segunda-feira, 1 de novembro de 2010

O sonho da vida inteira fica pelo caminho

DEU EM O GLOBO

Derrotado pela segunda vez numa disputa presidencial, Serra terá mais dificuldades para voltar à cena em 2014

José Casado

Meio século atrás, José Serra viu-se pela primeira vez sob holofotes. Aos 16 anos, vestiu a pele de João Ignácio Car valho, protagonista de “Vento forte para um papagaio subir”, a obra inaugural do teatro orgiástico de José Celso Martinez Corrêa, um renovador da dramaturgia brasileira.

Na história, o personagem medita sobre a necessidade de libertação, de ruptura com a vida modorrenta na sua pequena cidade recém destruída por uma ventania.

Sempre gentil, e até bem-humorado, João Ignácio seduz o público e o leva à fronteira entre a representação e a realidade, com uma proposta de renascimento coletivo.

Cinco décadas depois, Serra voltou ao centro do palco, na disputa pelo papel mais cobiçado da arena política brasileira: — Eu me preparei a vida inteira para ser presidente — argumentou durante toda a campanha presidencial.

Não se sabe qual vai ser o seu rumo, após a segunda derrota em uma disputa pelo poder central (a primeira foi em 2002, quando perdeu para Lula.) Foi a décima eleição que disputou desde 1962, quando se elegeu no grêmio da Politécnica da Universidade de São Paulo (USP).

Derrotas nas urnas são sempre experiências inesquecíveis para a maioria dos políticos. Alguns superam, outros não. Lula, por exemplo, até hoje se ressente das duas eleições que perdeu para Fernando Henrique Cardoso, no primeiro turno.

No caso de Serra, que venceu sete e perdeu três — incluída a eleição de ontem — , elas delinearam “perfeitas curvas senoidais” na sua carreira.

Político amante da razão

Entre viagens ao topo e à planície da política, Serra guardou uma citação do poeta indiano Rudyard Kipling, anotada pelo escritor argentino Jorge Luis Borges: “Ninguém fracassa tanto como imagina.

Ninguém tem tanto sucesso como imagina.” E passou a repeti-la em discursos, numa espécie de eco do personagem João Ignácio quando, do palco, incitava o público a ter coragem para se libertar usando a própria razão: — (Faço essa citação) porque sei muito bem que eleição confere legitimidade jurídica ao governante — justifica. — Mas a confiança do povo, a única capaz de conferir amplitude e qualidade a essa legitimidade, só se mantém se o eleito for capaz de corresponder às expectativas criadas.

Aos 68 anos, agora terá de decidir se prossegue na política ou se recolhe à rotina de professor universitário. Ele é, antes de tudo, um político amante da razão. Estudou engenharia, fez mestrado em economia, é professor de matemática e se diverte com equações — eis o seu enunciado de um teorema da política: Progresso (P) resulta da soma de Esperança (E) com Competência (C), Obstinação (O), Vontade (V) e Ação (A) = PECOVA.
Hábitos cartesianos permeiam suas ações. Na Constituinte de 1988, negociou os capítulos da Carta sobre Tributação, Orçamento e Finanças a partir da divisão das dificuldades em quantas partes fosse possível e necessário para resolvê-las.

Planejava replicar a fórmula no governo.

No universo serrista, as leis numéricas estão sempre associadas às leis do mundo, e em paradoxal convivência com superstições, como sempre sair pela porta por onde entrou. Ele tem fascínio pela Física, mas reluta a aceitar viagens de avião — é mais pesado que o ar (até pouco tempo telefonava para alguém antes de embarcar, avisando que aquela poderia ser a última conversa).

Carrega a fama de mal humorado, o que considera uma injustiça. É hipocondríaco, avesso ao cheiro de alho e cebola e a latidos de cães na noite. Insone, escreve e telefona a amigos de madrugada — às vezes, enquanto faz exercícios.

Quem procurou pistas sobre o governo Serra na propaganda eleitoral, nas últimas dez semanas, pode ter se frustrado e visto um candidato aparentemente sucumbido à sedução do marketing, mas que saltou dos 32,61% dos votos no primeiro turno para pouco mais de 44% no segundo.

Ele, realmente, não se preocupou em explicar. Por exemplo: como manteria a coerência entre as promessas de austeridade fiscal, de aumento de gastos públicos e de redução de tributos (expandir programas sociais, elevar o salário mínimo para R$ 600, reajustar aposentadorias em 10% e cortar impostos sobre os salários, a cesta básica, a energia elétrica e o saneamento).

A eleição terminou em um indigente debate no segundo turno, sem que ficassem conhecidos os argumentos de Serra (assim como os de Dilma Rousseff) na discussão sobre os rumos da economia — especialmente sobre a responsabilidade fiscal na gestão das contas federais.

Experiência na área Serra tem: consolidou o capítulo constitucional sobre Orçamento, formulou a lei de diretrizes e ajudou a montar a comissão parlamentar setorial.

No governo Fernando Henrique Cardoso (1995, nove meses depois do Plano Real), executou um dos maiores cortes orçamentários da história republicana.

No dia da posse, convenceu o presidente a vetar praticamente todas as emendas feitas pelo Congresso. Ministro do Planejamento, Serra queria ter controle absoluto sobre o gasto público.

Ideias estão em livros e discursos

Provocou um terremoto político.

E sem êxito imediato, por causa de um reajuste (de 25%) acima da inflação (média de 20% ao mês) nos salários do funcionalismo, acordado no ano anterior, além de um aumento no salário mínimo, que afetou o caixa da Previdência. As contas governamentais pioraram. Na caça a recursos para fechar as contas, o Tesouro passou a pagar juros em média 35% acima da inflação a quem comprava títulos públicos.

O controle de gastos só começou a ter efeitos perceptíveis um ano depois.

— Quem governa deve acreditar no planejamento — repetiu em comícios. —

Cultivar a austeridade fiscal significa fazer melhor e mais com os mesmos recursos.

Governo com déficit galopante é governo fraco.

Até esboçou o anúncio de metas na direção do “déficit zero”, com mudanças para estimular o investimento, mas não foi além do ensaio.

Depois meio século empenhado na conquista do poder, Serra deixou de ser um mistério na política.

Suas ideias acumulam-se em livros, artigos e discursos.

Num arroubo, chegou a registrar dois deles na Justiça Eleitoral como “programa de governo”.

Mas, por razões insondáveis, o verdadeiro programa (280 páginas) jamais foi divulgado. O candidato se limitou a repetir uma síntese da sua visão do papel do Estado nos palanques: — É preciso que o Estado seja controlado por ele próprio, que funcione coerente, do ponto de vista moral, da eficiência e dos objetivos perseguidos, que aja em função do interesse público, distanciado das vorazes tentativas neopatrimonialistas de privatizá-lo. E é preciso, também, que o Estado seja cada vez mais controlado pela sociedade.

Como há 50 anos, na pele do personagem João Ignácio Carvalho, Serra voltou ao centro do palco com a proposta de superar limites para um renascimento coletivo. E como acontecera em 2002, não conseguiu a adesão suficiente do público.

Faltaram-lhe votos.

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