segunda-feira, 3 de maio de 2010

Faz dez anos, o dinheiro público passou a ser tratado com mais respeito

DEU NO VALOR ECONÔMICO

Claudia Safatle, de Brasília

Um contrabando no projeto da reforma administrativa forjou o nascimento da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que produziu, em dez anos de vigência, uma profunda reforma nas finanças dos Estados e municípios brasileiros. As primeiras discussões sobre a necessidade de um código de conduta para as finanças públicas começou, por iniciativa do então deputado José Serra, hoje candidato à Presidência da República pelo PSDB, na Assembleia Constituinte de 1988. Proposto por Serra, o artigo 163 da Constituição remetia a uma lei complementar a tarefa de disciplinar as finanças públicas.

Uma década depois, em 1998, a emenda constitucional 19, que tratava da reforma administrativa, recebeu, no Congresso, uma emenda que até hoje não se sabe ao certo quem escreveu. Por ela, o presidente da República, na época Fernando Henrique Cardoso, teria que enviar ao Congresso, em 180 dias, um projeto de lei complementar com a proposta de um Código de Finanças Públicas. E isso foi feito.

Um grupo de técnicos elaborou o anteprojeto, inspirado nos modelos vigentes na Austrália e Nova Zelândia, que davam à questão fiscal um tratamento de mais longo prazo. O nome, Lei de Responsabilidade Fiscal, foi copiado da Nova Zelândia.

Os primeiros rascunhos começaram a ser escritos pelos economistas e assessores oficiais José Roberto Afonso, Martus Tavares, Guilherme Gomes Dias, Selene Nunes, Amaury Bier, entre outros. Cid Heráclito, jurista, cuidou dos aspectos legais. Na Câmara, Eugenio Greggiani se encarregou de coordenar os trabalhos da Comissão de Orçamento.

Colocado em audiência pública, o anteprojeto recebeu 5 mil propostas, além das sugeridas pelos parlamentares, que, surpreendentemente, tornaram a lei mais austera. Votada em 25 de janeiro de 2000, foi aprovada por 385 votos contra 86, estes dos partidos de oposição na época (PT, PC do B e PSB).

Sua sanção, em 4 de maio daquele ano, como lei complementar 101, interrompeu uma prática que já fazia parte das comemorações das festas de fim de ano: entre o Natal e o Ano Novo, o governo editava os pacotes de medidas com aumentos de impostos e cortes de gastos, o chamado "pacote fiscal", que iria viabilizar as contas do ano seguinte.

A LRF, que marcou o início de uma nova conduta dos prefeitos, governadores e presidentes da República, do Legislativo e do Judiciário no trato do dinheiro público, foi precedida da exaustão em série das finanças estaduais e da quebradeira dos bancos estaduais, que acabaram, em sua grande maioria, privatizados. Muito provavelmente, a crise financeira em que os Estados e seus bancos foram se envolvendo nos anos 1980 e 1990 serviu de incentivo para que a lei complementar 101 recebesse apoio da sociedade e do parlamento.

Alguns estudiosos das finanças públicas estabelecem relação entre a falência de quase todos os Estados, juntamente com seus bancos, e a democratização do país nos anos 1980, na medida em que o governo federal teria afrouxado os controles sobre os governadores eleitos. O uso dos bancos estaduais como financiadores das despesas, inclusive dos gastos com investimentos nos Estados, porém, começou a fazer parte da rotina dos governos durante a ditadura militar, como forma de contornar a centralização das receitas na União.

O péssimo manejo das instituições financeiras, pautado mais pelos interesses políticos do que pelas boas técnicas bancárias, comprometeu as finanças dos bancos estaduais na metade final dos anos 1980. Em 1987, o Banco Central cria um programa (Raet), pelo qual a autoridade monetaria assume a administração de bancos com problemas. Naquele momento, 28 instituições financeiras estaduais se submeteram à gestão do BC e três bancos de desenvolvimento foram liquidados.

Entre 1983 e 1991, segundo estudos do Banco Central, a União gastou R$ 61,5 bilhões com empréstimos e subsídios a essas instituições, que, mesmo assim, ainda apresentavam patrimônio líquido negativo.

A superinflação acobertava os problemas dos bancos e dos Tesouros estaduais, até que o Plano Real, de 1994, descerra a cortina. Sem a receita inflacionária, a vida dos administradores daqueles bancos, dos governadores e de prefeitos de grandes capitais ficava inviável.

Em 1995, o governo federal dá início a uma sequência de medidas que termina com ampla renegociação das dívidas estaduais por 30 anos, em troca de medidas de austeridade, com metas predefinidas, que os governos passam a ter que cumprir.

Ao final do processo de negociação, em 1998, o Tesouro Nacional tinha assumido R$ 101,9 bilhões de dívidas estaduais. Desses, R$ 77,5 bilhões foram refinanciados por até 30 anos, a uma taxa de juros real mínima de 6% ao ano. Outros R$ 11,4 bilhões seriam amortizados, pelos Estados, com as receitas de privatização de empresas estaduais que os governos se comprometiam a fazer; e R$ 13 bilhões corresponderam à diferença de encargos pela rolagem das dívidas entre a data de corte e a data de assinatura dos contratos (valores em reais constantes de 1998).

A Lei de Responsabilidade Fiscal encontra o caminho das finanças públicas estaduais e municipais pavimentado pelas renegociações de dívidas e as contas federais em processo de ajuste. Isso, porém, não reduziu sua importância, sobretudo em termos prudenciais.

Nos 75 artigos, a LRF impõe tetos nos gastos com pessoal nos três níveis de governo e nos três poderes; proíbe que bancos públicos financiem seus controladores e limita as possibilidades de endividamento dos Estados e municípios. A União, que também deveria estar sob tetos de endividamento, acabou se safando até hoje.

Uma década depois, está claro onde a lei funcionou e os flancos que ficaram abertos. Um dos princípios básicos da LRF - o de que novas despesas só podem ser criadas com receitas previamente definidas - nem sempre é respeitado. Os limites impostos para os gastos com pessoal nas três esferas de governo e nos três poderes têm se mostrado frouxos; e, depois de todo esse tempo, ainda há regulamentações por fazer, como a limitação do endividamento da União e a criação do Conselho de Gestão Fiscal.

A relevância da LRF foi eloquente, principalmente no equilíbrio das finanças dos governos subnacionais (ver tabela) e seu modelo serve de inspiração para outros países. Falhas são encontradas, mas a mais gritante diz respeito à não punição de quem ignora a lei.

No Congresso, discute-se agora o próximo "front" de ação: construir uma Lei de Responsabilidade Orçamentária. Um projeto de lei complementar com essa sugestão tramita no Senado. De autoria do senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), a proposta está na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) e pretende, nos seus 138 artigos, imprimir mudança radical na forma como se faz e se conduz o orçamento no Executivo e no Legislativo. O senador Francisco Dornelles (PP-RJ), relator do projeto na CAE, já está conversando com o governo para elaborar seu parecer, que espera ser votado ainda este mês.

O ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, apoia a aprovação de uma nova legislação, que substitua a lei 4.320, que desde 1964 rege os orçamentos federal, estadual e municipal. Mas tem sérias críticas aos termos do projeto de lei em discussão. Principalmente, à ideia de se permitir a abertura para mudanças na renegociação das dívidas estaduais.

A discussão do modo como se conduz o orçamento no país é crucial. O processo é permeado por caminhos tortuosos, que deixam portas de toda sorte abertas para a corrupção. E a execução do orçamento, por ser meramente autorizativa, transformou-se num perverso mecanismo de barganha política.

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