quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Reflexão do dia – Le Monde

"Por ter se recusado a apontar publicamente a natureza do regime tunisiano - uma cleptocracia brutal - a França pagará um preço na Tunísia do futuro. Por ter sustentado o regime de Hosni Mubarak, os Estados Unidos estarão na defensiva no Egito de amanhã. "

LE MONDE. É preciso chamar um ditador de ditador. Editorial, Paris, 2/2/2011

Ditador egípcio resiste e põe adeptos para atacar nas ruas

Numa demonstração de resistência do governo, partidários do ditador Hosni Mubarak saíram às ruas montados em camelos e cavalos, armados com facões, chicotes e pedaços de madeira, e atacaram violentamente opositores na Praça Tahrir, palco dos protestos que há dez dias sacodem o Egito. Muitos deles receberam cerca de R$ 56 para participar. O Exército nada fez para conter as cenas de selvageria que culminaram com três mortos e pelo menos 600 feridos, segundo o governo. Este número pode chegar a 1.500, de acordo com médicos que atenderam as vítimas até em emergências improvisadas nas mesquitas. Os EUA pediram antecipação das eleições e exigiram uma transição imediata. Europeus endureceram o tom e já falam em fim da Era Mubarak. No Iêmen, o ditador que está há 32 anos no cargo anunciou que deixará o poder. Mas só em 2013.

Batalha épica em praça egípcia

REVOLTA NO MUNDO ÁRABE

Mubarak envia partidários para atacar opositores. Três morrem e 1.500 se ferem após violentos confrontos

Fernando Duarte

Ironicamente, no dia em que os serviços de internet foram restabelecidos no Egito, a verdadeira face do regime de Hosni Mubarak foi mostrada ao mundo: partidários do governo infiltrados saíram às ruas, montados em cavalos e camelos, armados com facões, pedras e bastões, deflagrando uma batalha campal contra oposicionistas na Praça Tahrir, símbolo dos protestos que há dez dias sacodem o país. Os opositores revidaram, quebrando o calçamento e atirando blocos de cimento contra os manifestantes pró-Mubarak, derrubados e espancados.

Logo suplantados em número pelos opositores, os governistas infiltrados subiram em prédios, atirando do alto tijolos e coquetéis molotov contra a multidão perto do Museu Egípcio, incendiando uma de suas árvores. Nas portas dos edifícios, policiais à paisana impediam os opositores de entrar para deter os ataques.

Segundo o governo, três pessoas morreram e mais de 600 ficaram feridas. Mas médicos que atenderam os feridos diziam que o número passou de 1.500, com mesquitas servindo de hospitais. Os partidários de Mubarak, que chegaram em ônibus ao Centro, tiveram o reforço das autoridades e até cavalos e camelos, usados para investir com chibatadas contra a multidão. O Exército não impediu sua passagem e se restringiu a policiar o Museu Egípcio e a apagar as chamas.

Jornalistas são presos e agredidos

Desde cedo, as ruas do centro da capital receberam passeatas pró-Mubarak. Ainda que não seja anormal ver apoio ao presidente numa população de 80 milhões de habitantes, o timing levantou suspeitas.

Menos de 12 horas depois do discurso em que o presidente anunciou a decisão de não se candidatar nas eleições de setembro - e depois de ordenar que os opositores deixassem a praça -, pelo menos 20 mil pessoas estavam prontas para marchar com uma infinidade de cartazes com a foto de Mubarak e carros de som, algo nunca visto nos protestos de oposição. Mas a grande ajuda veio da polícia uniformizada e secreta, cujos agentes estavam atentos também aos jornalistas na passeata.

Embora alguns organizadores jurassem que o destino da multidão era a praça da mesquita Mustafa Mahmoud, que não é perto da Tahrir, logo foi tomado o rumo do local ocupado pela oposição.

- Não vamos brigar com ninguém, mas queremos mostrar ao mundo que Mubarak é um homem bom. Há muita gente querendo ver nosso país se transformar no Iraque, com terrorismo e ocupação de tropas americanas - disse o engenheiro Abdel Ali.

