sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Ganhando feição própria:: Maria Hermínia Tavares de Almeida

Dilma após receber a faixa presidencial de Lula: os níveis inéditos de apoio ao governo e à presidente no primeiro ano mostram que há lastro social para manter o rumo inicial de sua gestão

O primeiro ano da presidente Dilma Rousseff pode ser avaliado à luz dos desafios que enfrentou: alguns comuns a todos os que governaram o Brasil desde a redemocratização, outros que eram só dela.

O primeiro desafio é institucional e resulta do tipo específico de sistema presidencialista que temos, denominado pelos cientistas políticos de presidencialismo de coalizão. Nele, por força de um sistema multipartidário, o partido do chefe do Executivo é sempre minoritário (O PT tem hoje pouco mais de 20% das cadeiras na Câmara Federal). Em consequência, a sustentação do governo no Congresso e a capacidade de aprovar legislação de seu interesse dependem da costura de uma coalizão muito ampla - e por isso politicamente heterogênea. Esta requer, à maneira parlamentarista, a distribuição de postos ministeriais de primeiro escalão - e de outros escalões subalternos- entre os partidos que apoiam o governo e a consideração permanente dos interesses e apetites da "base aliada".O Executivo brasileiro tem instrumentos importantes para disciplinar sua base; o principal deles, a medida provisória. Entretanto, produzir decisões sob o presidencialismo de coalizão, para além dos poderes legislativos do Executivo, demanda muita habilidade e uma combinação especial de firmeza e flexibilidade política de parte da Presidência. Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, cada um a seu modo, eram "animais políticos", negociadores experientes e homens do compromisso, atributos que não parecem caracterizar a presidente.

Ainda assim, dados preliminares do Banco de Estudos Legislativos do Cebrap, que compila as votações no Congresso, indicam que o governo Dilma não se distingue de seus dois antecessores no que diz respeito à disciplina dos partidos da coalizão governante, ou seja, à porcentagem de parlamentares que acompanha a indicação de voto da liderança de seu partido. São valores elevados e semelhantes aos obtidos por Fernando Henrique e Lula, embora, como sempre, variem conforme o partido.

Dilma tomou distância do realismo cínico com que problemas como as suspeitas sobre a conduta de ministros foram encarados durante os anos Lula

Do ponto de vista substantivo, o governo aprovou legislação importante e de seu interesse, como a lei do salário mínimo; a regulamentação da Emenda 29, que define as porcentagens mínimas requeridas nos três níveis da federação para os gastos em saúde; o Pronatec, que destina recursos alentados à qualificação profissional; e a Comissão da Verdade.

O desafio específico que a presidente enfrentou foi o de dar cara própria à sua administração; tarefa nada trivial, sendo o governo de continuidade e a presidente, criatura política do antecessor Lula.

No plano das ações de governo, há coisas novas que são desdobramentos de políticas herdadas da administração anterior e correções de rumo sutis, mas importantes, com relação à era de seu patrono. No primeiro caso, está o Plano Brasil sem Miséria, desdobramento do Bolsa Família com a meta ambiciosa de acabar com a pobreza extrema. Nas mãos de uma equipe sob a coordenação competente da professora Ana Fonseca, o plano trata também do problema da "porta de saída", que o Bolsa Família não equacionou e deve permitir aos beneficiários de transferência de renda deixarem os programas sem voltar à situação de vulnerabilidade e pobreza.

Correção de rumo foi a inflexão de nossa política externa. Reafirmando a disposição de projetar o país na cena global e aumentar sua presença nas organizações multilaterais - objetivos que datam de muito antes da ascensão do PT à Presidência -, a atuação de nossa diplomacia mostrou compromisso mais firme com a agenda internacional de direitos humanos, relegada pelo governo Lula em nome de um pragmatismo extremado. Dilma demonstrou, assim, compreender que a adesão a valores universais é um traço tão constitutivo da identidade internacional do Brasil quanto a opção do país pelo "soft power", ou a sua aspiração de autonomia com relação às grandes potências.

Além disso, o governo vem adquirindo feições próprias graças também a um estilo político mais sóbrio e mais sintonizado com uma sociedade aberta, na qual são muitos e incontroláveis os caminhos pelos quais circulam as informações e na qual os políticos do governo e da oposição estão expostos, como nunca, ao escrutínio da opinião pública - sem falar das organizações do Estado e da sociedade que têm por objetivo monitorar suas ações.

A maneira como a presidente tem lidado com as suspeitas sobre a conduta de seus ministros permitiu que o que poderia ser uma crise de governo - a queda, em menos de um ano, de seis ministros visados pela imprensa - tenha se transformado em elemento importante de um estilo político. Dilma tomou distância do realismo cínico com que problemas do gênero foram encarados durante os anos Lula.

Da mesma maneira, a formação de um ministério que, pela primeira vez na história do país, conta com um número significativo de mulheres é indicador de uma sensibilidade mais apurada para valores e símbolos típicos de uma democracia de classes médias, em cuja direção o país parece caminhar.

Nos últimos 18 anos, o país tomou rumo. Com Fernando Henrique, conquistamos moeda estável e fizemos muitas das reformas institucionais que nos prepararam para o crescimento econômico virtuoso e nos devolveram o respeito internacional. Com Lula, começamos a crescer e avançamos significativamente na construção de uma sociedade mais justa e menos desigual e de um país mais importante na cena externa. O governo Dilma poderá talvez devolver algo do respeito dos cidadãos por seu sistema político e suas instituições, além de nos levar a um passo adiante na direção de um país menos injusto e mais plural.

Os desafios são enormes e de todo tipo, mas Dilma começou bem. Os níveis inéditos de apoio ao governo e à presidente no primeiro ano de gestão mostram que há lastro social para continuar assim.

Maria Hermínia Tavares de Almeida é professora do Instituto de Relações Internacionais e do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo

FONTE: VALOR ECONÔMICO

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