terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Yoshiaki Nakano::Dinamismo doméstico

DEU NO VALOR ECONÔMICO



Retomo neste espaço um tema que já abordei em agosto de 2003. Naquela ocasião, decepcionado com o crescimento da indústria de transformação de apenas 0,8% ao ano de 1980 a 2002 e redução de quase 40 no nível de emprego nesse setor, no mesmo período, defendia a tese de que a nossa indústria sofria de uma insuficiência dinâmica - dado que não tinha mecanismos internos de geração de efeitos dinâmicos, ela tendia à estagnação. Sem melhorar o perfil de distribuição por meio da incorporação de novas camadas da população ao mercado de trabalho, com produtividade e salários maiores e, dessa forma, ampliando a demanda real doméstica, o crescimento de longo prazo seria impossível.

Para um país como o Brasil, que se industrializou construindo uma estrutura produtiva voltado para o mercado doméstico, não seriam as exportações a locomotiva que daria dinamismo à economia. O aumento das exportações e maior abertura comercial seria vital para permitir maiores importações e assim evitar constrangimentos externos bem como para dar competitividade à indústria, mas em última instância, sem dinamismo doméstico seria impossível retomar o crescimento sustentado.

Passado esses anos, a economia brasileira sofreu uma transformação estrutural da maior importância e tudo indica que aquele problema de insuficiência dinâmica foi sanado. Essa transformação teve origem na mudança demográfica que o Brasil assistiu em meados da década de 80, com grande redução na taxa de natalidade e desaceleração no crescimento da população jovem (de 15 a 24 anos). É esse grupo que chega pela primeira vez e pressiona o mercado de trabalho, demandando novos empregos. É o grupo também em que a incidência de desemprego é maior. Vinte anos depois da queda da taxa de natalidade, isto é, a partir de 2004, isso se traduziu numa taxa negativa de crescimento da população jovem, ou seja, sua redução em termos absolutos.

Como se observa no quadro, a partir de 2005 a população jovem de 15 a 24 anos começa declinar em termos absoluto reduzindo a oferta de trabalho e com isso a economia brasileira ultrapassa o ponto de inflexão, do modelo de crescimento de Arthur Lewis, em que para atrair trabalhadores para setores de mais alta produtividade é preciso pagar salários reais mais elevados (acima do "nível de subsistência", isto é, salário mais baixos do setor atrasado). E isso só é possível sem gerar pressões inflacionárias se houver aumento da produtividade física do trabalhador. E é isso que aconteceu nesse início do século XXI. Com redução no excesso de oferta de trabalhadores, a absorção passa a ocorrer com a geração de novos empregos formais e com aumento dos salários reais, ampliando a demanda, gerando novos investimentos, retroalimentando o processo com novos postos de trabalho com produtividade mais elevada etc.. Não foi por acaso que o salário real médio aumentou em torno de 6% ao ano entre 2004 e 2008. A isso se conjuga o fato de que entre 2003 e 2009 foram criados 8,5 milhões de novos postos de trabalho gerando um poderoso circulo virtuoso de crescimento autossustentado.

Do ponto de vista social é quase uma revolução: foi a ascensão da classe C, transformando-se na nova classe média brasileira. Nos últimos 15 anos essa classe passou de 32% para 52% da população, portanto representa hoje mais de 90 milhões de consumidores, incorporados ao mercado e que apropria quase a metade da renda disponível gerada no país. Com isso a economia brasileira está se convertendo numa economia com mercado de consumo em massa das maiores do mundo. Mais importante: nesse momento em que a crise financeira danificou as economia desenvolvidas, provocou queda no comércio mundial e os Estados Unidos deixaram de ser a locomotiva que puxava o resto do mundo como importador e consumidor, em última instância esse dinamismo doméstico passa a ser o grande trunfo do Brasil para transitar para uma nova trajetória de crescimento mais acelerado e com possibilidade de sustentar por longos anos.

Nesse processo, de 2004 para 2009 mais de 30 milhões de pessoas tiveram uma ascensão social. Estamos assistindo, na verdade, a uma mega ascensão social que terá implicações sociais e políticas da maior importância.

Na medida que os setores empresariais se modernizam, enfrentam a competição internacional e aumentam também a demanda de competências técnicas, abre-se o caminho para a ascensão social dessa classe media por meio da educação. O subproduto desse processo será uma consciência política maior dessa classe média que pelo seu tamanho será decisivo nas eleições majoritárias. Mais importante, as pesquisas de opinião mostram que perder emprego é a preocupação maior dessa classe, portanto, estamos introduzindo na agenda dos políticos como item obrigatório a política macroeconômica voltada para a preservação e geração de novos empregos ("É a economia, seu idiota!"). Sem dúvida nenhuma a aprovação popular do governo Lula tem a ver com os 8,5 milhões de empregos que foram gerados até agora.

Para concluir, é preciso lembrar que em termos da dinâmica macroeconômica o crescimento baseado na expansão do consumo de uma nova classe média conflita à primeira vista com a necessidade de ampliação da taxa de investimento e de poupança doméstica. Ou teríamos que recorrer à poupança externa, endividando. Descartando essa estratégia que acaba em crise de balanço de pagamento, a saída é superar o conflito ao longo do tempo por meio do aumento de produtividade. A operação do circulo virtuoso mencionado acima não implica em aumentar a participação do salário na renda nacional, mas gerar novos empregos e aumentar os salários reais de acordo com a produtividade, podendo manter constante essa participação. O fundamental é acelerar o aumento de produtividade pois o salário poderia aumentar no mesmo ritmo, mais do que compensando perdas instantâneas em função do aumento de poupança. A rigor, nos últimos 15 anos, quem aumentou a apropriação da renda nacional foram o governo e o setor financeiro. Se, por exemplo, ao longo dos próximos anos a receita tributária e o consumo do governo aumentarem menos do que a renda nacional será possível aumentar a poupança doméstica e ampliar a taxa de investimento.

Yoshiaki Nakano, ex-secretário da Fazenda do governo Mário Covas (SP), professor e diretor da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas - FGV/EESP, escreve mensalmente às terças-feiras.

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