A visão de uma câmera de TV fazia com que os manifestantes exigissem mostrar seu apoio ao presidente, com uma jovem, nascida em 1981, o mesmo ano em que Mubarak assumiu o poder, declarando estar nas ruas para defender o homem que considerava seu verdadeiro pai. Para aumentar a adesão, foi declarado ponto facultativo em várias repartições públicas e, segundo relatos, houve ofertas de cachês de até 200 libras egípcias (o equivalente a R$56) para participantes.

Por volta de 14h, os primeiros grupos chegaram à praça e não demoraram 15 minutos para que houvesse os primeiros enfrentamentos. A ira dos partidários do governo também se dirigiu a jornalistas, incluindo o repórter da rede CNN Anderson Cooper, que recebeu socos e chutes na cabeça. Ele e sua equipe foram atacados quando atravessavam um grupo de manifestantes pró-governo. Um homem tentou arrancar a câmera da CNN, enquanto outros investiam contra a equipe. Em outro momento, um jornalista da TV al-Arabiya, de Dubai, foi atacado e desmaiou.

Jornalistas num dos hotéis próximos à Tahrir receberam a visita de seguranças armados, ordenando que ninguém filmasse ou tirasse fotos das sacadas. Quatro profissionais israelenses e um belga foram presos. O Comitê de Proteção aos Jornalistas, com sede em Nova York, acusou o governo egípcio de orquestrar os ataques, na tentativa de encobrir a verdade. "Condenamos os ataques e pedimos a todas as partes para evitar a violência contra jornalistas", disse um comunicado do CPJ. O governo, no entanto, classificou as acusações de envolvimento na repressão de "ficção".

Até o fim da noite de ontem ainda havia enfrentamentos, com ambulâncias tentando abrir caminho para socorrer os feridos. De acordo com a TV estatal, a ordem do Exército era evacuar a praça, que seria bloqueada.

- A atmosfera estava incrivelmente violenta, e os dois lados perderam as estribeiras. Mas passamos quase uma semana em Tahrir sem que ninguém ficasse ferido, manifestando de forma pacífica nosso desejo por democracia. Fomos atacados covardemente - disse Karim Ennarah, um dos manifestantes da oposição.

Cem brasileiros ainda estão no país

O embaixador do Brasil no Cairo, Cesare Mantonio, disse que será necessário repensar o esquema de atendimento aos brasileiros após os acontecimentos na Praça Tahrir - embora ainda não haja planos de evacuação já que o Aeroporto do Cairo permanece aberto. De acordo com a embaixada, há cerca de cem turistas brasileiros ainda no Egito, o mesmo número da população de residentes. Os problemas com os voos têm dificultado a saída, mas há quem reclame de falta de orientação, como a estudante Thaís Justen, que vive em Heliópolis, a dez quilômetros do centro, onde a falta de policiamento levou os moradores a formar milícias para evitar saques.

- Simplesmente me disseram para ficar em casa ou ir para o aeroporto esperar meu voo para o Brasil, que só na sai na sexta-feira.

Ontem, mais uma companhia aérea, a britânica BMI, anunciou a suspensão de serviços até segunda ordem.

FONTE: O GLOBO

O espírito de 1776:: Clóvis Rossi

PARIS - Os graves incidentes de ontem no Cairo não mudam o essencial: a revolução em curso no mundo árabe ou, ao menos, na Tunísia e no Egito é profundamente ocidental na alma.

Ou, como prefere Nicholas Kristof ("New York Times"), escrevendo da praça Tahrir, hoje mundialmente famosa, o movimento egípcio fala "a linguagem de 1776", o ano da independência norte-americana, seminal na história da democracia (o que se fez depois com ela é outra história).

Não se queimaram bandeiras de Israel e dos Estados Unidos, o que tira o conflito Israel/palestinos do foco de uma revolta árabe, talvez pela primeira vez na história. Mesmo quando se sabe que as cápsulas de gás lacrimogêneo disparadas pela polícia contra os manifestante traziam a inscrição "made in USA", o movimento não gritou "Yankees, go home".

