terça-feira, 29 de março de 2011

A classe média veio para ficar:: Wilson Figueiredo

A astúcia de que a oposição se valeu para derrotar o último governo militar na eleição indireta foi um feito impossível de evitar: um ato de traição eleitoral em condições fatais. O ciclo de governos militares se encerrou por exaustão, confinamento social, perda de confiança política e esvaziamento de representatividade. Mas tudo isso não explica o baixo custo da transição e dos percalços da primeira fase, antes da volta triunfal da eleição direta. A classe média foi decisiva e, graças ao princípio da maioria absoluta trazido pela nova Constituição, não mais se ouviu qualquer dúvida sobre resultado de eleição presidencial. Já se passaram 26 anos de uma democracia credenciada ao permanente aperfeiçoamento.

Ainda falta a interpretação acadêmica da virada, por uma sequência identificada, desde a ruptura com a República Velha, em 1930, até a Constituição de 1988. No longo percurso de meio século se encontram, de maneira mais nítida, os indícios da participação potencial da classe média, por onde se formou e se encaminhou a visão democrática de mais longo prazo e que, na versão atual, se mantém intocável. Ganhará tempo quem quiser identificar, desde então, um conjunto de valores e aspirações numa visão política dispersa e fragmentada em ações. Nesse espaço não será difícil reconhecer o papel da classe média já naquele Brasil com 30 milhões de habitantes e 80% de analfabetos, e identificar, no processo político, a ascensão dessa parcela social que responde politicamente por uma presença atuante e já cortejada a céu aberto.

Nos anos 20, quando a República não se aguentava no padrão histórico tradicional e a juventude militar passou da discussão à ação, a denominação de classe média pouco ou nada dizia. Prevalecia uma visão gerada na parcela superior da sociedade e outra, dividida entre o conformismo e a revolta, na parte de baixo. Faltava o sal da modernidade, representado pela classe média. O prestígio político dos coronéis referidos e obedecidos pelo comando político municipal exprimia a realidade rural. A indústria não passava de utopia numa sociedade de valores e hábitos rurais. O máximo que se poderia admitir como indicio de futura classe média era a parcela do funcionalismo público, militares, bancários, comerciários e prestadores de serviços que só iriam ter peso com o advento da sociedade de consumo, na sequência e como consequência da Segunda Guerra.

Não por acaso, foi também em 1945 que o Brasil trocou o Estado Novo por um regime constitucional (sem abrir mão da deposição do presidente) e ampliou o espaço em que as aspirações sociais e o nacionalismo tiveram função educativa de natureza política e, paralelamente, se desenhou a sociedade de consumo como um conceito de vida. Era a classe média que rompia o conformismo e preenchia na sociedade uma atuação que se incorporou à política. A própria retórica parlamentar se renovou com a troca das referências clássicas pelos bens de consumo durável (que, aliás, querem dizer o contrário).

A cabeça dos cidadãos englobados por essa nuvem passou pelas modificações que a atualizaram em relação ao mundo do qual o Brasil fazia parte sem saber. A classe média e a democracia tiveram muito a ver uma com a outra, mas sem se darem conta do teor político desse relacionamento. Faltava o gosto pela representatividade política. Faltava democracia mesmo. Governos, partidos e políticos estavam de olho apenas nas parcelas consideradas mais carentes da sociedade (mais fáceis de se contentarem com menos benefícios) e celeiros mais fartos de votos.

É a inserção da classe média na vida política ativa, como exercício de cidadania e parcela crescente do eleitorado na era do consumo, que pode explicar muito do que aconteceu desde 1930 até o fim do século 20. E, já agora, ser a base definitiva da democracia que se cansou de vir ao Brasil como visitante.
Wilson Figueiredo escreve nesta coluna aos sábados e terças-feiras.
FONTE: JORNAL DO BRASIL

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