sábado, 13 de agosto de 2011

21 tiros na Justiça


Juíza executada em Niterói tinha mandado 60 PMs para a prisão

Pela primeira vez no Rio, uma magistrada que atuava na área criminal e combatia o crime organizado foi executada anteontem à noite por homens encapuzados, que estavam de tocaia. Patrícia Acioli, de 47 anos, era juíza da 4ª Vara Criminal de São Gonçalo, onde ficou conhecida por ser linha-dura contra policiais de grupos de extermínio e outras máfias que dominam há décadas aquela região. Patrícia condenou à prisão mais de 60 PMs. Os 21 tiros que mataram a juíza provocaram reação imediata do Poder Judiciário e de entidades da sociedade civil. Os matadores usaram pistolas calibres 40 e 45, de uso restrito da PM e das Forças Armadas. A polícia não afasta nenhuma hipótese para o crime.

Execução sumária

SENTENÇA DE MORTE

Ana Cláuda Costa, Athos Moura, Carla Rocha, Elenilce Bottari, Sérgio Ramalho e Vera Araújo
"Não tenho medo de ameaça. Quem quer fazer algo vai e faz, não fica ameaçando. Ninguém morre antes da hora. Sei que, no imaginário popular, a juíza é quem faz tudo, mas é a polícia que investiga, são os promotores que fazem a denúncia e é o júri que julga".

A frase é da juíza Patrícia Lourival Acioli. Foi dita ao GLOBO no início de setembro do ano passado. Não faz nem um ano. Na noite de anteontem, sem escolta, ela foi executada com 21 tiros - a maioria no rosto e no tórax -, quando chegava em sua casa, em Piratininga, Niterói. Foi o primeiro caso de execução de um juiz criminal no Rio. Nos últimos anos, a magistrada, que já chegou a ser acompanhada por seis seguranças, havia recebido uma série de ameaças.

Conhecida por ser linha-dura, Patrícia, de 47 anos, era uma espécie de arqui-inimiga dos maus policiais. Estima-se que tenha condenado mais de 60 deles nos últimos dez anos de atuação. Ela ingressou na magistratura em 14 de dezembro de 1992. Antes de ir para a área criminal, trabalhou no Juizado da Infância e da Juventude. Desde 1999, estava à frente de centenas de processos na 4ª Vara Criminal de São Gonçalo, agindo principalmente no combate a milícias, grupos de extermínio e máfias do transporte alternativo e do óleo (o grupo roubava combustível de navios). No início da carreira, quando foi defensora pública, ela já teria sofrido um atentado.

Horas antes, duas ordens de prisão

Algumas horas antes de ser assassinada, a juíza havia decretado a prisão preventiva de dois policiais do 7º BPM (Alcântara). Carlos Adílio Maciel e Sammy dos Santos Quintanilha foram acusados de ter forjado um auto de resistência (registro de morte em confronto com a polícia) no dia 5 de junho, no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo.

O ex-marido da juíza, que pediu para não ser identificado, desabafou durante o velório, ontem à tarde:

- O Tribunal de Justiça tinha ciência de todas as ameaças contra ela. Se forem buscar, vão achar vários ofícios. É óbvio que Patrícia tinha medo, não era de ferro. Não sei se houve orientação do tribunal, mas os seis seguranças que chegaram a acompanhá-la caíram para quatro, depois para três, até não restar nenhum.

Sobrecarregada por centenas de processos criminais, Patrícia Acioli também era responsável pelo julgamento de todos os homicídios do único Tribunal do Júri de São Gonçalo, um dos mais populosos do estado, com cerca de um milhão de habitantes. Entre outras coisas, a polícia vai buscar nesse espólio jurídico a motivação para o assassinato. Em 2010, foram recebidos pela 4ªVara Criminal 778 novos processos - em média, 65 por mês. Este ano, de janeiro a julho, já foram ajuizadas 454 ações.

Tribunal: escolta nunca foi pedida

Pessoas próximas da juíza dizem que ela era implacável e que uma de suas maiores obsessões era a grande quantidade de autos de resistência feitos por policiais. Ela ficava impressionada com o fato de que um PM matasse tantos civis em serviço. Eram comuns os relatos de policiais insatisfeitos com a magistrada, conhecida nos corredores do tribunal como "a senhora do martelo de ferro" - uma alusão ao fato de que suas sentenças eram, em geral, bem mais pesadas do que as de seus colegas.

- Ela ficava indignada, impressionada com o fato de um policial ter vários autos de resistência. Mas, embora fosse dura no exercício de sua profissão, também era muito humana. Sabia que o algoz é também uma vítima, porque sofre um processo de desumanização dentro do sistema - diz o coronel Jorge da Silva, secretário de Direitos Humanos do Rio nos anos 90, que foi professor da juíza e escolhido por ela para ser o orientador de sua monografia, que ficou inacabada, no final de um curso de pós-graduação sobre justiça criminal e segurança, na Universidade Federal Fluminense (UFF), entre 2008 e 2009.

Ontem, ao conceder uma entrevista coletiva, o presidente do Tribunal de Justiça do Rio, desembargador Manoel Alberto Rebêlo dos Santos, afirmou que a juíza estava sem escolta desde 2007, por decisão própria. Segundo ele, Patrícia Acioli jamais requisitou proteção ao tribunal:

- Nunca houve um pedido dela de segurança, embora nossa regulamentação estabeleça que o juiz que se sinta ameaçado deve acionar o tribunal. Por iniciativa nossa, ela teve proteção total de 2002 a 2007, quando, em uma nova avaliação, o tribunal propôs reduzir a segurança dela de três policiais para um. Ela então achou que aquilo ali não era necessário - afirmou o desembargador, acrescentando que a Justiça fluminense está de luto. - Ela era uma juíza extremamente corajosa e realmente enfrentava alguns grupos que, para enfrentar, é preciso ter coragem.

