sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

A alegria e a fraternidade não foram perdidas:: Luiz Carlos Bresser-Pereira

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Gildo Marçal Brandão, um estudioso do Brasil e da teoria política, sempre foi um homem comprometido com o Brasil e seu povo

Os amigos nos enganam. Morrem de repente, sem aviso nem necessidade. Privam-nos de uma companhia que nos foi tão agradável e enriquecedora. Uma injustiça para os seus mais próximos e para os amigos como eu, que receberam com enorme tristeza a notícia da morte de Gildo Marçal Brandão.

Um colega cientista político. Um estudioso do Brasil e da teoria política. Um professor de ciência política da USP de cuja banca de professor titular tive a honra e a alegria de participar. Um homem sempre comprometido com o Brasil e seu povo.

Conheci mais de perto Gildo quando, em 2001 e 2002, dei curso de teoria política da democracia na USP, em companhia de Cicero Araujo -um grande amigo seu.

Naquele momento eu estava voltando para minhas origens nacionalistas e desenvolvimentistas -origens que os então dominantes anos neoliberais do capitalismo haviam tentado apagar- e encontrei em Gildo, ainda que bem mais moço do que eu, um irmão. Um homem intelectual sempre pensando o desenvolvimento econômico, político e social do Brasil.

Um militante de esquerda que sobreviveu aos ataques da direita neoliberal sem para isso precisar aderir a teses irresponsáveis da esquerda radical.

Gildo sempre foi comunista -um comunista da velha cepa, socialista republicano e reformista. Enquanto desde a juventude ele adotou esse partido, eu, nessa mesma fase da vida, pertenci à Ação Católica de Alceu Amoroso Lima e Franco Montoro e, depois, me associei às ideias nacionalistas e desenvolvimentistas do Iseb.

Nessa época -nos anos 1950, mais precisamente no congresso do Partido Comunista de 1958, conforme relatou Gildo em seu livro clássico sobre o Partido Comunista Brasileiro ("A Esquerda Positiva: As Duas Almas do Partido Comunista", 1997)-, o partido decidiu abandonar a ideia de revolução e adotar a tese da revolução capitalista como requisito para uma posterior revolução socialista. Esse fato naturalmente nos aproximava.

Como também o a convicção de Gildo de que, apesar de egoístas, os homens também podem ser solidários. O projeto brasileiro não pode ser apenas democrático, precisa ser também social e nacional. A inserção do Brasil no cenário global não se faz pela submissão aos países ricos, mas pela construção entre nós de uma sociedade mais justa e pela competição bem-sucedida com os países mais desenvolvidos.

Gildo soube criticar os desvios da União Soviética e abandonou a ideia de revolução.

Esperava que o desenvolvimento econômico nacional conduzido por uma coalizão política desenvolvimentista e reformista abriria o caminho do Brasil para uma sociedade menos desigual ou mais justa. Para isso era necessário que ocorresse desenvolvimento nacional.

Estudando as interpretações do Brasil, ou "Linhagens do Pensamento Político Brasileiro" (2007), Gildo redescobriu Oliveira Vianna -o grande intérprete nacionalista do Brasil que a escola de sociologia de São Paulo, dominante nos anos 1970 e 1980, rejeitara porque o grande sociólogo havia se identificado com o governo nacionalista e desenvolvimentista de Getúlio Vargas. Ainda que fizesse parte do Departamento de Ciência Política da USP, que, em princípio, seria o herdeiro do pensamento dependentista daquela escola, Gildo soube reconhecer a importância da construção da nação na obra de grandes pensadores do Brasil, como Vianna, Gilberto Freyre e Celso Furtado.

Gildo Marçal Brandão era um grande professor. Seus alunos são testemunhas do que afirmo.

Ensinava a teoria política e as interpretações do Brasil com a abertura de pensamento e a disposição para o debate que são próprias dos espíritos elevados e realmente democráticos.

Gildo era um agitador de ideias -estava sempre convocando a todos para pensar com ele.

Era um integrador -acreditava que por meio da comunicação e do debate era possível avançar as ideias e as políticas públicas. E era um administrador de ideias e de pessoas -dirigindo com discernimento a Anpocs, desempenhando o papel de editor da "Revista Brasileira de Ciências Sociais".

E tudo isso Gildo fazia com suavidade e gentileza. Parecia não ter pressa, parecia estar sempre à disposição dos outros. Tinha sempre uma palavra amável e um bom sorriso para aqueles que dele se aproximavam. E a disposição para cooperar. Por isso tinha tantos amigos. Por isso todos nós nos sentimos traídos por ele quando nos deixou. Agora não temos alternativa senão lembrar dele com saudade -e também com alegria. Nós o perdemos, mas a alegria e a fraternidade que ele irradiava não foram perdidas.

Luiz Carlos Bresser-Pereira , 75, professor emérito da FGV-SP, é colunista do caderno Dinheiro . Foi ministro da Ciência e Tecnologia e da Administração Federal e Reforma do Estado (governo FHC), além de ministro da Fazenda (governo Sarney). É autor de, entre outras obras, "Desenvolvimento e Crise no Brasil" (Editora 34).

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