Numa iniciativa brotada do dinamismo de estudantes que se mobilizam e organizam, ocorreu semana passada, na UFMG, o I Fórum Brasileiro de Pós-Graduação em Ciência Política, com intensa participação de pós-graduandos de todo o país. Destacando os "desafios metodológicos" da disciplina como tema geral, ao qual se dedicou especificamente uma mesa redonda de abertura composta por profissionais brasileiros, eu mesmo incluído, é no mínimo curioso que o evento tenha coincidido com uma notícia algo surpreendente vinda dos Estados Unidos e veiculada pelo "New York Times" no dia 19 de outubro: a de que o senador Tom Coburn, do Partido Republicano, propõe que a National Science Foundation seja proibida de "desperdiçar" recursos federais para pesquisa em projetos de ciência política, dada a suposta irrelevância desta do ponto de vista do interesse público. Naturalmente, a proposta suscitou forte oposição de acadêmicos da área, além de ver-se enfraquecida por ocorrer no momento em que uma cientista política tem a importância do seu trabalho reconhecida com o prêmio Nobel. Mas a iniciativa de Coburn, como o NYT não deixa de registrar, ecoa preocupações com a relevância da disciplina que se manifestam entre os próprios cientistas políticos.
Na mesa redonda inaugural do fórum da UFMG, um levantamento de Gláucio Soares mostrava com clareza certas lacunas das pesquisas e publicações da ciência política brasileira recente: são amplamente ignorados temas como, por exemplo, os relativos à ditadura militar de 1964, ou regiões e países como os da Ásia, África e mesmo América Latina. Sejam quais forem as implicações a serem extraídas de observações como essas, a questão da relevância na área geral das ciências sociais tem assumido, no país, a feição peculiar de uma contraposição entre certa inspiração "nacionalista" e social da preocupação com relevância, por um lado, e, por outro, a busca de rigor analítico e qualidade científica no trabalho: a relevância ou urgência social (ou "nacional") dos temas e problemas justificaria o relaxamento quanto a padrões de qualidade.
Mas é patente o equívoco envolvido nisso. Os problemas socialmente importantes ou prementes são problemas cujo debate envolverá com intensidade os leigos (na condição de cidadãos, e com todo o direito); não caberia esperar que os supostos cientistas sociais e políticos, bem intencionados que sejam, simplesmente juntem seus palpites aos palpites dos leigos, com frequência condicionados fortemente pelo próprio debate leigo. A expectativa de que as ciências sociais possam trazer contribuição efetiva para o encaminhamento dos problemas práticos supõe que essa contribuição apresente uma distintiva "marca" (um "selo"?) de qualidade analítica e científica. Nessa ótica, invertendo, de certa forma, o que sugere a posição indicada acima, a qualidade se torna condição indispensável da relevância entendida de maneira adequada.
Contudo, o fato de que a posição de Coburn sobre a ciência política ressoe nos meios profissionais mesmo nos Estados Unidos redunda numa advertência especial sobre a própria ideia de qualidade. Pois a qualidade científica tem sido crescentemente entendida, entre nós, em termos do recurso a certa canônica cuja penetração se deve sobretudo justamente à influência dos Estados Unidos. Essa canônica visualiza uma ciência social (e política) de ambições generalizantes e empírico-dedutivas, em que o trabalho de elaboração conceitual sirva de bom fundamento a afirmações específicas que, em diferentes áreas de problemas, possam ser confrontadas de modo sistemático com dados de algum tipo. Ora, tem sido apontado com razão, lá como cá, a distorção em que o trabalho referido aos dados, geralmente dados estatísticos, deixa, com frequência, de ser guiado pela reflexão conceitual apropriadamente ambiciosa e rigorosa e se torna ritualista e destituído de significação (embora a ênfase torta em tecnicismos relativos a "significação estatística" seja um dos erros habituais a acompanharem a distorção).
Um aspecto saliente do problema de como obter a eventual junção qualidade-relevância é o desafio de que as questões do dia a dia, objeto de valioso registro do jornalista ou do historiador convencional, possam ser encaradas à luz de proposições de alcance geral - e seu diagnóstico "seguro" eventualmente obtido com atenção para a regra de que a apreensão mesmo do que há de específico ou peculiar em dado caso não tem como escapar da busca de "regularidades" e da comparação com outros casos de algum modo afins. Do ponto de vista da política como ramo especial de estudo, uma recomendação correlata é a de que não há como evitar o que se costuma chamar as "grandes questões" - em outras palavras, não cabe entender a ciência política senão como uma sociologia da política, empenhada em dar conta da articulação entre os processos institucionais e os do substrato dos conflitos sociais de diferentes tipos. É claro, isso não autoriza a abrir mão da modéstia: se tomamos o desafio dramático da violência brasileira crescente, por exemplo, é impossível pretender que mesmo a compreensão sofisticada das razões "estruturais" da violência no Brasil leve a receitas de pronta eficácia em termos de políticas públicas. Mas tampouco há como negar que o trabalho de especialistas pode iluminar aspectos do problema que talvez representem uma via de acesso a políticas mais efetivas. Assim como de alguma utilidade, presumivelmente, será também a reflexão mais "realista" e empiricamente orientada sobre a dinâmica da democracia e suas relações problemáticas com o substrato de um capitalismo sujeito a idas e vindas.
Seja como for, se a política é fatal e de altos custos, vale supor que cabe pensá-la com rigor. E que é bom que a tarefa atraia os jovens talentosos e dinâmicos que o evento da UFMG mostrou em ação.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras