sexta-feira, 16 de julho de 2010

CANTO PARA AS TRANSFORMAÇÕES DO HOMEM * :: Moacyr Felix


A Ênio de Silveira,
M. Cavalcanti Proença
Moacir Werneck de Castro e Miguel Arraes de Alencar

A todos os que sonham e trabalham por um mundo melhor, libertado dos obscurantismos e dos dogmas, do apodrecimento da própria existência pela miséria física e da perda dos valores dos humanismo pela miséria moral.


(II) ENREDO

I

Onde se destrói o mundo em que vivo
aí estou.
Onde há destruição, aí se define o meu caminho.
Onde os deuses se desmoronam é que apareço
sem rosto
atrás de suas formas feitas de noite e de medo.
Onde se morre, onde se nasce.
Onde se morre é que eu renasço.

- Stirb und werde!
- “Morre e transmuda-te!”
Está não é, meu velho Goethe, a verdade das verdades, a [ignorada
pelos que apenas
“um hóspede triste sobre a escura terra”?!
A morte e o fogo e a humilhação e o ódio
em vida e verde devem ser devolvidos.

II


Depois de silenciar o vozerio das cores
nas coisas cinzas que não dizem mais
do olhar humano que as fizera humanas,
a chama desce, e em rodopios tontos
retorna ao calor íntimo da terra,
ao berço rubro, à causa que realiza
este mistério grande de existir
o peixe e a estrela, o movimento e a cor
e o som do homem a se querer de amor.
Medo e humilhação e ódio
Assim alimentados serão devolvidos.

III


Medo e humilhação e ódio
devem ser devolvidos:
infenso ao homem é guardá-los em sua alma
receptáculo de coisas maiores
(como as águas da lua a perlavar a noite
num rosto de criança que dorme
ou numa anca macia de mulher nua).
Porque emudeceu a voz mais alta de minha infância?
Que ternura imunda rouba
A fala do mar dos pés de uma criança?
Que nos faz sobreviver, adultos
somente em medo e humilhação e ódio?
Querer-me novo é querer-me mais que morto
em mim ou nesta existência que me olha.
É querer-me outro que não este em que me instalaram.
É não parar, não querer parar os eixos
desta roda de luz
- plural de eternidades
a dissolver o bronze entre os escombros do que eu era.
Nesta banda podre do tempo
A água não inventa rios
nem ouve os cantos do mar.
Nestas escarpa onde habitam os dourados senhores do sul
ninguém nasce, ninguém agoniza mais de uma vez.
Aqui o sangue se enclausura
numa ordem arrumada como a das geladeiras.
E não sabe mais a ciência do orvalho numa alegria de flor.
Aqui a morte interrompe apenas o esforço de durar.
Aqui
Medo e humilhação e ódio
não devem ser recebidos
Muitas vezes essa é a única forma concreta de amar
aqui.

IV


Quando ensolarada pelas raízes do fogo, a vida
é o coração ligado ao velocíssimo novelo das galáxias
e na fúria de uma lágrima, senhores, e no desejo
de todo amor que se descobre
fogo e movimento e transformação
eu poderia doar-vos o acontecimento ilimitado,
o reinado da ordem e do caos anteriores a todos os deuses.

Porém a treva, a treva deste mundo em que eu escuto
estilhaçar-se a vida em seu cristal escuro,
[a treva
só me permite em vossas mãos (e nas minhas)
apenas com esses parcos cacos de mim próprio...

Os vossos mitos são fortes, senhores, muito fortes.

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