DEU NO VALOR ECONÔMICO
Começo da segunda semana de janeiro de 2011, já não é mais noite e ainda não é dia, pois o secretário-geral da Presidência da República, designado por ato da presidente ungida pelo voto popular e empossada segundo os ritos republicanos, achou oportuno recordar a todos que havia um Pelé, circunstancialmente fora do jogo, a ser prontamente mobilizado, no caso de uma eventual necessidade de reverter um placar adverso.
Com essa declaração, o decurso do tempo hesita cumprir seu destino, que seria o de realizar todos os efeitos de uma sucessão, isto é, nas palavras de um dicionário, "uma transmissão de direitos e/ou encargos segundo certas normas". O tempo, sob a suspeita de que a sua passagem nessa sucessão seria fictícia, uma vez que os direitos e os encargos nela envolvidos não deteriam a capacidade de serem transmissíveis, como que congela na expectativa de ressurgir em seu fluxo em 2014. Nessa versão, implícito que direitos e encargos não poderiam ser transmitidos pela razão substantiva de já fazerem parte do próprio corpo do soberano, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Assim, ao abrir, na forma da lei, o caminho para a sucessão, Lula efetivamente reverenciou a forma e o cerimonial republicano, mas somente para deixar patente, logo a seguir, que a fonte real de sua força política, mais do que uma emanação dos seus dotes carismáticos - perfeitamente, aliás, compatível com as instituições republicanas -, residiria no fato misterioso dele ser capaz de encarnar o seu povo, fenômeno místico que, por definição, as repúblicas não conhecem, argumento com que a coluna, nesse passo e a seu modo, acompanha um recente artigo do cientista político Rubem Barbosa Filho (cedes@iesp.uerj.br).
Mas, como nos adverte a plenos pulmões a canção de Cazuza, o tempo não para, e o tempo das repúblicas com suas instituições profanas abertas à participação dos cidadãos é inimigo dos mistérios. Fantasmagorias à parte, temos governo novo, e já às voltas com a difícil tarefa de abrigar no seu interior a vasta coalizão política que conduziu a presidente Dilma Rousseff à vitória eleitoral, e, bem mais que isso, de converter os quadros selecionados dessa coalizão em uma equipe capaz de dar conta do que vem por aí.
Sabe-se de ciência certa que, sem a reconhecida capacidade de negociação do ex-presidente Lula, compor o PT com o PMDB vai consistir em um desafio não somente pela disputa de cargos nas agências governamentais como também em torno de políticas. De passagem, registre-se que o senso comum predominante na imprensa sobre o PMDB como um partido destituído de valores, restrito às práticas fisiológicas, exprime apenas um aspecto parcial, embora significativo, da sua atual presença na política brasileira. Por que há outro: no já longo histórico desse partido não se conhecem senões quanto à sua adesão aos princípios e práticas garantidores das liberdades civis e públicas, aliás, um dos pontos altos no discurso de posse de Dilma, bem analisado em artigo de Rosiska Darcy de Oliveira (O Globo, 08/01/11).
A vice-presidência, como o demonstra fartamente nossa experiência republicana recente, não é uma função sem préstimos, e a sua ocupação por Michel Temer, um hierarca do PMDB, mais a forte representação congressual desse partido, significa uma relevante mudança quanto à forma do governo anterior, uma vez que seu principal aliado entre os partidos está firmemente ancorado por quatro anos na própria estrutura constitucional de comando da República.
Para além das naturais dificuldades de administração dos conflitos em torno da alocação de cargos entre os partidos que compõem sua base de sustentação, matéria que povoa a pauta da imprensa, insinuam-se outras, mais intrincadas, tal como na controvérsia sobre a fixação do montante do salário mínimo, dado que traz consigo a ameaça de trincar o até então seguro dispositivo sindical de apoio ao governo.
