DEU EM GRAMSCI E O BRASIL
Aprendemos uma noção conceitual do que seja desenvolvimento econômico e desenvolvimento social com elementos bem estruturados, objetivos, distantes, dicotômicos e antagônicos. O primeiro passo a ser dado na discussão sobre inclusão e desenvolvimento, para superar tal dicotomia, é nos afastarmos dos dois conceitos e construir um novo e único, integrando o econômico e o social numa só noção: a do desenvolvimento.
De que adianta? Esta é a pergunta que, enquanto sujeitos individuais ou coletivos, enquanto simples cidadãos ou poderosas instituições, devemos nos impor. De que adianta? Servimos para algo? Para quê? E o nosso para quê, faz avançar? Em que direção? O verbo “adiantar” encerra pelo menos dois sentidos: o da utilidade e o do avanço. Serviu para alguma coisa? Fez alguma coisa caminhar? E nesta indagação podemos somar um terceiro sentido, o que traz o conteúdo ético: caminhou em que direção? Atendeu a que interesses? A quais opções políticas? Precisamos dar respostas a estas perguntas aparentemente simples e do senso comum, mas de um significado inestimável quando se pensa em transformação social e desenvolvimento.
Como fazer rupturas e promover mudanças, criar nova massa crítica, novos consensos e pactos, criar vontades e forças políticas para manter o que deve ser mantido e mudar o que deve ser mudado? Precisamos de novos paradigmas, mas construí-los não é tarefa nem decisão, e nem sequer possibilidade, para um grupo de notáveis ou iluminados. Criar novos paradigmas exige um processo de construção coletiva, com incorporação de amplos atores da sociedade, contemplando a diversidade, a abertura de portas e janelas, de novos canais e mecanismos de comunicação, participação e controle social. Só se criam novos paradigmas, que atendam à noção de desenvolvimento para todos, no terreno fértil de uma robusta relação entre Estado e sociedade fundada na ética. Ética da autenticidade, do respeito, do acolhimento, da simplicidade, que se funda e se refunda cotidianamente segundo os parâmetros dados pelos valores universais da democracia.
Abrir portas e janelas institucionais não só assegura legitimidade aos processos de mudança, que de per si geram medos, resistências, desconfianças, oposições, mas também assegura a eficácia, a efetividade, enriquecendo o processo, o conteúdo e o resultado das propostas inovadoras e transformadoras. As instituições ganham ao incorporar o saber e a corresponsabilidade, a parceria dos diferentes atores da sociedade que podem orquestrar em conjunto o processo de mudança necessário e desejável.
Certos cuidados devem ser tomados quando da abertura dos canais institucionais e participação. Nem sempre a demanda social é qualificada e pode ser considerada pura e simplesmente. Faz-se necessário o fecundo diálogo, a troca de saberes, a ampliação do nível de conhecimento e informação, a franca interação e a sabedoria, especialmente no lidar com os conflitos.
Evitar as mistificações é importante na relação com o saber popular, com os movimentos sociais, com as organizações da sociedade civil. Insisto na ética da autenticidade e na lógica do bom senso. Não raro, ouvimos a seguinte pergunta: mas o que é o bom senso? Quais são seus valores? Não raro, também, tentativas sinceras de construção coletiva são desqualificadas como mais um disfarce de dominação do saber técnico ou da elite. Não podemos concordar com o desprezo pelo conhecimento, que não deve ser considerado propriedade de nenhum grupo ou classe social, mas sim um patrimônio de toda a humanidade, a ser apropriado por todos como bem da civilização.
Abrir as instituições é palavra de ordem para os organismos, sejam públicos ou privados, governamentais e não governamentais. Essa abertura vai exigir canais eficientes de participação e comunicação e, antes de tudo, um diálogo qualificado para que não se perca o rumo e o objetivo da interação.
A abertura do Estado para a sociedade, exigência impostergável para a inclusão social, para o desenvolvimento e o aperfeiçoamento democrático, tem que ser feita de modo a evitar que tal abertura, ao invés de fortalecer o papel e o prestígio institucional e a prevalência do interesse público, venha a se tornar apenas algo tópico, eventual, sem significado, acabando por desviar, confundir e não fortalecer e aprimorar a missão precípua e essencial do Estado e de suas instituições, muito bem expressa na Constituição de 1988.