Ao contrário, pedem que os ianques os apoiem e abandonem o ditador Mubarak de uma boa vez. Fazem questão de usar slogans em inglês, para que as TVs os filmem e o público ocidental os entenda.

De alguma maneira, e guardadas as imensas diferenças geográficas, históricas, culturais etc., é a reprodução do levante húngaro contra o comunismo de 1956 e do movimento dos alemães orientais que acabou levando à queda do Muro de Berlim, primeiro, e a do comunismo não muito depois.

Demonstra que a ideia de democracia goza de extraordinária saúde, a ponto de David Brooks, no "International Herald Tribune" de ontem, ter contabilizado mais de cem levantes democráticos nas duas últimas décadas, a queda de mais de 85 regimes autoritários e a instalação de 62 novas democracias, ainda que definidas de maneira frouxa.

O Ocidente não tem o direito de desperdiçar a chance de dar conteúdo a uma ideia que é tão sua, por mais deturpada que tenha sido.

FONTE: FOLHA DE S. PAULO

Mudança de rumo:: Merval Pereira

A onda de revolta que está abalando os países árabes está também colocando em discussão a complacência com que as maiores potências ocidentais lidam com os ditadores da região, a pretexto de prevenir a ascensão de governos radicais islâmicos. Nas ruas do Egito ou da Tunísia, ou da Jordânia, ou do Iêmen, os protestos encontram ressonância numa juventude que aparentemente nada tem de radical e se espelha nas democracias ocidentais, ajudada por uma rede de relacionamento social que não tem fronteiras no Facebook ou no Twitter.

Também começa a tomar corpo, nos meios políticos e intelectuais de países como a França, a ideia de que não há mais condições de aceitar apoiar governos que não levem em consideração os direitos humanos como valor universal.

O editorial do "Le Monde" de ontem, por exemplo, vai direto ao ponto: "É preciso chamar um ditador de ditador", é seu título, que reflete esse debate que se instala nos países responsáveis pela sustentação política de ditaduras como as de Mubarak no Egito.

Diz o jornal francês: "Por ter se recusado a apontar publicamente a natureza do regime tunisiano - uma cleptocracia brutal - a França pagará um preço na Tunísia do futuro. Por ter sustentado o regime de Hosni Mubarak, os Estados Unidos estarão na defensiva no Egito de amanhã".

Os jornais estampam, cheios de culpa, as mansões que a família Ben Ali tem na França, em especial o "hotel particulier" no 16º distrito, ou a da família Mubarak em Londres, como já o fizeram com vários outros ditadores nos últimos anos, provas da leniência com que têm sido tratados nos últimos anos pelos governos europeus e dos Estados Unidos.

Há uma especulação de que o presidente americano Barack Obama poderá aproveitar a ocasião para reafirmar a política de direitos humanos que foi implantada pelo ex-presidente democrata Jimmy Carter, retirando dos republicanos radicais a bandeira de criticar a relação do governo com ditaduras árabes ou a China.

O novo governo brasileiro, por seu turno, está assumindo uma posição de acordo com essa tendência internacional, que deve se aprofundar dependendo do desfecho da revolta popular no Egito.

A proposta oficial brasileira para que a ONU passasse a tratar os países que violam os direitos humanos com mais condescendência, evitando críticas públicas aos regimes autoritários, não foi levada em consideração por aquele organismo internacional e, pelo visto, será abandonada pela nova gestão do Itamaraty, embora o chanceler Antonio Patriota, como secretário-geral da antiga administração, não possa ignorar a iniciativa.

Ele mesmo, no Fórum Econômico de Davos, questionado sobre o fato de que o governo brasileiro nunca havia levantado questões sobre a transgressão dos direitos humanos em países "amigos" como Cuba ou Venezuela, alegou que em alguns momentos agir nos bastidores é mais efetivo, a mesma justificativa da gestão de Celso Amorim.

