partidárias e deixa o primeiro escalão do BB. A vice-presidência de Cartões e Novos Negócios e Varejo, ocupada até então por Bendine, passou às mãos de Paulo Rogério Caffarelli.

Ele já foi diretor do banco e é próximo do PT.

Já Robson Rocha, que é filiado ao PT e ocupava a diretoria de Menor Renda, assume a vice-presidência de Gestão de Pessoas e Responsabilidade Socioambiental, cargo que pertencia a Luiz Oswaldo Sant’lago.

Das nove vice-presidências do banco, três não sofreram alterações: Agronegócios (Luís Carlos Guedes Pinto), Finanças (Aldo Luiz Mendes) e Tecnologia (José Luis Salinas).

PT recorre contra as inserções do PPS na TV

Daniel Pereira
DEU NO CORREIO BRAZILIENSE

O PT recorrerá ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) contra as inserções do PPS, no rádio e na televisão, nas quais o partido diz que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva mexerá na caderneta de poupança “como fez o governo Collor”. Segundo petistas, as peças sugerem à população que haverá confisco dos depósitos tal qual ocorrido em 1990. “Ao manipular informações com o objetivo de alarmar as pessoas, o PPS age como uma sublegenda dos neoliberais tucanos e a serviço do governador de São Paulo, José Serra (PSDB)”, disse o presidente nacional do PT, deputado Ricardo Berzoini (SP), referindo-se a um dos pré-candidatos da oposição ao Palácio do Planalto.

“O PPS utiliza de forma indevida o horário partidário para espalhar o pânico”, acrescenta Berzoini. De acordo com o governo, haverá mudança na rentabilidade da caderneta de poupança. Isso será feito a fim de impedir que ela renda mais do que a taxa básica de juros (Selic), que corrige parcela dos títulos da dívida brasileira. Em manifestações públicas, o próprio presidente assumiu o compromisso de blindar os pequenos poupadores das alterações que serão feitas. Lula não explicou como. O deputado Fernando Ferro (PT-PE) lembra que a possibilidade de confisco é proibida pelo artigo 62 da Constituição. “Por má-fé, o PPS, no afã de se mostrar simpático a Serra, está propagando uma calúnia”, declarou Ferro.

Reação

Em nota, o Diretório Nacional do PPS tachou de “atitude totalitária” a tentativa do Partido dos Trabalhadores de “censurar” a inserção partidária. A legenda alega que o tal alarmismo, se existe, decorre do fato de o governo não ter esclarecido quais modificações fará na caderneta de poupança. “Em nenhum momento, o PPS afirmou que Lula vai confiscar o dinheiro da população. Disse, sim, que vai mexer na poupança, como o Collor também mexeu. Aliás, o ex-presidente é aliado do governo do PT, que ainda tem em seu rol de satélites todos os partidos do ‘mensalão’”.

Na nota, o PPS também se declara contrário à iniciativa e afirma que a mudança na remuneração da caderneta prejudicará os pequenos poupadores em benefício de grandes especuladores. “A conta da crise pode ser paga, por exemplo, pelos bancos, os eternos privilegiados pela equipe econômica do governo.”

PPS liga Lula a Collor na mudança da poupança

Clarissa Oliveira
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Inserções no rádio e na televisão provocam reação imediata do PT, que promete ir à Justiça

Inserções veiculadas pelo PPS no rádio e na televisão abriram ontem uma troca de acusações e ameaças de ações judiciais entre o partido e o PT. No programa, o deputado Raul Jungmann (PE) afirmou que o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva planeja "mexer" na caderneta de poupança, assim como fez o governo do hoje senador Fernando Collor, que confisco os depósitos em 1990.

"O governo vai mexer na poupança, como fez o governo Collor. E o PPS vai estar lutando para que isso não aconteça", disse Jungmann, na inserção. O programa provocou reação imediata do PT. No início da tarde, o presidente nacional do partido, deputado Ricardo Berzoini (SP), avisou que encaminharia um questionamento ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). E utilizou o site do PT na internet para dizer que o PPS age como "uma sublegenda dos neoliberais tucanos e a serviço do governador de São Paulo, José Serra", um dos cotados para a corrida presidencial de 2010.

