DEU NO VALOR ECONÔMICO
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva viu-se numa situação constrangedora em sua última visita a Cuba. Mal chegou à terra dos Castro e foi recepcionado com perguntas sobre sua opinião acerca da morte do dissidente político Orlando Zapata, após uma greve de fome de 85 dias. Identicamente a Raul Castro, Lula lastimou o falecimento do prisioneiro e, como de hábito, acabou por embaralhar-se com as palavras, apontando o absurdo de alguém "deixar-se morrer de greve de fome". Como já apontou Jânio de Freitas em sua coluna de domingo na "Folha de S. Paulo", melhor teria sido uma protocolar declaração diplomática, em que o presidente se esquivasse de situações embaraçosas, invocando a não interferência em assuntos internos como razão para não emitir juízo sobre a tragédia. "Melhor", porque dessa forma Lula e seu governo ofereceriam menores oportunidades para se exporem ao opróbrio.
As reprimendas generalizadas provieram tanto do Brasil - onde é corriqueiro que a oposição e as vozes críticas da imprensa apupem o popularíssimo presidente - como do exterior - onde Lula costuma ser sucesso de público e crítica, recebendo inclusive prêmios, como o de "Estadista do Ano", a ser-lhe entregue em Davos, aonde não compareceu por conta de sua crise hipertensiva. As razões para tanto mal-estar, entretanto, são de natureza variada e podemos pensar em ao menos três delas.
A primeira razão é certa assimetria crítica em relação ao posicionamento esperado de um chefe de Estado que, em visita a outro país, é posto diante de questionamentos acerca das malfeitorias dos visitados. Imagine-se, por exemplo, que Lula chegasse à China e fosse inquirido sobre a liberdade de expressão naquele país, ou sobre a recente execução de um doente mental britânico acusado de tráfico de drogas. Por acaso seria de se esperar uma dura crítica do presidente brasileiro aos chineses, já que o regime de Pequim é indubitavelmente uma ditadura das mais cruéis? Se ele a fizesse, é provável que muitos de seus atuais críticos o acusassem de prejudicar os rentáveis negócios brasileiros com a China, ao imiscuir-se em assuntos domésticos de outro país. Ou, então, suponhamos que numa visita a Israel o presidente Lula fosse inquirido sobre sua opinião acerca dos reiterados assentamentos ilegais de colonos em território palestino ocupado, ou a recente decisão de anexar como patrimônio histórico israelense a mesquita de Ibrahim - local sagrado para os muçulmanos e localizado na Cisjordânia ilegalmente ocupada. Já que Israel tem reiteradamente desrespeitado as resoluções da ONU sobre a ocupação dos territórios palestinos, esperar-se-ia por acaso uma resposta condenatória do presidente brasileiro? É pouco provável e, se ele a fizesse, certamente receberia críticas severas, de que não fala a linguagem da diplomacia.
Por que, então, a coisa deveria ser diferente no caso cubano? Talvez por causa da segunda razão para o mal-estar. Ora, o governo brasileiro não tem se esquivado de opinar sobre a situação interna de outros países - todavia, fazendo-o normalmente de forma elogiosa aos governantes e crítica à oposição. Foi assim no caso do Irã, quando a suspeitíssima reeleição do presidente Mahmoud Ahmadinejad foi elogiada por Lula, que acusou os estridentes (e fortemente reprimidos) contestadores do presidente iraniano de maus perdedores.
Também tem sido assim nos reiterados elogios de Lula à democracia [sic] venezuelana, como na seguinte declaração, feita em novembro de 2007: "Podem criticar o Chávez por qualquer outra coisa. Inventem uma coisa para criticar o Chávez. Agora, por falta de democracia na Venezuela, não é. O que eu sei é que na Venezuela já tiveram três referendos, já tiveram três eleições, já tiveram quatro plebiscitos. O que não falta é discussão. Eu acho que democracia é assim: a gente submete aquilo que a gente acredita ao povo e o povo decide. Cabe a nós acatar o resultado". Considerando-se que a oposição venezuelana vem constantemente queixando-se da falta de democracia naquele país, não seria esse posicionamento de Lula uma intromissão na política interna de nossos vizinhos, em prol do governo? Ironicamente, no mesmo contexto da tomada de partido em favor de Chávez, o presidente brasileiro emendou: "Precisamos apenas respeitar a autonomia e a soberania de cada país. Se nós dermos menos palpite nas regras do jogo dos outros países e olharmos o que nós estamos fazendo, todos nós sairemos ganhando. Se a gente achar que a gente pode dar palpite em tudo, que só pode acontecer no mundo aquilo que a gente gosta, aquilo que a gente quer, nós seremos eternamente infelizes". Para além da contradição entre ambas as declarações do presidente, concordar com a hedonista sugestão de Lula nesta segunda afirmação implica supor que o Brasil deveria ter-se omitido no caso de Honduras; mas fez o oposto disto. Reconheça-se, o resultado foi bem infeliz.
A terceira razão para o mal-estar é a histórica e insensata defesa do regime cubano por muitos setores da esquerda em geral - e do PT, em particular. Ora, não haveria muitas dúvidas de que Lula não compartilha da orientação política repressiva do regime chinês, nem do reiterado desrespeito do Estado israelense aos direitos humanos dos palestinos; também não é razoável supor que a aproximação com o Irã vá além do oportunismo de uma política externa de eficácia bastante duvidosa, voltada a posicionar o Brasil como potencial mediador de quaisquer partes em conflito mundo afora. Já algo muito diferente ocorre quando se trata de iniqüidades cometidas por governos/regimes que figuram simbolicamente no campo da esquerda. Nestes casos, os críticos exigem que Lula compense - mediante declarações que seriam diplomaticamente inadequadas - o imenso passivo de legitimidade democrática provocado pela bizarra persistência de setores do PT em defender tanto a política chavista de aniquilação sistemática dos contrapoderes, como a ditadura cubana e sua repressão aos dissidentes. Noutras palavras, exige-se do presidente que remedeie um erro, cometendo outro.
Mas convenhamos, é compreensível que se faça esta crítica assimétrica. Afinal, é impossível aceitar como razoável o posicionamento em favor do regime cubano por interlocutores supostamente esclarecidos e que, para uma infinidade de outros temas, mostram-se capazes de posições bem menos sujeitas ao tipo de prestidigitação argumentativa que visa justificar o autoritarismo com base na garantia de bem-estar social ou igualdade. Ou seja, reativamente, uma incoerência suscita outra.
Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP. O titular da coluna, Raymundo Costa, está em férias
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva viu-se numa situação constrangedora em sua última visita a Cuba. Mal chegou à terra dos Castro e foi recepcionado com perguntas sobre sua opinião acerca da morte do dissidente político Orlando Zapata, após uma greve de fome de 85 dias. Identicamente a Raul Castro, Lula lastimou o falecimento do prisioneiro e, como de hábito, acabou por embaralhar-se com as palavras, apontando o absurdo de alguém "deixar-se morrer de greve de fome". Como já apontou Jânio de Freitas em sua coluna de domingo na "Folha de S. Paulo", melhor teria sido uma protocolar declaração diplomática, em que o presidente se esquivasse de situações embaraçosas, invocando a não interferência em assuntos internos como razão para não emitir juízo sobre a tragédia. "Melhor", porque dessa forma Lula e seu governo ofereceriam menores oportunidades para se exporem ao opróbrio.
As reprimendas generalizadas provieram tanto do Brasil - onde é corriqueiro que a oposição e as vozes críticas da imprensa apupem o popularíssimo presidente - como do exterior - onde Lula costuma ser sucesso de público e crítica, recebendo inclusive prêmios, como o de "Estadista do Ano", a ser-lhe entregue em Davos, aonde não compareceu por conta de sua crise hipertensiva. As razões para tanto mal-estar, entretanto, são de natureza variada e podemos pensar em ao menos três delas.
A primeira razão é certa assimetria crítica em relação ao posicionamento esperado de um chefe de Estado que, em visita a outro país, é posto diante de questionamentos acerca das malfeitorias dos visitados. Imagine-se, por exemplo, que Lula chegasse à China e fosse inquirido sobre a liberdade de expressão naquele país, ou sobre a recente execução de um doente mental britânico acusado de tráfico de drogas. Por acaso seria de se esperar uma dura crítica do presidente brasileiro aos chineses, já que o regime de Pequim é indubitavelmente uma ditadura das mais cruéis? Se ele a fizesse, é provável que muitos de seus atuais críticos o acusassem de prejudicar os rentáveis negócios brasileiros com a China, ao imiscuir-se em assuntos domésticos de outro país. Ou, então, suponhamos que numa visita a Israel o presidente Lula fosse inquirido sobre sua opinião acerca dos reiterados assentamentos ilegais de colonos em território palestino ocupado, ou a recente decisão de anexar como patrimônio histórico israelense a mesquita de Ibrahim - local sagrado para os muçulmanos e localizado na Cisjordânia ilegalmente ocupada. Já que Israel tem reiteradamente desrespeitado as resoluções da ONU sobre a ocupação dos territórios palestinos, esperar-se-ia por acaso uma resposta condenatória do presidente brasileiro? É pouco provável e, se ele a fizesse, certamente receberia críticas severas, de que não fala a linguagem da diplomacia.
Por que, então, a coisa deveria ser diferente no caso cubano? Talvez por causa da segunda razão para o mal-estar. Ora, o governo brasileiro não tem se esquivado de opinar sobre a situação interna de outros países - todavia, fazendo-o normalmente de forma elogiosa aos governantes e crítica à oposição. Foi assim no caso do Irã, quando a suspeitíssima reeleição do presidente Mahmoud Ahmadinejad foi elogiada por Lula, que acusou os estridentes (e fortemente reprimidos) contestadores do presidente iraniano de maus perdedores.
Também tem sido assim nos reiterados elogios de Lula à democracia [sic] venezuelana, como na seguinte declaração, feita em novembro de 2007: "Podem criticar o Chávez por qualquer outra coisa. Inventem uma coisa para criticar o Chávez. Agora, por falta de democracia na Venezuela, não é. O que eu sei é que na Venezuela já tiveram três referendos, já tiveram três eleições, já tiveram quatro plebiscitos. O que não falta é discussão. Eu acho que democracia é assim: a gente submete aquilo que a gente acredita ao povo e o povo decide. Cabe a nós acatar o resultado". Considerando-se que a oposição venezuelana vem constantemente queixando-se da falta de democracia naquele país, não seria esse posicionamento de Lula uma intromissão na política interna de nossos vizinhos, em prol do governo? Ironicamente, no mesmo contexto da tomada de partido em favor de Chávez, o presidente brasileiro emendou: "Precisamos apenas respeitar a autonomia e a soberania de cada país. Se nós dermos menos palpite nas regras do jogo dos outros países e olharmos o que nós estamos fazendo, todos nós sairemos ganhando. Se a gente achar que a gente pode dar palpite em tudo, que só pode acontecer no mundo aquilo que a gente gosta, aquilo que a gente quer, nós seremos eternamente infelizes". Para além da contradição entre ambas as declarações do presidente, concordar com a hedonista sugestão de Lula nesta segunda afirmação implica supor que o Brasil deveria ter-se omitido no caso de Honduras; mas fez o oposto disto. Reconheça-se, o resultado foi bem infeliz.
A terceira razão para o mal-estar é a histórica e insensata defesa do regime cubano por muitos setores da esquerda em geral - e do PT, em particular. Ora, não haveria muitas dúvidas de que Lula não compartilha da orientação política repressiva do regime chinês, nem do reiterado desrespeito do Estado israelense aos direitos humanos dos palestinos; também não é razoável supor que a aproximação com o Irã vá além do oportunismo de uma política externa de eficácia bastante duvidosa, voltada a posicionar o Brasil como potencial mediador de quaisquer partes em conflito mundo afora. Já algo muito diferente ocorre quando se trata de iniqüidades cometidas por governos/regimes que figuram simbolicamente no campo da esquerda. Nestes casos, os críticos exigem que Lula compense - mediante declarações que seriam diplomaticamente inadequadas - o imenso passivo de legitimidade democrática provocado pela bizarra persistência de setores do PT em defender tanto a política chavista de aniquilação sistemática dos contrapoderes, como a ditadura cubana e sua repressão aos dissidentes. Noutras palavras, exige-se do presidente que remedeie um erro, cometendo outro.
Mas convenhamos, é compreensível que se faça esta crítica assimétrica. Afinal, é impossível aceitar como razoável o posicionamento em favor do regime cubano por interlocutores supostamente esclarecidos e que, para uma infinidade de outros temas, mostram-se capazes de posições bem menos sujeitas ao tipo de prestidigitação argumentativa que visa justificar o autoritarismo com base na garantia de bem-estar social ou igualdade. Ou seja, reativamente, uma incoerência suscita outra.
Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP. O titular da coluna, Raymundo Costa, está em férias
Afinal, o que é que Lula foi mesmo fazer em Cuba?
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