domingo, 17 de janeiro de 2010

José Murilo de Carvalho ::Quincas, o belo

DEU NAFOLHA DE S. PAULO /+MAIS!

Celebrado em vida, Joaquim Nabuco redefiniu a tensão entre particular e universal no pensamento social brasileiro, em obras como "O Abolicionismo", "Um Estadista do Império" e "Minha Formação"

(Joaquim Nabuco em Nice (França), em 1904, quando trabalhava na questão da Guiana Inglesa)

A natureza é reconhecidamente injusta na distribuição de seus dons. Uns os recebem em abundância, outros escassamente. Joaquim Nabuco estava entre os primeiros. Tinha um físico invejável (Quincas, o belo, o chamavam), aguda inteligência, facilidade para aprender línguas e reconhecidos dotes oratórios. A sociedade juntou-se à natureza proporcionando-lhe, pelo lado materno, um berço de açúcar em Pernambuco e, pelo paterno, uma longa tradição familiar de participação na política nacional. Sua vida teve quatro fases bem distintas.

Nascido em 1849, viveu os primeiros 30 anos sem se distinguir muito de outros jovens talentosos da elite do Segundo Reinado [1840-89]. Formou-se em direito em São Paulo e Recife, abandonou cedo a advocacia, tentou o jornalismo, a literatura, a diplomacia.

Dessa fase, ficaram-lhe a grande admiração pelo pai, o senador Nabuco de Araújo (1813-78), e um amontoado de leituras desordenadas.

Em 1878, morreu o senador deixando preparada a eleição do filho a deputado geral por Pernambuco. Eleito sem dificuldade, deu início à fase mais brilhante de sua vida, que vai até a queda do Império. Embora já preocupado antes com o problema da escravidão, em boa parte graças ao exemplo do pai na luta pela aprovação da Lei do Ventre Livre [1871], só então decidiu abraçar a causa da abolição e o fez com total dedicação e em várias frentes.

Uma dessas frentes foi Londres, onde se autoexilou após uma derrota eleitoral na corte.

Lá escreveu e publicou, pela Abraham Kingdon, em 1883, "O Abolicionismo". Ganha gloriosamente a batalha em 1888, sobreveio no ano seguinte a grande derrota que foi a queda da Monarquia. Os próximos dez anos foram de isolamento, recolhimento, reflexão. Voltou à prática religiosa e, sobretudo, dedicou-se à escrita da biografia do pai, que foi publicada em três volumes, entre 1897 e 1899, pela Garnier, com o título de "Um Estadista do Império".

Ao mesmo tempo, foi redigindo aos poucos os capítulos de "Minha Formação", que saiu pela Garnier em 1900.

Guiana Inglesa

Em 1899, decidiu sair do isolamento e aceitou convite do governo republicano para defender a causa do Brasil na disputa com a Inglaterra pelos limites da Guiana Inglesa [leia na pág. 7 trecho de carta de Nabuco sobre a questão]. Perdida a causa, o barão do Rio Branco o nomeou primeiro embaixador brasileiro em Washington, cargo em que morreu em 1910. Dessa fase, não restaram escritos de maior relevância. "O Abolicionismo", "Um Estadista do Império" e "Minha Formação", no entanto, escritos em tempos de amargura, formam uma trilogia de clássicos. O primeiro aparece em qualquer lista de dez livros mais importantes na área que se convencionou chamar de interpretações do Brasil.

O segundo entra fácil na lista das cinco melhores biografias. O terceiro faz o mesmo na das cinco melhores autobiografias. Autor de três clássicos, é talvez caso único no Brasil. Gilberto Freyre pode emplacar dois, "Casa-Grande e Senzala" e "Sobrados e Mocambos", mas não "Ordem e Progresso".

Problema nacional

"O Abolicionismo" é, ao mesmo tempo, um programa de luta e um ensaio de sociologia política dos mais lúcidos já produzidos entre nós. O programa definia a escravidão como um problema nacional, acima dos partidos políticos, que devia ser resolvido pelos mecanismos do sistema representativo, sob a pressão da opinião pública. A sociologia desvendava um país marcado pela instituição escravista na economia, na política, na sociedade, nos valores. A escravidão, segundo Nabuco, perpassava a vida do país, invadia todas as atividades, todas as classes, todas as mentes.
Suas consequências, afirmava, estariam conosco por mais de um século, uma das previsões de longo prazo mais corretas já feitas entre nós.

"Um Estadista do Império" teve como subtítulo "Nabuco de Araújo, Sua Vida, Suas Opiniões, Sua Época". Tratava-se, sem dúvida, de homenagem filial e, como tal, o papel do senador é ressaltado. Mas foi muito mais do que isso. A última palavra do subtítulo, sua época, é o ponto alto do livro. O senador foi um homem público em tempo integral, mesmo quando tinha que advogar para complementar o orçamento.

O filho via tudo sob o prisma do nacional e do universal. "Um Estadista" é até hoje uma leitura indispensável para entender o funcionamento do sistema político do Segundo Reinado.

O autor consegue um equilíbrio raro entre a análise dos atores, de que desenhava magníficos perfis, e o movimento amplo da política, com ênfase no avanço das ideias liberais. Nesse exercício, não foi até hoje superado.

"Minha Formação" é um retrato precioso da formação intelectual dos filhos da elite política do Segundo Reinado, antes da avalanche dos filosofismos das últimas décadas do século, uma elite encharcada de leituras de literatos franceses e tratadistas ingleses.

Livrou-o da pura afetação a aproximação que fez entre o engenho de Massangana e a rua Grosvenor Gardens de Londres, graças à qual definiu a incompatibilidade entre a escravidão brasileira e os valores da civilização ocidental.

Nabuco utilizou plenamente em benefício do país os dons e privilégios que recebeu da natureza e da sociedade.

José Murilo de Carvalho é historiador, professor aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro e membro da Academia Brasileira de Letras.

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