É inadiável ligar a questão da inclusão ao desenvolvimento na agenda pública e política do país, no mundo empresarial e no aparelho estatal, de forma renovada e reconceituada.
Nem tudo o que é small is beautiful, nem tudo o que é de boa vontade se justifica, nem tudo o que é “bonzinho” vale a pena. A política social deve emancipar as pessoas e as nações; as políticas assistenciais devem ter como horizonte a não dependência dos beneficiários, a não ser no curto prazo, e devem almejar a valorização das iniciativas pessoais, grupais e comunitárias para buscar a melhoria do padrão e qualidade de vida dos indivíduos e das comunidades.
Uma empresa pode ser mais ou menos responsável eticamente. Prefiro esta qualificação ao já difundido conceito de responsabilidade social pelas razões da necessidade de superação da dicotomia a que já me referi, bem como pela necessidade, reafirmo, de construir um único conceito de desenvolvimento que integre e faça convergir os elementos e indicadores do social e do econômico de forma integrada.
Não podemos enfrentar desafios novos, resolver novos problemas, ou mesmo os antigos problemas que não conseguimos superar, com soluções e formas antigas. Problemas novos exigem soluções novas. A uma nova concepção de desenvolvimento, que integre o econômico e o social, deverão ser acoplados mecanismos, procedimentos, canais de participação, comunicação, como soluções inovadoras.
Hoje, as empresas estão criando seus departamentos de responsabilidade social e ambiental — o que é uma redundância. Como se o ambiental não fosse social e vice-versa; como se o econômico não fosse o ambiental. Haverá algo mais econômico do que o ambiental dentro de uma visão estratégica de desenvolvimento sustentável, ou de responsabilidade social ou de responsabilidade ética, ou, tão somente, de responsabilidade sem adjetivação?
Avançamos muito em relação ao início dos anos 90, quando todo este movimento teve início no Brasil. Até então a questão social passava distante do mundo empresarial público e privado. A questão da responsabilidade social empresarial, encarada junto com a questão tributária e do marketing, nos leva a adentrar num universo vasto, complexo e sobremaneira contraditório, que, todavia, não podemos ignorar e dele nos afastar.
Através de um olhar generoso, mas pouco crítico, é possível demonstrar um conjunto de ações meritórias, importantes e valorizadas pela sociedade como atuação social das empresas. Um olhar mais atento e experiente reconhece o quanto ainda tem que ser feito no que diz respeito à relevância, impacto, articulação e definição de papéis e responsabilidades neste âmbito de atuação, que vai da caridade, da filantropia ao investimento social privado. Estamos longe de onde devemos e podemos chegar!
Pensar na inclusão exige diagnosticar pela exclusão. A exclusão ainda permanece, por mais vigor que as políticas públicas venham ganhando nas últimas décadas. Tem sido assim nas políticas de crédito, nos programas de qualificação profissional e até nos de transferência de renda, em que o morador de rua, em geral, não é assistido.
O Brasil ainda não superou os dois desafios básicos para inclusão, dois mínimos de cidadania: universalização do registro civil e alfabetização. As ações de responsabilidade social, às vezes, não passam do necessário cumprimento das leis sob pressão do Ministério Público, como no caso do portador de necessidade especial e do jovem aprendiz.
As ações de responsabilidade social empresarial não fazem parte do âmago do negócio, não se transformaram numa real vantagem competitiva para as organizações e são pouco ou mal avaliadas. Apresenta-se um belo projeto que atende, por suposto, 50 jovens. A única pergunta esquecida na avaliação é quantos jovens tentaram participar do projeto e não conseguiram, ou quantos sequer tiveram a chance de desejar participar, pela total falta de informação. Creio, não erraria em afirmar que, se foram incluídos 50, 450 ficaram de fora! Nesta realidade, vem a justificativa: “É um piloto, um modelo, está sendo testado metodologicamente”. Não conheço nenhum piloto que deixou de ser piloto. Portanto, insisto: planejar a inclusão exige diagnosticar pela exclusão.
Quando as ações de responsabilidade social estiverem imbricadas, fundidas com a razão de ser, com a missão institucional de quem as promove, elas serão continuas, imprescindíveis, estratégicas, e contribuirão para o fortalecimento das organizações, das empresas, além de serem potenciais e privilegiadas alavancas do desenvolvimento.