Mas, como a demonstrar que alguma coisa mudara, Patriota ressaltou que, quando for necessário, o Brasil não se negará a reagir de público contra a transgressão aos princípios democráticos em qualquer país.

A própria presidente Dilma Rousseff afirmou recentemente que não terá nenhum problema em criticar Cuba em caso de violação dos direitos humanos, que ela considera um ponto inegociável para seu governo. Ao usar, e permitir que o governo use, seu exemplo pessoal de ex-torturada para garantir que não transigirá nessa matéria, a presidente Dilma Rousseff está se empenhando pessoalmente nessa diretriz de nossa política externa.

Precisa ainda comprovar suas palavras com ações em relação a Cuba e a Venezuela, mas em relação ao Irã ela já deu provas de que não se deixará levar pelos interesses puramente políticos na questão dos direitos humanos.

A aproximação com o governo de Barack Obama, que visitará o país em março, também demonstra uma mudança de ventos no Itamaraty.

Muito mais que decisões pragmáticas, se abster em votações contra Cuba com relação à violação dos direitos humanos ou mesmo votar contra uma condenação do governo do Sudão sobre Darfur, onde um conflito étnico matou mais de 200 mil pessoas, fazia parte de uma política de Estado que o governo Lula vinha adotando, mudando um padrão de votação no Conselho de Direitos Humanos da ONU, seguindo geralmente interesses geopolíticos e comerciais.

O respeito aos direitos humanos como condição preliminar para o diálogo entre as nações é consensual entre intelectuais e acadêmicos de várias partes do mundo, e prevalece a tese de que eles não podem ser entendidos como instrumentos de dominação ocidental, como muitos governos, como o da China e vários países árabes, tentam caracterizá-los.

A identidade coletiva é uma característica do mundo atual, e o sociólogo Renato Janine Ribeiro chama a atenção para o fato de que a necessidade de pertencimento a um grupo está muito presente hoje, e, mais do que significar uma escolha individual, significa que a identidade coletiva precede toda forma de liberdade.

Em vez do cartesiano "penso, logo existo", a definição seria "nós somos, logo eu sou". Ou "eu pertenço a esse determinado grupo porque livremente o escolhi".

Seria esse o renovado conceito de relações sociais trazido pelos novos meios de comunicação que viabilizou as manifestações em diversos países do mundo árabe, o que caracterizaria a origem espontânea, fora dos partidos políticos tradicionais, das revoltas da Tunísia e do Egito.

O difícil é identificar neste momento se esse movimento espontâneo terá força política suficiente para levar adiante a mudança, e se dele surgirá um líder que possa negociar com as demais forças políticas.

Ou se os movimentos políticos mais organizados se aproveitarão do momento para assumir o vácuo de poder que uma eventual saída de Mubarak deixará. Por isso, os países europeus, e principalmente os Estados Unidos, querem controlar uma transição política, para ter garantias de que a substituição não mudará os rumos do Egito no Oriente Médio.

FONTE: O GLOBO

Brasil silencia, mas avalia que Mubarak tem de sair:: Eliane Cantanhêde

O Planalto e o Itamaraty concluíram que o ditador Hosni Mubarak não tem mais condições de se manter no comando do país.

A avaliação é de que ele não se sustentará até as eleições de setembro, nem terá condições de eleger seu filho Gamal. A expectativa é de recrudescimento da crise.

Com base nos relatos do embaixador brasileiro no Cairo, Cesário Melantonio, o governo avalia que os manifestantes que se dizem "pró-Mubarak" na verdade são policiais à paisana coordenados pelo novo ministro do Interior, Mahmoud Wagdi.

Segundo Melantonio, o regime de Mubarak está tentando dissimular a sua ação contra os manifestantes. Primeiro, retirou a polícia e pôs o Exército. Depois, o Exército anunciou que se retirava. Agora, usa os policiais na rua travestidos de civis.

A atitude de Mubarak gerou reuniões ontem no Planalto e no Itamaraty para "subir o tom" contra o regime. O governo brasileiro tem sido cauteloso ao se manifestar publicamente sobre a crise, sempre de forma mais amena que EUA e Europa.

O Itamaraty chegou ontem a cogitar divulgar uma nova nota mais dura sobre a situação na região, mas no fim do dia voltou atrás por ordem do ministro Antonio Patriota.

Desde que a onda de manifestações começou no Egito, o Ministério de Relações Exteriores divulgou duas notas.

Ambas diziam que o governo acompanha com atenção a situação no país.

Nas reuniões, analisou-se também que está se tornando inviável a realização da cúpula de chefes de Estado e governo dos países árabes e da América do Sul, marcada para o dia 16, em Lima.

Na ONU, o Brasil avalia que, por enquanto, não é o caso de levar o tema ao Conselho de Segurança.

O país assumiu anteontem, por um mês, a presidência do CS e passou a organizar sua agenda de debates.

"Achamos que no momento a questão [egípcia] é mais bem abordada internamente. A situação é de acompanhar e ver como vai evoluir", afirmou a embaixadora brasileira nas Nações Unidas, Maria Luiza Viotti.

FONTE: FOLHA DE S. PAULO

A esfinge do levante egípcio:: Cláudio Gonçalves Couto

Ainda são muito incertas as consequências do levante de massas que convulsiona o Egito e pode levar à derrubada do regime autoritário de Hosni Mubarak. A principal razão para isto é que as forças de oposição - que hoje se escoram na grande insatisfação popular para abalar a estrutura de poder vigente - são muito dispersas e diversificadas. É mais fácil galvanizar uma efêmera aliança negativa entre elas (para derrubar o atual governo) do que erigir coalizões capazes de conduzir adiante projetos de poder mais consistentes. E, para quem, otimista, vê na atual movimentação um desabrochar da democracia num país árabe, um alerta: a mais estruturada das organizações políticas de oposição não é laica, mas religiosa: a Irmandade Islâmica.

Poder-se-ia não ver aí necessariamente um problema, já que organizações de cunho religioso podem desempenhar um papel importante em processos de democratização. Foi este o caso da Igreja Católica e de suas Comunidades Eclesiais de Base no Brasil e em outros países da América Latina. Por estas bandas, em particular no Brasil, a militância política católica operou ao mesmo tempo como um anteparo aos abusos do regime contra os direitos humanos e como um celeiro de lideranças políticas de oposição às ditaduras. Também na Europa do pós-guerra as igrejas tiveram um papel importante na estruturação das novas democracias nascentes, em especial ao dar bases organizacionais aos Partidos Democratas Cristãos de países que haviam sucumbido ao fascismo, como a Itália e a Alemanha.

Há muitas diferenças importantes, contudo, entre a América Latina dos anos 80, a Europa do pós-guerra e o Egito de hoje. A primeira delas, que conta para o problema da influência da religião na política, é que tanto latino-americanos como europeus experimentaram a derrubada dos regimes autoritários num contexto social já bastante secularizado, em que propostas de submissão do Estado à autoridade religiosa estavam fora de questão. Certamente, isto não impede que o discurso religioso circunstancialmente invada a esfera da política secular (como ocorreu na última eleição presidencial brasileira), ou que elementos incompatíveis com o caráter laico do Estado subsistam (como os símbolos religiosos presentes em repartições públicas), mas há uma grande distância entre isto e um assalto da religião ao Estado, com o consequente aniquilamento das liberdades individuais e da democracia.

Não existe democracia sem que haja secularização

As sociedades do oriente médio - e, em particular, as sociedades árabes - não alcançaram este mesmo grau de secularização. Há organizações, intelectuais e amplos setores da população que consideram não apenas aceitável, mas indispensável, que a religião paute o Estado. Por isto, é realmente preocupante o fato de a mais bem organizada força de oposição no levante egípcio ser a Irmandade Muçulmana. Num percuciente e oportuno artigo publicado ontem no Valor, Gerald F. Seib observa que inicialmente esquerdistas seculares lideraram o governo instaurado no Irã após a derrubada do Xá, mas logo foram substituídos por uma teocracia, amparada por sua vez num plebiscito nacional em que a população decidiu transformar o país numa república islâmica. São precedentes como este que servem de alerta e explicam a preocupação de Israel, dos governos europeus e dos Estados Unidos.

