domingo, 19 de dezembro de 2010

No apagar das luzes :: Rubens Ricupero

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Reconhecer o Estado palestino se enquadra nas retificações que Dilma sinaliza na diplomacia?

O reconhecimento do Estado palestino é dessas iniciativas no apagar das luzes que os governos tomam para criar fato consumado para os sucessores ou para poupar-lhes o desgaste de decisão controvertida.

Mais do que o gesto em si, interessa indagar em que medida ele se enquadra ou não nas retificações de rumo que Dilma Rousseff sinaliza na diplomacia, na política econômica e na política estrita. Em outras palavras, a decisão será o fim de uma política ou o começo de outra?

Na substância, é difícil contestar o reconhecimento. Tornou-se universal a tese em favor da coexistência de Israel e do Estado palestino. Em relação às fronteiras de 1967, a recusa da aquisição de território por conquista militar decorre tanto das resoluções da ONU e do direito internacional quanto da doutrina sempre sustentada pelo Brasil. Restam oportunidade e conveniência. A primeira pode ser fabricada, como se vê da desenxabida versão de que a decisão só saiu agora por causa da carta do presidente palestino...

A conveniência não é quanto ao efeito sobre o próprio problema. Desse ponto de vista, conforme admitiu o ministro Amorim, a medida é simbólica, pois nada mudou no terreno. As fronteiras palestinas vão depender, como sempre, de negociação que refletirá a correlação das forças em presença. O máximo que a iniciativa brasileira poderá fazer e estimular passo idêntico de países como a Argentina e o Uruguai, pouco influindo sobre os que contam em termos de poder: os aliados europeus da Otan e outras nações próximas dos EUA.

Da perspectiva do interesse nacional, o gesto acentua tendência anterior de aproximar o governo brasileiro dos árabes e distanciá-lo de Israel e dos americanos. Em relação à esses últimos, ao Congresso, à imprensa e aos lobbies judaicos dos EUA (bem como da comunidade judaica no Brasil), haverá perdas adicionais. O mínimo que se pode dizer é que não tornará mais fácil promover junto a tais setores causas brasileiras até de caráter comercial, para não falar da aspiração ao Conselho de Segurança.

Como não é claro o que se espera em troca obter dos árabes, deve-se deduzir que a decisão é questão de princípio ou doutrina, não de interesse. Nada haveria a objetar se a diplomacia de Lula se destacasse pela coerência na fidelidade aos princípios. Não é esse o caso, como se conclui dos votos do Brasil sobre direitos humanos ou da inconsistência de condenar golpe contra a democracia em Honduras, ao mesmo tempo em que se cortejam ditaduras assumidas como Cuba ou o Irã.

Portanto, não sendo matéria de princípios, só pode ser de inspiração doutrinário-ideológica. De fato, as circunstâncias do reconhecimento - seu momenta tardio, o efeito surpresa de não ter havido debate - se ajustam a guinada da política exterior na última metade do segundo mandato: Honduras, condenação ao acordo militar EUA-Colômbia, declarações sobre greve de fome de prisioneiros de consciência em Cuba, visita ao Irã e acordo sobre urânio enriquecido.

O traço comum a essas ações é que reanimam o apoio de correntes de esquerda e tradição antiamericana, intensificando a oposição de setores centristas ou conservadores, inclusive a maioria da imprensa e meios empresariais. Isto é, são medidas que não visam a edificar consenso; ao contrário, é como se, desistindo de converter os adversários, o governo tivesse optado par radicalizar.

O estilo "paz e amor" foi posto de lado na campanha, partindo-se para ataques a mídia, ameaças de lei de "controle social", apelos a "extirpar" a oposição, seguidos da efetiva liquidação de candidaturas de oposicionistas aguerridos, sem esquecer os problemas suscitados pelo plano impropriamente chamado de direitos humanos.

Como revelou o mapa eleitoral do segundo turno, uma reação de medo a essa polarização alienou o apoio das classes médias, levando os estrategistas da situação a mudarem de tom. Desde o discurso da vitória, tem sido nítido o esforço de exorcizar o medo e reocupar o centro. É o que se percebe nos apelos à união nacional, garantias de liberdade de imprensa e religião, promessas de cortes de gastos, combate à inflação. O esforço estendeu-se à diplomacia na decisão de mudar o comando do Itamaraty e na entrevista na qual a presidente eleita condenou o apedrejamento no Irã, mostrou-se sensível aos direitos humanos e fez aceno positivo aos EUA.

Ora, não há como harmonizar o espírito conciliador de tais gestos com o do reconhecimento. Este parece marcar o fim da política anterior, ou quase (pode haver, sob pretexto natalino, a libertação do terrorista Cesare Battisti ou algo parecido). A permanência de boa parte dos ministros, inclusive do assessor de política externa da Presidência, indica uma continuidade básica, temperada pelos sinais de mudanças importantes e animadoras.

Até agora a mudança é de discurso. É preciso, quanto antes, que ela saia do papel e se traduza em fatos: cortes efetivos, abandono de projetos inviáveis como o trem-bala, conciliação do crescimento com o meio ambiente.


Rubens Ricupero, diplomata e ex-ministro da Fazenda: foi secretário-geral da UNCTAD - Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento

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