segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Não há família real :: Paulo Brossard

DEU NO ZERO HORA (RS)

O ex-presidente Luiz Inácio teve meses para resolver o caso referente à extradição do terrorista italiano Battisti, mas só o fez no último dia de seu mandato, 31 de dezembro, e, longe de resolvê-lo, em verdade deixou a herança à sua sucessora, dadas as repercussões internacionais, aliás, previsíveis. O fato é que o caso ficou em aberto, porque mal costurado. Ele tem sido discutido por gregos e troianos e não desejo entrar no mérito da questão gratuitamente criada. Impressiona-me, porém, a circunstância de tendo o Supremo Tribunal Federal examinado, em minúcia, todos os aspectos do caso sob o prisma de sua competência, concluiu que o deferimento da extradição requerido pela Itália não oferecia nenhum óbice.

Entendeu inequívoca a natureza comum dos delitos pelos quais o extraditando fora condenado pela Justiça Comum e o descabimento do refúgio concebido ad hoc, entre outros aspectos. Não obstante, o então presidente pediu um parecer à Advocacia-Geral da União e com base nele veio a decidir como decidiu. Ora, o Supremo Tribunal Federal não é órgão opinativo e nem lhe cabe emitir pareceres. É um poder que decide e suas decisões são irrecorríveis. Relativamente à extradição, reza a Lei Maior em seu art. 102, I, “g”, que ao STF compete “processar e julgar, originariamente, a extradição solicitada por Estado estrangeiro”. Só a ele compete processar e julgar o cabimento e a legalidade da extradição solicitada. No entanto, o então presidente permitiu-se deixar de honrar a decisão judiciária.

Longe de mim levantar dúvida acerca da sabedoria da AGU, nem tive acesso ao longo parecer por ela emitido. Se correta a notícia divulgada pela imprensa, porém, ter-se-ia avançado que o extraditando correria risco de perseguição e discriminação em sua terra ou teria agravada sua situação se extraditado. Resisto a supor que esta consideração tenha sido articulada no parecer, mas, se tal tivesse ocorrido, saltaria aos olhos que o extraditando, condenado pela Justiça italiana, estaria sujeito necessariamente à pena cominada e as condições de seu cumprimento haveriam de ser as da sentença exequenda e nenhuma outra. Ele não seria rejulgado. O acervo cultural da Itália na vasta seara jurídica é notoriamente um dos mais opulentos do universo. E ninguém cometeria o descoco de supor que a sentença poderia ser substituída no todo ou em parte em sua execução. Depois disso, que vale a palavra do Brasil pactuada num tratado?

*Segundo a Lei de Gresham, a moeda ruim expulsa a boa; coexistindo a moeda de ouro e de prata, o ouro é embolsado e circula a de prata; esta é guardada quando a outra é de cobre. Tenho dito que a lei em causa, formulada para o mundo da finança, tem validade muito maior do que a imaginada por seu formulador, e poder-se-ia dizer que ela é válida até no setor restrito que a inspirou. Isto me vem à lembrança em razão do que acaba de envolver o Ministério das Relações Exteriores.

Na Casa de Rio Branco, na gestão do maior e melhor de todos os governos, também se viu a moeda má expelir a boa... no momento em que o ex-presidente da República, dois dias antes de deixar de ser o presidente, obteve do ministro da pasta a expedição de dois passaportes diplomáticos a dois de seus filhos, ambos os dois maiores, saudáveis e comerciantes, aliás, bem-sucedidos, segundo se lê, os quais, por quatro anos, depois da presidência paterna, haveriam de gozar das vantagens, para não dizer dos privilégios que essa modalidade de passaporte assegura a seus portadores. A primeira explicação foi no sentido de que os filhos do presidente já possuíam passaporte diplomático e se trataria de renovação. Ora, a ementa saiu pior que o soneto, pois a defesa confessa que desde antes, talvez durante oito anos, o mesmo presidente aquinhoava os dois filhos, que não eram menores, nem deficientes, nem seus dependentes, portanto sem direito ao privilégio. Foi então inventado que o decreto, não a lei, admitia que, “em caráter excepcional”, pudesse ser outorgada a mercê “em função de interesse do país”. Até agora não me consta que o fato de alguém ser filho de presidente seja sinônimo de ser do interesse do país. Pode ser que sim, pode ser que não, filosofava o velho Molière... A despeito do que se possa pensar, até agora a família do presidente da República ainda não é a família real.

Assim, entre uma permissividade e outra, irrelevante para alguns, não se desrespeita apenas o povo contribuinte, mas se prepara pelo uso do abuso para malfeitorias graúdas. E, desse modo, as melhores instituições entram a deformar-se. Ainda bem que a presidente disse “não haverá de minha parte discriminação, privilégios ou compadrio!”.

*Jurista, ministro aposentado do STF

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