Berzoini criticou o presidente do PPS, Roberto Freire (PE), dizendo estranhar o fato de ele ser conselheiro da empresa de saneamento Sabesp, sem possuir "nenhuma relação histórica com a empresa ou com o próprio Estado". Mais tarde, em entrevista, ele acrescentou: "São inserções de baixo nível. O PPS comanda uma política errada, com a clara intenção de confundir a população".

Freire devolveu: "O que eles querem? Calar a oposição?" E revidou a afirmação de que o PPS age a serviço de Serra. "Nós preferimos mesmo o Serra a Lula." Para completar, Freire negou prestar consultoria à Sabesp e desafiou Berzoini: "Ele que repita isso, que eu o processo". Mais tarde, o PPS divulgou nota classificando a decisão do PT de acionar a Justiça como uma "atitude totalitária". Já Jungmann disse que nunca afirmou que o governo vai confiscar depósitos da poupança. "É uma questão de interpretação."

Serra diz que empréstimo do BNDES a SP é ''muito pouco''

Silvia Amorim
DEUEM O ESTADO DE S. PAULO

Governador ponderou, entretanto, que vai aceitar crédito de R$ 40 mi

O governador José Serra (PSDB) disse ontem que aceitará o recurso oferecido pelo governo federal, a título de empréstimo, a São Paulo para minimizar o impacto da crise financeira. Mas destacou que o valor é "muito pouco". Para socorrer os Estados, o governo Lula autorizou o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) a emprestar R$ 4 bilhões aos 27 entes federativos. A cota de São Paulo é de R$ 40 milhões.

"É muito pouco. São R$ 40 milhões, 1% do total que o governo federal vai liberar para os Estados", afirmou Serra. "Mas R$ 40 milhões são dinheiro e a instrução que dei aos secretários da Fazenda e do Planejamento é que apresente algum projeto", explicou, após participar do lançamento de uma nova campanha de vacinação de idosos contra a gripe.

A ajuda financeira do governo federal é uma resposta à queda de arrecadação sofrida pela União, Estados e municípios neste início de ano em decorrência da redução de impostos para alguns setores promovida pelo governo Lula para minimizar os efeitos da crise no País. Antes da medida para os Estados, o governo anunciou um pacote de socorro aos municípios, prejudicados com a queda do repasse de recursos do Fundo de Participação dos Municípios (FPM). Neste caso, R$ 1 bilhão será liberado a prefeituras em dificuldades financeiras.

O governador que contratar o empréstimo pagará taxas bem abaixo das praticadas no mercado e das oferecidas à maior parte das empresas pelo banco estatal de fomento. Os Estados terão prazo de oito anos e carência de um ano para pagar. O prazo para contratação do empréstimo vai até 31 de dezembro deste ano.

A linha emergencial será custeada pelo Fundo de Amparo do Trabalhador (FAT), que está com o caixa em baixa desde o início da crise e já bancou a ampliação das parcelas do seguro-desemprego e o financiamento às empresas afetadas pela retração das exportações.

Os Estados que fizerem empréstimos junto ao BNDES só podem usar o dinheiro em despesas de investimento. Serra disse ontem que ainda não decidiu onde serão aplicados os recursos provenientes do empréstimo emergencial.

Entre os 13 Estados que podem emprestar valores maiores, cinco são governados pelo PT (Bahia, Pará, Piauí, Sergipe e Acre). Ou seja, os petistas estão na metade mais favorecida.

O governador da Bahia, Jaques Wagner (PT), poderá contratar o maior volume de financiamento, R$ 375,8 milhões - o equivalente a cerca de um mês de transferências do Fundo de Participação dos Estados (FPE), que, de janeiro a março, caíram em cerca de R$ 600 milhões em comparação com igual período do ano passado.

