terça-feira, 2 de março de 2010

A Alemanha e a Eurolândia:: Luiz Gonzaga Belluzzo

DEU NO VALOR ECONÔMICO

Economistas e assemelhados deitam falação sobre a crise dos periféricos europeus. Na Europa e nos Estados Unidos, os colunistas dos grandes jornais de economia e finanças, além dos analistas de sites e blogs, estão aturdidos com a crise fiscal e de balanço de pagamentos que assola os Piigs (Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha) e, de quebra, ameaça a estabilidade do euro.

A maioria dos observadores dá azo a digressões sobre a irresponsabilidade dos governos e consumidores entupidos de dívidas ou cuida de apontar a baixa e declinante competitividade dos acusados como fator determinante de suas agruras. Alguns se debruçam sobre as inconveniências da constituição de um espaço monetário desarmado das condições políticas que pudessem "lastrear" a moeda única num espaço fiscal comum. Apesar disso, a introdução do euro concedeu a todos os membros as vantagens da estabilidade monetária e os ganhos implícitos na emissão de dívidas na moeda única, prerrogativa que, até a eclosão da crise, garantiu aos países mais frágeis spreads bastantes razoáveis sobre os "bunds", títulos de dívida do governo alemão.

Há um grão de verdade nas versões apresentadas acima. Isolada ou conjugadamente elas dão conta de questões importantes, mas, em geral, ignoram que são apenas formas de manifestação de um processo mais profundo de reprodução de desequilíbrios e assimetrias no interior da Eurolândia.

No olho da tormenta estão as relações entre o país hegemônico, a Alemanha, e os demais membros da comunidade comercial e monetária, para não falar dos países do Leste Europeu que "ancoraram" suas moedas frágeis na força do euro. Para ilustrar a argumentação, algumas cifras. Entre 1996 e 2008 as exportações da Alemanha cresceram, em volume, a uma velocidade duas vezes maior do que se ampliaram as vendas externas dos parceiros da zona do euro. No mesmo período, o superávit comercial da Alemanha com os "sócios" da Europa passou de € 20 bilhões para €100 bilhões por ano.

A outra face desse movimento de ganhos expressivos da Alemanha na participação no comércio mundial e, sobretudo, nas transações intra europeias, é a manutenção, em nível elevado, do emprego na indústria manufatureira, mesmo diante a escalada chinesa e asiática. Enquanto a Alemanha, a despeito dos ganhos substanciais de produtividade, sustenta 20% do emprego total na manufatura, os demais países da zona do euro já estão abaixo dos 16% e caindo. A perda de parte do mercado para as exportações alemãs levou ao "inchaço" do emprego nas regiões de baixa produtividade e pouco exigentes no que diz respeito à qualificação da mão de obra. (Isso, em muitos países europeus, tem produzido conflitos entre as aspirações do cidadão "sobre-educado" e as oportunidade de emprego que lhe são oferecidas.)

Já antes da introdução do euro era notória a superioridade da indústria manufatureira alemã e de sua capacidade exportadora diante de seus sócios competidores europeus. Ao longo da primeira década do terceiro milênio, a forte economia alemã ganhou nova musculatura. A adoção da moeda única e seus benefícios - como a redução dos custos decorrentes da flutuação cambial - juntaram-se às agressivas políticas germânicas de competitividade fiscal e salarial e ao apetite dos bancos alemães. Nos últimos anos, o arranjo entre empresas, sindicatos e governo - herança do OrdoLiberalismus, a economia social de mercado - promoveu a coordenação entre os reajustes salariais, a desoneração fiscal das empresas e o crescimento moderado do consumo. Na última década, a demanda de consumo das famílias alemãs cresceu 1,5% abaixo da média europeia.

Estimulados pela euforia financeira, os bancos alemães, ombro a ombro com colegas ingleses e suecos, saíram à caça de devedores sôfregos na zona do euro, sem prejuízo dos novos "consumistas" do leste europeu. Esses, como já foi dito, ancoraram suas moedas no estalão europeu, talvez ensaiando o ingresso no clube privilegiado da moeda única. As dívidas dos consumidores e governos dos Piigs - assim como dos candidatos do Leste Europeu - precipitaram bolhas de consumo, déficits crescentes em conta corrente e agravamento da situação fiscal. Em contrapartida, a economia alemã apresentou elevado superávit em conta corrente, aumento dos impostos sobre o consumo e redução do gasto público. Não é surpreendente que os alemães, os cidadãos comuns, resistam ao socorro a ser prestado por seu governo "austero" aos gastadores, imprudentes consumistas da Grécia, Espanha, Itália etc.

Mas a dinâmica das estruturas é pouco transparente para o cidadão que tem que cuidar da vida. Em seu movimento recente, as transformações da economia global revelam semelhanças entre as vantagens usufruídas pela Alemanha diante dos vizinhos europeus e aquelas gozadas pela China e sua moeda desvalorizada e "estabilizada" nas relações comerciais com os Estados Unidos. A diferença, por enquanto, reside na disposição dos chineses em continuar financiando o déficit externo dos Estados Unidos e a relutância dos alemães em reconhecer a necessidade do socorro financeiro à clientela de baixa competitividade que lhe garante escoamento para as exportações e empregos aos cidadãos. Tais condições impõem limites às medidas de ajustamento nos países devedores dos bancos alemães e compradores deficitários dos produtos da eficiente indústria teutônica.

O economista Adam Posen do Peterson Institute for International Economics diz, com razão, que a Alemanha foi a principal beneficiária dessa "rede de estabilidade" proporcionado pela moeda única. Para Posen "a Alemanha é a maior interessada em prover financiamento para facilitar o processo de ajustamento nas economias da zona do euro que se endividaram excessivamente para gastar em produtos alemães. Isso não apenas deixará os mercados abertos como vai impedir uma contração do crescimento em ambos os lados das relações comerciais."

Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda e professor titular do Instituto de Economia da Unicamp, escreve mensalmente às terças-feiras.

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