segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Fábio Wanderley Reis:: Os herois militares do Haiti

DEU NO VALOR ECONÔMICO

O país prestou, há alguns dias, honras a autênticos herois militares, nossos soldados mortos no terremoto do Haiti, onde se achavam em missão das Nações Unidas de que se desincumbiam de maneira zelosa e eficiente e que provavelmente terá continuidade nas novas condições que lá se criaram. Naturalmente, não cabe senão lamentar a tragédia que os vitimou, junto a tanta gente mais. Mas o momento de homenagem, em que o país teve a ocasião de convergir e comover-se sem ambivalências diante de caixões de militares cobertos com a bandeira, representou algo raro em nossa atualidade.

O alvoroço ocasionado pelo III Programa Nacional de Direitos Humanos começou com os comandantes militares, respaldados pelo ministro da Defesa, a manifestar sua insatisfação diante da possível revisão da Lei de Anistia. A manifestação não foi senão mais um de vários episódios em que, desde o fim da ditadura militar, de vez em quando irrompe às claras certa tensão latente entre as Forças Armadas, de um lado, e, de outro, o governo e a própria sociedade civil, em movimentos e grupos diversos - sem embargo do forte apoio com que, em comparação com outros países do continente, nossos militares parecem contar entre os estratos populares do povo brasileiro, menos politicamente atentos e envolvidos. Naturalmente, a atuação dos militares durante a ditadura, seja como for que se queira avaliá-la, é a razão por excelência dessa tensão, e a anistia como o motivo insistente das preocupações militares tem a ver com isso.

Como salientam análises clássicas da ciência política, em especial as de Samuel Huntington, falecido há pouco, a atuação e mesmo o protagonismo político dos militares, que Huntington e outros designaram como pretorianismo, são a consequência e a expressão direta da fragilidade das instituições: numa situação de "vale tudo", o controle dos instrumentos de coerção física faz a diferença decisiva. Essa fragilidade tem, porém, importante substrato social. Huntington descreveu o papel dos militares no processo de modernização como sendo o de "porteiros" na expansão da participação política, permitindo a entrada da classe média (a postura reivindicante de movimentos como o "tenentismo" brasileiro pode ser vista nessa ótica) e bloqueando o acesso daquelas mesmas camadas populares que aqui tendem a apoiá-los - postura que os enfrentamentos da Guerra Fria revestiram da justificação ideológica da ameaça totalitária do "comunismo", que operou com dramática intensidade. De todo modo, essa perspectiva situa a "domesticação" institucional das Forças Armadas como a questão crucial na consolidação da democracia. E manifestações como a ocorrida há pouco, acompanhada pelo empenho pressuroso do governo em aplacar a insatisfação exibida por chefes militares, são indícios nítidos de que o assunto não se acha de todo resolvido entre nós.

Contudo, mesmo se lidar com os militares persiste como algo delicado em circunstâncias em que a memória dos pesados custos da longa ditadura de 1964 ainda está bem viva, nada parece justificar a ideia de que tenhamos uma "crise militar" efetiva, ou temores análogos aos que marcavam com frequência o período pretoriano de nossa história recente. Não há como cogitar a sério de golpe militar, e a definitiva inserção democrática das Forças Armadas no quadro político-institucional brasileiro, com a superação do "complexo de sublevação" popular e comunista que elas compartilhavam com outros setores de nossas elites, parece não ser senão questão de tempo.

Assim, no plano mundial temos o colapso do socialismo e o fim da Guerra Fria, seguido da dinâmica econômica que favorece a globalização e a emergência de um mundo multipolar e das transformações políticas nos Estados Unidos que elegem Barack Obama (ainda que se possam apontar aí vacilações relevantes). E foi possível ver meses atrás o forte repúdio internacional - ainda que não unânime, naturalmente - até mesmo ao afastamento do presidente eleito de Honduras, não obstante as reservas possíveis, diante das leis do país, sobre se teríamos tido lá propriamente um golpe.

Já com respeito ao plano doméstico e social, não há dúvida quanto às mudanças ocorridas nas variáveis relevantes de sociopsicologia política, mesmo se o antigo complexo de sublevação às vezes surge de novo nas denúncias paranoicas de "totalitarismo". E ainda que a "solução" definitiva de nossa "questão social", ou a superação do fosso social que a marca, seja algo para um futuro difícil de visualizar, parece claro que nossa democracia foi capaz de deflagrar um processo de incorporação social igualmente difícil de imaginar que venha a ser simplesmente interrompido.

Citei em minha última coluna, em contraste com um objetivo de "fazer justiça", a ideia da anistia como pacificação num contexto que sugere que o que cabe pacificar seria, em grande medida, a relação das forças militares ou repressivas como tal com a sociedade. Uma ponderação importante sugerida pela perspectiva aqui esboçada é a de que a pacificação a ser buscada é antes de tudo social, incluindo, embora esteja longe de esgotar-se nela, a que diz respeito à violência de clara marca classista, mesmo se em princípio apolítica, que penetra cada vez mais intensamente o nosso cotidiano. A outra virá como consequência.

Que novos momentos de convergência, como os propiciados pelos herois do Haiti, possam repetir-se. Se possível, sem mortes. E, em todo caso, sem guerras, externas ou internas.

Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras

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