sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

À memória de Gildo Marçal Brandão::Amílcar Salas Oroño & Patricio Tierno

DEU NO GRAMSCI E O BRASIL

Morreu um homem. Atingido pelo destino trágico que a todos iguala, realizou o costume humano mais antigo: a morte. Morreu uma voz. Qualidade genérica da pessoa humana que a cada um distingue e faz a palavra intransferível e singular: o discurso.

Nós o conhecemos quando já era um professor e pesquisador consumado, ou, como se diz, um intelectual maduro, e pouco sabemos dele que não sejam os traços básicos da sua biografia ou bem algumas histórias soltas que alguma vez nos contou e que nos pareceram tão reveladoras como sua mesma presença e sua conversa. Cremos, no entanto, poder rememorar algumas coisas que foram e seguem sendo suas, agora de todos nós, e entrever nelas o que poderíamos denominar um legado.

Primeiramente, uma atitude perante o mundo, uma grande predisposição para a luta e uma intensa energia vital ou intelectual, que para o caso são algo único. Essa atitude se traduziu, no princípio, numa prática e, depois, numa prática teórica, ou teorizada, síntese modelar da sempre difícil articulação entre a teoria e a práxis.

Em segundo lugar, cabe lembrar uma doutrina, uma interpretação material e espiritual da vida, que foi se processando ao longo de uma trajetória e que se plasmou, finalmente, num autêntico e belíssimo programa de pesquisa. Tal programa, núcleo desse legado, é hoje não só um imperativo e um ditado, mas também um cânon de leitura e integral chave de compreensão do pensamento político e social do Brasil e, por extensão, de toda forma de pensamento associada à nossa condição latino-americana e periférica.

Aliás, em terceiro e último termo, sua obra, sua criatura intelectual e moral, torna-se por tudo isso universal e vasta, pois nesse credo habitou o que há em todo mestre e em toda inteligência prístina e polêmica, a saber, a política. Como Platão, que desconfiou das falsas verdades estabelecidas, Gildo professou o olhar crítico da realidade social múltipla e os modos não reducionistas de explicá-la e abrangê-la, a visão teórica de conjunto como pressuposto necessário para a ação política, a qual deveria no momento derradeiro conduzir à transformação almejada, a bem dizer, à revolução (ou, como ele mesmo diria, à “revolução de longo alento”) ancorada na história e na captação de sua complexidade certa.

Todo autor cria seus precursores, afirmou Borges. Nesta ocasião, a máxima resulta parcial e curta. Com Gildo, haveria que observar por igual: o autor criou seus continuadores. Deixou, para todos nós, a iniludível tarefa de prosseguir o estudo, os livros, os trabalhos e os dias que constituem uma vida. Será quase impossível fazê-lo tão bem, tão lúcida e organizadamente, o que não obsta que tentemos e queiramos desse modo.

E, a título pessoal, apesar desse seu obrar inabarcável que antes referimos, gostaríamos tão somente de pensar, como de fato aconteceu, que ele muito teve a ver com nossa sorte, nossa formação e nosso destino acadêmico, de maneira análoga à invenção das Linhagens e à comunhão dos que participamos de seus projetos, singraduras que em segredo construiu traçando um rumo institucional e programático. Vista nessa perspectiva, sua obra fica assim tão concluída como inacabada, tão aberta como perfeita em seu sólido arcabouço.

Obrigado, Gildo. Obrigado por tanta práxis, por tanta teoria, por tanto Hegel, por tanto Marx. Obrigado pelos sinais e pelos gestos sutis e humanos, indicações para nosso percurso futuro, que em essência ignoramos, mas cujo oculto plano agora intuímos ou entendemos acaso melhor. Teus trabalhos e teus dias estão feitos. Tua aposta teórico-prática, viva e perdurável. O que resta, os detalhes, as realizações menores correrão por nossa conta. E o resto é política, o resto é teoria. Descanse em paz.

Buenos Aires, fevereiro de 2010.

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