Essa questão, porém, como notório, não é uma questão sindical em sentido estrito, uma vez que não envolve um litígio entre categorias profissionais - ela é de natureza política, contrapondo partidos e centrais sindicais à política econômica do governo Dilma, com a agravante de que uma delas, a Força Sindical, se encontra, em boa parte, vinculada ao PDT, partido da coalizão governamental que ora ocupa o Ministério do Trabalho.
No rastro dessa controvérsia, só na aparência de pequeno alcance - basta ver que outros partidos da coalizão, aí incluído um senador do PT, Paulo Paim, influente em matéria sindical, ameaçam o governo de acompanhar esse movimento de dissidência no interior da base governista. Alguns deles, por motivos, diga-se, pouco republicanos. Assim, se veem afetados os rumos para o enfrentamento de temas estratégicos para o governo, como os do orçamento, da previdência e da preservação da política de estabilidade, um compromisso de governo de Dilma, para não falar dos seus programas de desenvolvimento econômico, que, segundo vários dos seus porta-vozes, demandariam uma política de contenção dos gastos governamentais.
Não há, pois, reiteração das circunstâncias do governo anterior. Alguns personagens são os mesmos, decerto que muitos ainda com os olhos pregados no retrovisor, mas tudo é quase novo, pois é da natureza das sociedades capitalistas, como dizia um filósofo, fazer dissolver no ar tudo que antes parecia se revestir de uma aparência sólida.
É nova a entrada em cena da tópica republicana, imperativa pela razão de que as obrigações mútuas entre PT e PMDB ou se assentam no terreno do bem público, ou farão naufragar, em meio a uma crise institucional, a coalizão governamental nos descaminhos "do toma lá, dá cá".
Imperativa também porque esse é o único sentido para a libertação de contextos como o do Complexo do Alemão do controle que padecem sob o império do crime organizado. E quando políticas públicas, como as agora anunciadas, preconizam que haverá "porta de saída" nos programas assistenciais, ela só pode ser a de entrada na República.
Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador do Iesp-Uerj. Ex-presidente da Anpocs, integra seu comitê institucional. Escreve às segundas-feiras
Começo da segunda semana de janeiro de 2011, já não é mais noite e ainda não é dia, pois o secretário-geral da Presidência da República, designado por ato da presidente ungida pelo voto popular e empossada segundo os ritos republicanos, achou oportuno recordar a todos que havia um Pelé, circunstancialmente fora do jogo, a ser prontamente mobilizado, no caso de uma eventual necessidade de reverter um placar adverso.
Com essa declaração, o decurso do tempo hesita cumprir seu destino, que seria o de realizar todos os efeitos de uma sucessão, isto é, nas palavras de um dicionário, "uma transmissão de direitos e/ou encargos segundo certas normas". O tempo, sob a suspeita de que a sua passagem nessa sucessão seria fictícia, uma vez que os direitos e os encargos nela envolvidos não deteriam a capacidade de serem transmissíveis, como que congela na expectativa de ressurgir em seu fluxo em 2014. Nessa versão, implícito que direitos e encargos não poderiam ser transmitidos pela razão substantiva de já fazerem parte do próprio corpo do soberano, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Assim, ao abrir, na forma da lei, o caminho para a sucessão, Lula efetivamente reverenciou a forma e o cerimonial republicano, mas somente para deixar patente, logo a seguir, que a fonte real de sua força política, mais do que uma emanação dos seus dotes carismáticos - perfeitamente, aliás, compatível com as instituições republicanas -, residiria no fato misterioso dele ser capaz de encarnar o seu povo, fenômeno místico que, por definição, as repúblicas não conhecem, argumento com que a coluna, nesse passo e a seu modo, acompanha um recente artigo do cientista político Rubem Barbosa Filho (cedes@iesp.uerj.br).
Mas, como nos adverte a plenos pulmões a canção de Cazuza, o tempo não para, e o tempo das repúblicas com suas instituições profanas abertas à participação dos cidadãos é inimigo dos mistérios. Fantasmagorias à parte, temos governo novo, e já às voltas com a difícil tarefa de abrigar no seu interior a vasta coalizão política que conduziu a presidente Dilma Rousseff à vitória eleitoral, e, bem mais que isso, de converter os quadros selecionados dessa coalizão em uma equipe capaz de dar conta do que vem por aí.