O critério de distribuição de recursos corresponde ao valor proporcional de distribuição do FPE, explica o Tesouro Nacional. O órgão garante ainda que a linha de crédito não interferirá na sustentabilidade fiscal dos Estados, uma vez que os limites de endividamento não foram alterados. Todas as operações terão de ser submetidas ao Tesouro antes de serem aprovadas.

A mundialização segundo Bresser-Pereira

Michel Rogalski
Fonte: L'Humanité & Gramsci e o Brasil

Bresser-Pereira, Luiz Carlos. Mondialisation et compétition. Pourquoi certains pays émergents réussissent et d’autres non. Paris: Éditions La Découverte, 2009. 196p.

O economista brasileiro, cuja reputação ultrapassou as fronteiras do seu continente de origem há bastante tempo, nos apresenta um livro que é uma obra maior sobre as estratégias de desenvolvimento dos países do Sul, principalmente daqueles de renda média, apoiando-se em uma comparação entre os bons resultados na Ásia e os fracassos na América Latina. O autor alia qualidades acadêmicas de professor e uma experiência de ministro sob as presidências de José Sarney (Fazenda) e de Fernando Henrique Cardoso (Reforma do Estado, Ciência e Tecnologia). Seu livro, prefaciado por Robert Boyer, já provoca debate na França, porque não hesita em revisitar, de maneira incômoda, as questões essenciais que estão no coração do desenvolvimento dos países emergentes ou com possibilidade de se tornarem emergentes — países que se veem confrontados com uma globalização real que não têm possibilidade de mudar.

Ele já se destacou como um dos pioneiros da crítica à ortodoxia convencional (o consenso de Washington) no início dos anos 1990, salientando a estagnação que ela implicava. Ele nos apresenta uma apaixonante releitura das trajetórias adotadas nos últimos 30 anos nos países do Sul. Seu diagnóstico é sem apelação e serve de alimento para os debates sobre as formas de acumulação. Os caminhos seguidos com sucesso pela Índia, China, Coreia do sul, Taiwan ou Vietnam demonstraram a importância do Estado-nação, só ele capaz de definir de levar adiante uma estratégia nacional de desenvolvimento. Compreendem-se seus ataques contra o globalismo “que faz o elogio da globalização e afirma que o Estado-nação não tem mais razão de ser”. De acordo com sua perspectiva, a globalização é uma oportunidade para os países de renda média, mas aumenta as desigualdades no interior dos países e beneficia principalmente os ricos dos países desenvolvidos.

Bresser-Pereira rejeita a globalização financeira e aconselha os países a se precaverem e evitar ao máximo o recurso à poupança externa, fonte de perda do controle sobre a taxa de câmbio, mas apoia a globalização comercial, que pode se tornar uma oportunidade para os países em desenvolvimento, desde que eles mantenham sua taxa de câmbio competitiva, ou seja, não apreciada. A seus olhos, esta é uma variável-chave sobre a qual é necessário manter o controle e assim poder enfrentar a competição internacional. Esta estratégia deve ser completada por uma política fiscal e orçamentária sadia, a fim de se manter a taxa de juros em um nível moderado.

Bresser-Pereira desenha os contornos de um quadro teórico que visa a renovar a contribuição da “escola estruturalista”, ao definir as características principais de um “novo desenvolvimentismo” que ganha terreno na América Latina. Toma cuidado em se diferenciar das experiências do passado, tanto aquelas da ortodoxia convencional, que conduziram o continente à quase estagnação e a uma “década perdida”, como aquelas do “nacional-desenvolvimentismo”, que se esgotaram em sua política de substituição de importações e entraram em colapso diante da crise da dívida externa nos anos 1980.

Apela, portanto, para um “terceiro discurso”. Político sofisticado, sabe que os três pilares de sua estratégia — mobilizar a poupança interna, manter a taxa de câmbio competitiva e sanear as finanças públicas — pressupõem um consenso nacional forte e um jogo de alianças políticas sólidas. Mas o continente latino-americano, cujas elites sempre manifestaram uma tendência generosa para se aliar às elites globalizadas, e cujas classes populares ou marginais têm uma tendência para ver o resultado antes de dar apoio — estará esse continente disposto a se engajar em um consenso? O autor faz uma aposta estimulante.