Não é casual que o presidente Barack Obama, apesar de reconhecer que o regime de Mubarak já não tem como continuar, sinaliza que este ainda poderia ser um condutor confiável da transição para uma nova situação - minimamente estável e ainda favorável aos interesses ocidentais na região. Todavia, dado o clima causado pela mobilização e pela resistência do governo (ontem foram mais de 600 feridos nos confrontos de rua), deverá ser difícil para o presidente egípcio ficar no cargo por mais alguns meses e encaminhar sua própria transição. Por isto, embora Obama tenha publicamente instado Mubarak a permitir a mudança, é mais provável que sua sinalização real dirija-se ao exército. Afinal, no Egito, assim como na Argélia, na Turquia (caso historicamente mais relevante) e em outros países de maioria muçulmana, foram os militares a força política capaz de preservar o Estado secular num contexto social mais amplo bem desfavorável à secularização.

Tradicionalmente esta imposição manu militari da secularização redundou em autoritarismo, o qual foi frequentemente aceito como um mal menor que a teocracia; o caso relativamente recente mais importante foi o da Argélia, quando as potências ocidentais comemoraram o golpe militar que reverteu um resultado eleitoral favorável a um partido islâmico - vitória da "civilização" autocrática sobre a "barbárie" democraticamente eleita. No caso egípcio parece que se abre um espaço para que os militares se apresentem como um guia seguro da transição e como garantidores de um futuro caráter secular do Estado - arranjo similar ao existente na Turquia, onde mais recentemente até mesmo a vitória de um partido moderado de orientação islâmica já pode ser aceita, mas ainda com a presença das forças armadas assegurando os limites seculares da política.

Nas democracias vigentes em sociedades mais secularizadas, tais quais as latino-americanas, essa presença das forças armadas como garantidoras de certos limites para o funcionamento do sistema político é sempre vista como tutela, algo a se lamentar. É assim no Brasil, em que a Constituição de 1988 confere aos militares a função de garantir "os poderes constitucionais" e a "lei e a ordem" internas; foi assim também no Chile pós-Pinochet. Entretanto, nas sociedades islâmicas, muito pouco secularizadas, paradoxalmente a tutela militar parece ser a única forma de assegurar ao menos a secularização do Estado e, consequentemente, algum grau de democracia.

Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP. A titular da coluna, Maria Inês Nassif, está em férias

FONTE: VALOR ECONÔMICO

Iguais a nós:: Demétrio Magnoli

Existe um mundo árabe? "Revolução, revolução, como um vulcão, contra Mubarak, o covarde", cantavam os manifestantes de Alexandria, há uma semana. Da Tunísia ao Egito, uma tempestade de areia deu a resposta à indagação. Em 17 de dezembro, na cidade tunisiana de Sidi Bouzid, o vendedor de rua Mohamed Bouazizi imolou-se em fogo para protestar contra o confisco de seu carrinho de vegetais. O martírio de Bouazizi deflagrou um levante popular que, quase um mês depois, arrancou os dentes da polícia e do exército, provocando a fuga do ditador Zine Ben Ali. Dias mais tarde, jovens dançavam diante dos tanques nas cidades egípcias, enquanto Hillary Clinton lamentava a garantia que dera na véspera, ao proclamar a "estabilidade" do regime de Hosni Mubarak.

Poucas coisas são mais poderosas que a experiência histórica compartilhada. Em 1989, a abertura da fronteira entre Hungria e Áustria, em maio, prenunciou a queda do Muro de Berlim, em novembro, e a extinção do "socialismo real". A derrubada de Ben Ali exerce, entre os povos árabes, uma influência similar à da remoção das barreiras húngaras de arame farpado na esfera de poder soviético. O mundo árabe ergue-se sobre uma língua e uma literatura comuns, uma tradição que atravessa fronteiras. Bouazizi não é um nome, mas uma experiência, para os cidadãos de Túnis, do Cairo, de Argel, de Aman, de Sanaa, de Cartum e até de Riad.