Sabe-se de ciência certa que, sem a reconhecida capacidade de negociação do ex-presidente Lula, compor o PT com o PMDB vai consistir em um desafio não somente pela disputa de cargos nas agências governamentais como também em torno de políticas. De passagem, registre-se que o senso comum predominante na imprensa sobre o PMDB como um partido destituído de valores, restrito às práticas fisiológicas, exprime apenas um aspecto parcial, embora significativo, da sua atual presença na política brasileira. Por que há outro: no já longo histórico desse partido não se conhecem senões quanto à sua adesão aos princípios e práticas garantidores das liberdades civis e públicas, aliás, um dos pontos altos no discurso de posse de Dilma, bem analisado em artigo de Rosiska Darcy de Oliveira (O Globo, 08/01/11).
A vice-presidência, como o demonstra fartamente nossa experiência republicana recente, não é uma função sem préstimos, e a sua ocupação por Michel Temer, um hierarca do PMDB, mais a forte representação congressual desse partido, significa uma relevante mudança quanto à forma do governo anterior, uma vez que seu principal aliado entre os partidos está firmemente ancorado por quatro anos na própria estrutura constitucional de comando da República.
Para além das naturais dificuldades de administração dos conflitos em torno da alocação de cargos entre os partidos que compõem sua base de sustentação, matéria que povoa a pauta da imprensa, insinuam-se outras, mais intrincadas, tal como na controvérsia sobre a fixação do montante do salário mínimo, dado que traz consigo a ameaça de trincar o até então seguro dispositivo sindical de apoio ao governo.
Essa questão, porém, como notório, não é uma questão sindical em sentido estrito, uma vez que não envolve um litígio entre categorias profissionais - ela é de natureza política, contrapondo partidos e centrais sindicais à política econômica do governo Dilma, com a agravante de que uma delas, a Força Sindical, se encontra, em boa parte, vinculada ao PDT, partido da coalizão governamental que ora ocupa o Ministério do Trabalho.
No rastro dessa controvérsia, só na aparência de pequeno alcance - basta ver que outros partidos da coalizão, aí incluído um senador do PT, Paulo Paim, influente em matéria sindical, ameaçam o governo de acompanhar esse movimento de dissidência no interior da base governista. Alguns deles, por motivos, diga-se, pouco republicanos. Assim, se veem afetados os rumos para o enfrentamento de temas estratégicos para o governo, como os do orçamento, da previdência e da preservação da política de estabilidade, um compromisso de governo de Dilma, para não falar dos seus programas de desenvolvimento econômico, que, segundo vários dos seus porta-vozes, demandariam uma política de contenção dos gastos governamentais.
Não há, pois, reiteração das circunstâncias do governo anterior. Alguns personagens são os mesmos, decerto que muitos ainda com os olhos pregados no retrovisor, mas tudo é quase novo, pois é da natureza das sociedades capitalistas, como dizia um filósofo, fazer dissolver no ar tudo que antes parecia se revestir de uma aparência sólida.
É nova a entrada em cena da tópica republicana, imperativa pela razão de que as obrigações mútuas entre PT e PMDB ou se assentam no terreno do bem público, ou farão naufragar, em meio a uma crise institucional, a coalizão governamental nos descaminhos "do toma lá, dá cá".
Imperativa também porque esse é o único sentido para a libertação de contextos como o do Complexo do Alemão do controle que padecem sob o império do crime organizado. E quando políticas públicas, como as agora anunciadas, preconizam que haverá "porta de saída" nos programas assistenciais, ela só pode ser a de entrada na República.
Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador do Iesp-Uerj. Ex-presidente da Anpocs, integra seu comitê institucional. Escreve às segundas-feiras
Gilvan, esse seu trabalho é de uma importância vital. Viva o pensamento! Vou compartilhar o artigo do Werneck Vianna, ok? Um abraço e continuo acompanhando o blog.
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