Michel Rogalski é diretor da revista Recherches Internationales. Este texto foi publicado originalmente em L'Humanité, 20 abr. 2009.

Volta do dinheiro

Panorama Econômico :: Míriam Leitão
DEU EM O GLOBO


Os bancos públicos estão emprestando cada vez mais, enquanto os bancos privados fazem o movimento contrário. A taxa de juros caiu, mas o spread continua alto. A inadimplência de pessoa física se estabilizou em nível alto: mais de 8%. A das empresas aumentou, mas ainda é baixa: 2,6%. “O mercado de crédito está começando a melhorar, mas de forma lenta” diz Altamir Lopes, do BC.

O dinheiro está voltando devagar à economia. Ainda seletivo, mais difícil e muito caro. O ritmo de crescimento da concessão de crédito pelos bancos públicos aumentou fortemente, enquanto o ritmo dos empréstimos do setor privado, nacional e estrangeiro, está desacelerando.

Os bancos públicos ainda têm uma fatia menor do crédito concedido (37,6%), os bancos privados nacionais têm 41,9% e a parcela dos bancos estrangeiros caiu para 20,5%. Mesmo assim, como se vê no gráfico abaixo, o movimento recente é de aceleração da oferta de crédito via bancos públicos, num movimento oposto ao dos bancos privados.

A economista Cassiana Fernandez, da Mauá Investimentos, diz que os dados não permitem dizer que o crédito está normalizado, mas, sim, que está se normalizando.

Ela alerta para esse descompasso: o crédito dos bancos privados caindo na base anual para 12% de crescimento — já foi 30% — e o dos bancos públicos crescendo mais de 30%.

Tudo bem se isso produzir um aumento da competição que reduza a taxa de juros bancária; tudo mal se o crédito for concedido de forma descuidada e seguindo orientação política e, não, técnica. O diretorgerente do FMI, Dominique Strauss-Kahn, disse, segundo o Valor de ontem, que até os bancos hoje sólidos do Brasil podem ser afetados se a crise for muito prolongada.

Altamir Lopes, do Departamento Econômico do Banco Central, não acredita no risco de os bancos serem afetados.

— O sistema está atento a isso, pelo menos no segmento do crédito livre concedido pelos bancos públicos.

Não se tem esse risco pela história toda da crise dos anos 90. Por isso, a primeira reação de todos os bancos foi elevar o spread e travar o crédito assim que a crise começou, assumindo posição mais conservadora — disse Altamir.

As taxas de juros cobradas pelos bancos voltaram aos níveis pré-crise, mas o spread continua alto, segundo Altamir.

— Os juros baixaram porque caíram muito as taxas de captação, mas o spread médio da pessoa física está em 39,7%, quando em dezembro de 2007 chegou a 31,9%. O da pessoa jurídica é 18%, bem distante dos 10,8%, que foi o menor spread, em junho de 2001.

Parte do aumento do crédito é o BNDES, que entra nos dados de volume, mas não nas estatísticas de taxas de juros. O BNDES tem aumentado as concessões a empresas e setores em dificuldades.

A retomada da oferta do crédito no segmento comercial é dos grandes bancos emprestando para grandes empresas.

Os bancos médios e pequenos ainda não voltaram ao mercado e são eles que emprestam para as pequenas e médias empresas.

Altamir acha que eles voltarão brevemente a emprestar, porque os novos títulos, os RDBs, aos quais o BC estendeu uma garantia do Fundo Garantidor até o valor de R$ 20 milhões, já conseguiram captar R$ 3,2 bilhões até o dia 21 de abril.

— A nossa expectativa é que isso seja repassado em breve às empresas.

O diretor de economia da Anefac, Andrew Storfer, contou que os bancos aumentaram as exigências para emprestar, diminuíram os prazos dos empréstimos e também reduziram o volume que está sendo concedido.

