quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Fracasso político põe a Itália em risco

Humberto Saccomandi

A baladas pela crise da dívida e sob pressão do mercado, a Itália trocou de governo esta semana e a Espanha trocará de governo com as eleições de domingo. As semelhanças acabam aí. Os dois países têm pela frente desafios duríssimos, mas a Espanha tem mostrado uma capacidade política muito maior. Isso lança incertezas sobre o futuro da Itália e é um triste epílogo para o ano em que o país comemora os seus 150 anos de unificação.

Os dois governos passaram por um período inicial de negação da crise. Mas, na Itália, o ex-premiê Silvio Berlusconi repetia até a semana passada que a crise não era tão grave assim, já que "os restaurantes e voos estavam lotados". Foi a falta de sentido de urgência, aliada à incapacidade de agir do premiê, que levou os próprios aliados a derrubá-lo.

A Espanha, com déficit alto (9,3% do PIB em 2010) e dívida baixa (61% do PIB), foi atingida antes pela desconfiança dos mercados e se mexeu logo. Com um governo funcional, do premiê socialista José Luis Zapatero, o país reduziu o déficit (que, porém, continua alto e vai estourar a meta deste ano, de 6%), aprovou, entre outras, mudanças na Previdência, no mercado de trabalho e cortou salários e aposentadorias. Após esse ciclo inicial de reformas, Zapatero renunciou e convocou eleições.

Uma semana atrás não se sabia quem seria o novo premiê da Itália

A Itália, com déficit baixo (4,6% do PIB em 2010) e dívida alta (118,4% do PIB), foi inicialmente poupada e não se mexeu. Sob o governo do populista Berlusconi, enfraquecido pelos escândalos pessoais do premiê e dividido sobre como reagir, o país buscou ganhar tempo, prometendo austeridade, mas só para 2013. Foi perdendo credibilidade à medida que não entregava as reformas que prometia aos parceiros europeus. Pressionado, Berlusconi fez de tudo para se manter no poder. Quando admitiu renunciar, ficou a impressão de uma manobra e de que ele pretendia continuar por mais algum tempo. Acabou empurrado para fora do Palácio Chigi, a sede do governo.

Na Espanha, desde que Zapatero convocou eleições, em julho, sabe-se quem será o próximo premiê: Mariano Rajoy, do liberal Partido Popular. Sabe-se o que ele quer fazer: aprofundamento das medidas de liberalização da economia, privatizações, mais austeridade, ainda que faltem detalhes sobre questões importantes, como a consolidação do setor bancário. E o futuro governo espanhol terá maioria clara no Parlamento, segundo indicam as pesquisas, com legitimidade para aprovar um novo ciclo de reformas dolorosas e impopulares.

Na Itália, até uma semana atrás ninguém sabia quem seria o próximo premiê. A escolha, feita nos bastidores, recaiu sobre um tecnocrata, Mario Monti, que nunca foi eleito para um cargo público. Ele anunciou ontem um gabinete formado por técnicos: não há nenhum político eleito. Sabe-se que o novo governo será aprovado por ampla maioria no Parlamento, pois os partidos não querem ser acusados de jogar o país no caos. Mas, com as divisões no Parlamento e sem um partido majoritário, não se sabe se Monti terá maioria para aprovar suas propostas. E não se sabe nem quais são as propostas, pois ele não divulgou um programa de governo. Apesar de nada nesse processo ser irregular, muitos italianos têm a sensação de que a democracia foi temporariamente suspensa. Ninguém sabe quando haverá eleições (a legislatura atual termina em 2012).

Essa transição expôs o fracasso da classe política italiana, incapaz de propor uma saída e um líder para guiar o país na pior crise no pós-guerra. Isso apesar de a Itália ter 315 senadores eleitos (o Brasil tem 81; os EUA, 100) e 630 deputados (contra 513 do Brasil e 435 dos EUA).

Por vários motivos, a Itália nunca conseguiu adotar a bipolaridade política que vigora nos principais países europeus, como Alemanha, Reino Unido, França e Espanha. Há atualmente na Câmara dos Deputados italiana 15 partidos ou grupos parlamentares (na Alemanha são 5). Os dois maiores partidos italianos controlam apenas 60% da Câmara. Na Espanha, os dois maiores têm 90% dos deputados.

Essa fragmentação política gerou governos fracos e instáveis, incapazes de aprovar reformas difíceis. A Itália, por exemplo, passou relativamente incólume à onda liberal dos anos 80 e 90. Manteve, com isso, sua economia protegida, o que aos poucos foi minando sua competitividade.

Há inúmeros exemplos disso, e posso citar alguns até em família. Quando, anos atrás, parentes meus tentaram abrir uma loja de antiguidades em Veneza, não obtiveram a permissão, pois já havia muitos antiquários na cidade. Ampliar a concorrência, nem pensar. Podiam abrir uma papelaria, se quisessem. Um amigo, dono de uma empresa metalúrgica, rejeitava pedidos muito grandes para não ter de contratar funcionários extras, já que depois era (e ainda é) impossível demiti-los. Na Itália costuma-se dizer que você não contrata funcionários, você se casa com eles. Flexibilizar o mercado de trabalho, com foi feito com sucesso no Norte da Europa, nem pensar, devido à oposição dos sindicatos.

Havia a expectativa de que Berlusconi pudesse fazer o choque liberal de que o país precisa, isso não ocorreu.

A adesão ao euro em 1999 (que impossibilitou desvalorizar a moeda) e a globalização (que abriu mercados e transferiu produção) foram duros golpes para o fechado modelo italiano. Desde 99, a Itália cresceu todos os anos abaixo da média da zona do euro (veja gráfico). Isso sugere graves problemas estruturais, e não apenas conjunturais. O Estado italiano, por exemplo, custa mais que o Estado alemão, em termos relativos. E parece óbvio que o Estado alemão presta serviços melhores que o italiano.

Monti e Rajoy têm missões hercúleas pela frente. Com o colapso do setor de construção, a Espanha ficou sem o motor do crescimento e precisa achar um novo modelo. A Itália ainda tem uma base industrial-tecnológica superior à espanhola. Mas Monti (ou alguém depois dele) terá de enfrentar a tarefa de refundar a Itália, 150 anos depois.

FONTE: VALOR ECONÔMICO

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