segunda-feira, 28 de março de 2011

Fraudes no Saúde da Família

Os cadastros do Programa Saúde da Família estão sendo fraudados para justificar repasse de recursos do Sistema Único de Saúde (SUS) referentes a serviços não realizados. Um dos médicos, por exemplo, teria que trabalhar 34 horas por dia, sete dias por semana, em cidades de Piauí e Maranhão, para cumprir a carga horária prevista.

Atendimento só no papel

FRAUDES NO SUS

Cadastro do Programa Saúde da Família é inflado e governo paga por serviço inexistente

Roberto Maltchik

Além dos desvios milionários, o Sistema Único de Saúde (SUS) é corrompido por informações falsas em seus cadastros, que permitem a médicos manter o credenciamento em até 17 unidades de saúde, e abrem brechas para o comércio de CPFs com o objetivo de burlar as regras do Programa Saúde da Família (PSF). As irregularidades prosperam no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde e suas consequências ficam explícitas em relatórios do próprio governo. Segundo a Controladoria Geral da União (CGU), em mais de 40% dos municípios, as equipes de saúde da família não cumprem a carga horária. Em 36,5% das 982 cidades fiscalizadas de 2004 a 2009 o atendimento foi considerado deficiente.

Nos cadastros do SUS, o psiquiatra Klecius Ramos Mota, de Cocal (PI), é onipresente. Ele tem 17 vínculos, dos quais 16 seriam com o SUS em duas cidades do Piauí e um no Maranhão. Assim, sua carga de trabalho semanal chegaria a 34,14 horas diárias, sete dias por semana. Já o médico Antônio Nivardo Vieira trabalharia 21,7 horas diariamente, com seus 13 vínculos e 152 horas de trabalho semanais.

Médico denuncia fraude em cadastro

O que liga esses dois profissionais são os vínculos de 40 horas semanais com o Hospital Regional de Araioses, no Maranhão. Nivardo diz que há oito anos não pisa na unidade, apesar de o cadastro ter sido atualizado pelo município no último dia 17. Segundo ele, trata-se de um jogo de Araioses para ganhar mais dinheiro do SUS:

- Quando é para renovar o cadastro junto ao SUS, eles têm que ter a equipe para poder apresentar. Aí, usam indevidamente o nome da gente para fazer esse tipo de coisa. Meu nome também aparecia lá na Apae de Magalhães de Almeida (MA), mas nunca fui lá - diz o cirurgião, que hoje se dedica à clínica particular e atende na Unidade Básica de Saúde de Cocal (40 horas) e em outras duas unidades.

O médico aponta a indiferença do Ministério da Saúde:

- Há uns dois anos, telefonei para o ministério em Brasília para denunciar isso; eles se prontificaram a tomar providências, mas ficou só naquilo mesmo.

Como o Ministério da Saúde passou a suspender os repasses em que há duplicidade de integrantes das equipes de Saúde da Família, uma nova modalidade de fraude ganha corpo e está sendo investigada pelo Ministério Público no Piauí e no Maranhão. Médicos alugam ou pedem emprestado o CPF e o CRM de colegas para trabalhar em duas ou mais cidades. Só no Piauí, a fraude já foi detectada em São Miguel do Tapuio, Dom Expedito Lopes, Jardim do Mulato e Nossa Senhora dos Remédios. Em Nossa Senhora dos Remédios, são 17 casos confirmados por auditores do SUS: sete médicos, sete dentistas e três enfermeiros.

Em Tapuio, o Departamento de Auditoria do SUS (Denasus) cobra R$76,8 mil da prefeitura por pagamentos feitos a uma médica que declarou por escrito nunca ter trabalhado no Saúde da Família, muito menos ter recebido um centavo pelo serviço virtual.

- Temos médicos que cumprem uma carga horária de 40 horas no Programa Saúde da Família, mas vão uma vez por semana. Isso é dinheiro público desviado de sua finalidade - diz a coordenadora do Centro Operacional de Defesa da Saúde do Ministério Público do Piauí, Cláudia Seabra.

Em Picos (PI), onde nem os auditores sabem onde foram parar 40% de todo dinheiro repassado pelo SUS, como o GLOBO mostrou ontem, o superlotado e endividado Hospital Regional Justino Luz é uma fábula de médicos e equipamentos. Para o CNES, a unidade conta com onze leitos de UTI e 123 médicos. Nada disso é verdade.

- UTI? De jeito nenhum! Em toda história desse hospital não passaram 123 médicos aqui - diz Valdeci Leite Barros, a diretora do Justino Luz.

Nos dados oficiais, cobertura é boa

Na verdade, de 63 médicos, 16 estão afastados pelos mais diversos motivos. Enquanto a reportagem percorria o hospital, uma vítima de acidente de trânsito sangrava sem atendimento na recepção há mais de uma hora.

- Não tem médico. Parece que está no horário de almoço - informou a recepcionista.

Auditores do SUS ouvidos pelo GLOBO explicam que o maior dano é a maquiagem que os números inflados criam sobre a real situação da Saúde. No Hospital Geral de Picos - unidade privada que tem 100% dos atendimentos pelo SUS -, o banheiro parece em obras e a sujeira faz volume na antessala do centro cirúrgico. O CNES identifica 30 médicos atendendo pelo SUS e 14 funcionários. O que se viu foram dezenas de pacientes atirados em quartos escuros, sem nenhum equipamento, e só um médico consultando.

- No máximo, oito médicos atendem por aqui - contabiliza a auxiliar de enfermagem.

Os dados oficiais comprovam a existência do SUS virtual. Em Picos, a diretora do Hospital Justino Luz afirma que atende febre e dor de dente, e que o Saúde da Família "é precário, quase não existe". Mas o Departamento de Atenção Básica (DAB) do Ministério da Saúde contabiliza 100% da população atendida pelo Saúde da Família.

No estado do Piauí, o DAB contabiliza cobertura de 97,39% da população pelo Programa de Saúde da Família e 99,87% pelos Agentes Comunitários de Saúde. Entretanto, os indicadores do Pacto pela Saúde de 2010 mostram que apenas 86,75% da população estão registrados na Estratégia de Saúde da Família. A meta do ano passado era alcançar 94% de cobertura.

O psiquiatra Klecius Mota admitiu que não trabalha em "vários desses hospitais" e que há casos de unidades onde jamais apareceu. Ele reconheceu que já sabia do problema, mas não se interessou em resolvê-lo. Ele repetiu a suspeita que hospitais corrompem o sistema para receber mais recursos do ministério. A Prefeitura de Picos e a direção do Hospital Regional de Araioses não se pronunciaram.
FONTE: O GLOBO

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