O dinheiro não voltou completamente, os sinais de aperto continuam. O risco é de o governo tentar apressar esse caminho da volta empurrando os bancos públicos para aventuras que podem nos custar caro. Há sinais assustadores, como a pressão explícita feita sobre esses bancos, com o Banco do Brasil cortando cabeças de presidente e diretores, a Caixa saindo da sua especialidade para emprestar às financeiras de lojas de eletrodomésticos e o BNDES em operações de salvamento de empresas.

O desafio é os bancos públicos produzirem efeito anticíclico, mas sem comprometer a qualidade do crédito, para que amanhã não tenhamos que reabrir os armários de esqueletos.

O governo passado investiu tempo, dinheiro e engenharia financeira para sanear os armários assombrados dos bancos públicos brasileiros.

Esse trabalho de limpeza não pode se perder agora.

Juros: entre racionalidade e fetichismo

Luiz Carlos Mendonça de Barros
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Parece-me consistente a tentativa de testar juro nominais abaixo de 10% ao longo dos próximos meses

ESTÁ DE volta o debate sobre os juros de um dígito no Brasil. Temos nos aproximado gradualmente dessa marca. Os últimos dois ciclos de afrouxamento monetários são prova disso: em 2004, a taxa Selic atingiu 16% ao ano, e subiu; no de 2007, chegou a 11,25%, e subiu.

Na semana que vem, provavelmente o Copom colocará os juros na taxa mínima histórica de 10,25%. Mas o fato é que os velhos medos sempre retornam. Mesmo analistas racionais parecem novamente sucumbir a esse fetiche.

Para essa turma, seria uma irresponsabilidade cruzar esse Rubicão. A volta da inflação seria apenas uma questão de (pouco) tempo. Na busca de um argumento econômico que reforce esse entendimento pouco cientifico, dizem que os velhos obstáculos a juros mais baixos ainda estão presentes. Sem reformas abrangentes em nosso quadro institucional -que não foram feitas-, trazer o juro real para algo como 4% a 5% ao ano seria um salto no escuro. E apostam em uma inflação em alta já em 2010.

Não concordo com esse tipo de análise fatalista. O Brasil mudou muito nestes últimos anos, e o fantasma do passado não me assusta. O Banco Central divulgou recentemente as estatísticas de nossas contas externas. A dívida externa do setor público chegou a US$ 68 bilhões. Se adicionarmos a divida privada, chegamos a um total de US$ 192 bilhões, US$ 12 bilhões menor que as reservas. Nunca tivemos uma situação como essa no passado. Mudanças estruturais importantes ocorreram em razão do ajuste das contas externas. Em primeiro lugar, nossa moeda é hoje forte e confiável.

Basta acompanhar os relatórios de vários bancos internacionais para chegar a essa conclusão. Como moeda forte, o real tem hoje uma volatilidade civilizada, que permitiu uma crescente abertura de nossos mercados de bens nos últimos anos. Por isso, as importações têm hoje papel importante em diversas cadeias industriais, aumentando a oferta, arejando a concorrência e diminuindo o poder de fixação de preços das grandes empresas nacionais.

Em um mundo com uma enorme capacidade ociosa -inclusive no segmento de commodities-, essa capilaridade das importações afeta de forma positiva o comportamento dos preços industriais. A projeção do economista Fabio Ramos para o IPA industrial deste ano é de apenas 0,5%, apesar da desvalorização do real nos últimos meses. Mesmo o mercado de trabalho -que, para os economistas da minha escola de pensamento, representa um dos elementos principais na dinâmica de preços de uma economia de mercado- deve terminar este ano com uma folga razoável. Nossa previsão na Quest é uma taxa de desemprego próxima a 10% até o início de 2010.

Nesse cenário, o risco parece ser de inflação abaixo de 4% em 2010 e não há por que, a priori, descartar juros reais mais baixos. O Banco Central brasileiro já mostrou capacidade de julgar com eficiência os parâmetros da política monetária em seu mandato de manter a inflação dentro das metas. Por isso me parece consistente a tentativa de testar juro nominais abaixo de 10% ao longo dos próximos meses. Isso fará bem para a economia brasileira e pode -por que não?- destruir o fetiche.

