quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Vinicius Torres Freire:: Cidades mortas

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Primeira semana do ano foi de tristezas para as cidades paulistas e fluminenses próximas ao velho Paraíba

Angra dos Reis parece o mais distante dos subúrbios do Rio. É um amontoado de puxadinhos, de construções inacabadas mas desde sempre em decadência encardida e confusa, a favela genérica típica das nossas cidades grandes. Os moradores ainda mais pobres vivem pendurados em morros e em cocorutos de final de serra.

A cidade é a imagem invertida de um lugar lindo, as baías, as angras, os sacos, as enseadas e a restinga que vão de Parati ao Rio. Quase todos os anos, pedaços de morro se esboroam, pedras despencam e fecham um trecho da Rio-Santos. Costuma morrer pelo menos uma dúzia dos habitantes do lugar. Quando não morrem em Angra, morrem nas pirambeiras de Petrópolis, onde os ricos têm mais bom gosto do que no litoral, o que ainda não resolve nada.

Neste ano, a nossa miséria atravessou o mar; houve a desgraça horrível da Ilha Grande. Angra é uma "cidade morta", a seu modo.

No caminho de São Paulo para Angra ou para a vizinha Mangaratiba, é simpático passar pelas cidades esquecidas do Vale do Paraíba, como São Luiz do Paraitinga. Como tantos outros lugares exauridos pelo fim do café, preservam algum casario antigo, costumes meio tropeiros, festas católicas populares, de rua, e trilhos de trem sem uso ou destino. São Luiz parecia salva em sua catatonia a quem parou para comer um afogado e tomar sua cachaça suave na segunda-feira anterior à catástrofe.

São Luiz do Paraitinga é outro gênero de cidade morta, aquelas de Monteiro Lobato: "A quem em nossa terra percorre tais e tais zonas, vivas outrora, hoje mortas, ou em via disso...: nosso progresso é nômade e sujeito a paralisias súbitas... progresso de cigano, vive acampado. Emigra, deixando atrás de si um rastilho de taperas".

Nosso progresso de agora cria aglomerados de taperas, mas não é nômade. Que nome daremos a isso, nós que estamos tão satisfeitos com a nossa emergência?

Lobato tratava da ascensão e queda rápida do café vale-paraibano, do latifúndio ignaro que devastou matas e solo. No vale ficou a "morraria áspera", o gado pé duro, barões criadores de galinhas e netos farrapos, de pé no chão, "cantando em francês", para furtar a metáfora do poema de Francisco Alvim. Sobraram sedes de fazenda, "palácios mortos da cidade morta". Os fidalgos deixavam as paredes ruir e vendiam telhas a "30 mil réis o milheiro", como escreveu Lobato das "Cidades Mortas" paulistas.

Na terra devastada do Rio, não sobrou um chão para os quilombolas sem quilombos e os caboclos do lugar. A estrada de ferro entre Rio e São Paulo sugou o resto de sangue de Angra, Mambucaba, Itaguaí.

Alguns filhos dos deserdados do velho porto, das tropas, dos canaviais e cafezais improdutivos iriam se pendurar nos morros. Uns outros se espalharam por mocambos nas franjas alagadiças da Baixada Fluminense, onde se juntaram a imigrantes do norte do país atraídos pelas indústrias que empregavam poucos.

Itaguaí fica entre Mangaratiba e o Rio. Lá, "em tempos remotos vivera o dr. Simão Bacamarte, filho da nobreza da terra e o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas", o alienista que internou a cidade e um dia se descobriu demente, o do conto de Machado de Assis.

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