Não podemos conceber uma política de investimento social privado ou de responsabilidade social empresarial pública e privada que não esteja integrada às diretrizes de uma política de Estado. É imprescindível uma formulação estratégica, um macroplanejamento, que integre a atuação das empresas com as políticas sociais públicas e ainda busque uma coordenação e atenção aos gaps e aos interregnos.
Por mais consequente que seja a atuação de uma empresa pública ou privada, ela não vai atuar fora da área de interesse do seu negócio, de forma direta ou direta. Ela atua buscando bônus das mais variadas naturezas, alguns até, num primeiro olhar, imperceptíveis, de natureza mais política do que propriamente econômica.
Urge evoluir do conceito e das práticas do que hoje é entendido como responsabilidade social empresarial para um patamar mais elevado de desenvolvimento integral e integrado, sustentável e eticamente responsável. Neste sentido alguns pressupostos são imprescindíveis.
Uma cultura de avaliação e de resultados: no mundo dos negócios financeiros temos indicadores objetivos, sensíveis e articulados que permitem aferir, facilmente, se as coisas vão bem ou mal. Sem entrar em conteúdo de mérito, esta cultura tem que chegar ao mundo do social. O social é impregnado por uma cultura hegemônica e historicamente estruturada de menosprezo à questão dos resultados e, em geral, considera os indicadores que devem nortear os processos de monitoramento e avaliação como intangíveis ou irrelevantes, ou até com certo desprezo, por serem considerados ícones do capitalismo.
As propostas de avaliação devem dar conta não só dos processos, mas da aferição dos resultados e dos impactos; não só da eficiência e da eficácia, mas da efetividade. É na avaliação da efetividade que encontramos indicadores que nos permitem repensar os próprios objetivos. Temos que estar atentos e não ter ouvidos moucos às demandas, às razões vindas do clamor silencioso e da voz rouca dos excluídos, dos que historicamente ainda representam as sequelas de sofrimento e humilhação das senzalas brasileiras.
Novo diálogo pressupõe um novo discurso: o mundo da economia é o mundo da racionalidade, da objetividade. Quanto custa? Qual a relação custo/benefício? Esta equação deve contaminar todos os campos da atividade humana, não só as lucrativas strictu sensu, como também as não lucrativas. Aqui reside outra falácia decorrente da dicotomia entre o social e econômico: a definição do que tem fim lucrativo e fim não lucrativo. Tudo deve ter lucro, tudo o que é bem feito gera lucro, mesmo que seja o brilho nos olhos e o sorriso feliz de uma criança bem cuidada na creche; isto é lucro e dispensa qualquer adjetivação e maiores comentários.
Não estamos valorizando os embustes e as fórmulas indecifráveis e as caixas-pretas de alguns monetaristas ou de algumas escolas ortodoxas econômicas e administrativas, bem como de alguns afamados e sacrossantos organismos. Estamos afirmando que os conceitos fundamentais da economia, que regem a vida de uma boa dona de casa ou de um empreendedor bem-sucedido, devem orientar o trabalho das ONGs e das agências sociais latu sensu. Por outro lado, o discurso — já sedimentado no mundo do social — do compromisso, da generosidade, dos direitos humanos, dos valores universais e das utopias civilizatórias deve impregnar o mundo da economia, das finanças, da administração.
Paulo Freire propôs um diálogo de troca, no âmbito da educação, entre o aluno e o professor: um aprende e transfere ao outro o que lhe faz falta. Há uma reciprocidade no ensinar e no aprender. Mutatis mutandis, esta é a nova relação que se impõe entre o econômico e o social, para que o mundo do social seja, também, o da racionalidade, da boa gestão, dos resultados, e o mundo dos negócios seja o mundo ético, inclusivo e luminoso dos direitos humanos.
Se superarmos dogmas e preconceitos históricos, podemos criar um diálogo profícuo, recriar uma “relação dialógica” entre o econômico e o social e impulsionar um novo dínamo para o desenvolvimento que sonhamos e se faz necessário e urgente.
Denise Paiva é assistente social e autora de Era outra história: política social do governo Itamar Franco 1992-1994.