O desembargador Rogério de Oliveira Souza, no entanto, atestou ter presenciado, em 2009, a juíza Patrícia Acioli pedir uma escolta no gabinete do então presidente do TJ, Luiz Zveiter. Ele afirmou que ela parecia estar com medo de ameaças recebidas após ter decretado a prisão de 45 integrantes de uma máfia ligada à exploração do transporte alternativo em São Gonçalo. O desembargador não soube informar o desfecho do encontro. Na época, Patrícia, que havia se separado do primeiro marido, já vivia com o cabo da PM Marcelo Poubel, que conheceu quando ele fazia parte de sua equipe de segurança. Os dois foram casados por sete anos e, há pouco tempo, após um rápido rompimento, haviam reatado.

Hoje presidente do Tribunal Regional Eleitoral, Zveiter negou ter recebido o pedido da magistrada.

- Eu só estive com a juíza Patrícia Acioli uma vez. Eu a chamei no gabinete da presidência para que esclarecesse uma confusão ocorrida na feira de São Gonçalo, entre ela e seu marido, o policial militar Marcelo Poubel, que havia sido divulgada na imprensa. O encontro inclusive foi presenciado pela desembargadora Sandra Kayat - garantiu Zveiter, acrescentando que, durante seu mandato à frente do TJ, todos os pedidos de segurança encaminhados por juízes que se sentiam ameaçados foram atendidos.

Humberto Nascimento, primo da juíza, disse que ela era ameaçada constantemente.

- Há pelo menos cinco anos ela vinha sendo ameaçada. Era considerada uma juíza linha-dura, martelo pesado como chamam, com condenações sempre na pena máxima. Mas estava tão despreocupada que o carro dela não era blindado. A casa também não tinha portão eletrônico, quer dizer, ela ia sair do carro de qualquer maneira para entrar. O crime foi algo encomendado, coisa de profissional.

Juíza: nome em lista de milicianos

Mais de dez policiais do 7º BPM e do 12º BPM (Niterói) estão afastados por causa de ações da juíza. Alguns deles fazem parte de um grupo chamado Extermínio S/A, que forjaria autos de resistência, alguns deles numa favela de São Gonçalo, para encobrir execuções de desafetos.

A investigação dos autos de resistência era um trabalho espinhoso, ao qual Patrícia Acioli se dedicava junto com promotores da 2ª Promotoria de Investigação Penal e da Promotoria do Júri. Uma revisão nos registros de mortes de civis em supostos confrontos com policiais, desde 1998, levou 70 PMs ao banco dos réus. Patrícia e os promotores - que estão recebendo proteção - analisaram 168 autos de resistência. Desses, 32 teriam sido forjados pelos policiais.

A juíza Patrícia Acioli estava numa lista de 12 pessoas marcadas pra morrer encontrada com Wanderson da Silva Tavares, o Gordinho, preso em janeiro deste ano em Guarapari, no Espírito Santos, sob a acusação de ser chefe de uma milícia no município. Entre as outras pessoas citadas na lista, estão o delegado Geraldo Assed, da 72ª DP (São Gonçalo) e o promotor de Justiça Paulo Roberto Cunha, do Tribunal de Júri de São Gonçalo.

A "senhora do martelo de ferro" também foi responsável pela decretação de 45 das 70 prisões relacionadas à Operação Cooper Crime, realizada contra a máfia dos transportes alternativos pela Delegacia de Repressão a Ações Criminosas Organizadas (Draco), em novembro de 2008. Entre os alvos, estava o vereador de São Gonçalo Edson da Silva Mota, o Mota da Copasa. Ele chefiaria a quadrilha responsável pela cobrança de taxas a motoristas de van em São Gonçalo. O grupo contava com a participação de PMs da região.

Longe do fórum, jeans e bom humor

Patrícia Acioli tinha três filhos, de 10 a 20 anos. Ela gostava de exibir fotos deles no celular. Quando estava com os amigos, longe do fórum, esquecia o ar solene do tribunal e gostava de usar jeans e camiseta. Os colegas da pós feita na UFF dizem que ela não bebia, o que não a impedia de ir a barzinhos para bater papo. Nunca falava sobre as ameaças, mas tinha verdadeira paixão pela magistratura e falava empolgada sobre o resultado de algumas sentenças.

Chegou a relatar uma investigação sobre policiais militares acusados de um assassinato em que ela foi até o local ajudar na coleta de provas, acompanhando a polícia. Era comum também tomar depoimentos na casa de vítimas.

- Ela ia junto com os policiais, tamanha vontade que tinha de elucidar os crimes. Não tinha pose, colocava a mão na massa - disse um amigo dos tempos de faculdade.

Outra colega da pós-graduação, psicóloga, classificou a juíza Patrícia Acioli como uma mulher vaidosa, mas sem excessos, e muito bem-humorada:

- Nos divertíamos muito. Ela era muito simples e alegre. Acho que carregava um peso tão grande que precisava respirar, dar uma relaxada.

Colaborou Gustavo Goulart

FONTE: O GLOBO

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