Em algum momento, a inflação voltará a subir de forma incompatível com a meta -isso faz parte da dinâmica econômica- e, quando isso ocorrer, serei eu o primeiro a pedir juros mais altos.

Luiz Carlos Mendonça de Barros, 66, engenheiro e economista, é economista-chefe da Quest Investimentos. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações (governo Fernando Henrique Cardoso).

Bancos nacionais secaram o crédito

Vinicius Torres Freire
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Corte do crédito foi bem maior na banca privada nacional, em contraste com "estrangeiros"; sem estatais, crise seria radical

SABE-SE LÁ o que o governo pode vir a aprontar nos bancos estatais depois que Lula mandou a Caixa e o Banco do Brasil baixarem os juros na marra, se é que isso vai acontecer. Mas, até agora, se não fosse devido à Caixa, ao BB e ao BNDES, para nem mencionar os subsídios federais ao consumo, o país teria entrado em recessão muito feia. Se a economia dependesse apenas dos bancos privados de capital nacional, basicamente Itaú-Unibanco e Bradesco, a situação seria ainda pior.

De janeiro a setembro de 2008, antes da explosão da crise, a banca privada de capital nacional respondia por 47% do aumento médio mensal do saldo de crédito. Os privados de capital estrangeiro ficavam com 18%. Os bancos estatais ou "públicos", com os 35% restantes.

De outubro de 2008 a março deste ano, tal proporção mudou radicalmente. Os bancos públicos passaram a responder por 82% do aumento médio mensal do saldo de crédito; a participação da banca privada nacional caiu daqueles 47% anteriores à crise para 8%. A da banca estrangeira caiu de 18% para 10%.

Em março, a situação era quase a mesma. Os estatais foram responsáveis por 80,5% do aumento do saldo de crédito, segundo dados divulgados ontem pelo Banco Central.

No total do saldo de créditos, a participação dos bancos públicos é de 37,6%, ante 34,3% antes do início da crise, mesmo assim uma mudança de fatia de mercado muito grande em período tão curto. Mas, "na margem", quem segurou a peteca foram os estatais. Por ora, a julgar pelos dados do BC, a qualidade do crédito dos bancos públicos é até ligeiramente melhor que a dos privados, na carteira total (que diferem muito).

A ofensiva estatal vai dar em créditos ruins? Não se sabe se os estatais arriscam mais ou apenas ocupam o espaço da retranca excessiva da banca privada. Mas o BC, em tese, está aí para alertar o público.

No geral, graças aos estatais, o saldo de crédito cresceu 1% março, maior incremento desde dezembro.

Os bancos, na média, devolveram a "gordura" que comiam desde outubro, quando "spreads" e juros explodiram. Em março, o custo do dinheiro para o tomador do empréstimo caiu tanto quanto o custo para o banco captar dinheiro (na comparação com outubro). Ou seja, os bancos enfim repassaram para os clientes, na média, a queda de custo que tiveram desde outubro de 2008.

Para empresas, a média diária de concessões de crédito (isto é, dinheiro novo) subiu 14% em março em relação ao fundo do poço de janeiro. Isto é, se considerado só o crédito doméstico. Contados também empréstimos externos, a média do primeiro trimestre de 2009 ainda é 6% inferior à do mesmo período de 2008. Na margem, o crédito externo para empresas ainda piora.

O total do saldo de crédito para o consumidor adquirir bens caiu pelo quinto mês consecutivo (ante o mês anterior) em março. Mas, de novembro a fevereiro, o saldo caía a um ritmo dez vezes maior. A "taxa de pendura", a porcentagem das novas concessões de crédito no cheque especial e no cartão de crédito em relação ao total das novas concessões para pessoa física, caiu do pico de 68% em dezembro de 2008 para 63% em março (era de 59% na média do primeiro semestre de 2008).