Abusa-se do conceito de cultura. Mundo árabe, na visão de Bernard Lewis, é uma coleção de valores arraigados, que derivam do Islã e conflitam com a tradição ocidental. O "príncipe dos orientalistas" enxergou um defeito irremediável na cultura árabe-muçulmana: uma resistência visceral à mudança, que condenaria os árabes à exclusão da modernidade. "A doutrina ocidental do direito de resistir a um mau governo é estranha ao pensamento islâmico", assegurou Lewis no estilo categórico que lhe granjeou uma reputação imerecida. Hoje, na larga faixa que se estende da África do Norte ao Oriente Médio, árabes muçulmanos exigem liberdade, democracia, direitos, respeito à coisa pública. "Eles" são, no fim das contas, iguais a "nós".

Lewis é um intelectual engajado, o inventor da noção de "choque de civilizações" e o inspirador da ocupação americana do Iraque. Do seu teorema principal ele extraiu o corolário de que os árabes só poderiam ser resgatados para a modernidade pela negação de sua própria cultura. O significado político disso é que o Ocidente teria a missão de libertar os árabes das amarras do "pensamento islâmico", conduzindo-os - pela força, se preciso - até a colina das Luzes. Sob o influxo de tais ideias, os EUA continuaram a sustentar as ditaduras pró-ocidentais no mundo árabe, que se apresentam como paliçadas defensivas contra o avanço do fundamentalismo islâmico. A revolução em curso é uma evidência de que Lewis está errado: nas ruas do Cairo reivindica-se a liberdade, não o retorno do Profeta.

A revolução árabe desenvolve-se nas brechas abertas por um cenário mundial em mutação. Ben Ali caiu não só porque os "de baixo" se insurgiram, mas também porque os "de cima" se cindiram quando ficou patente que a França se esquivava de salvar seu regime. Há menos de dois anos, na Universidade do Cairo, Barack Obama delineou uma nova política dos EUA para o mundo árabe-muçulmano. O presidente rejeitou os dogmas do orientalismo, apontou as contribuições da civilização islâmica para a Renascença e as Luzes, tocou cuidadosamente nas teclas da liberdade e da democracia. O discurso de Obama pode ter sido esquecido no Ocidente, mas continua a reverberar no Egito, tanto entre os "de cima" quanto entre os "de baixo".

O Egito é o núcleo do mundo árabe. A primeira, frustrada, revolução árabe começou lá, mais de meio século atrás, com a ascensão de Gamal Abdel Nasser. No Cairo, de uma costela da Irmandade Muçulmana surgiram os arautos originais do jihadismo de Osama bin Laden. A estratégia geral dos EUA para o Grande Oriente Médio foi definida pela decisão de Anuar Sadat de romper com Moscou para firmar uma aliança com Washington, após a segunda derrota militar ante Israel. Mubarak não é um ditador secundário, como Ben Ali, mas um dos pilares da ordem geopolítica regional. Há razões para Hillary Clinton insistir ainda numa transição controlada, sob a égide de um "diálogo nacional". Mas curvando-se a tais razões Obama renegará seu discurso do Cairo e posicionará os EUA no lado errado da história.

Nenhuma corrente islâmica está à frente da revolução árabe. Os levantes emanam da sociedade civil, especialmente das organizações de advogados e de estudantes e das centrais sindicais. A oportunidade para os fundamentalistas surgiria de uma violência repressiva prolongada. Na Tunísia, a dissolução acelerada da unidade do exército propiciou a queda de Ben Ali. Algo parecido está ocorrendo no Egito, desde o dia em que os chefes militares rejeitaram a ordem de matar seus compatriotas. A revolução árabe não obedece à cartilha de Osama bin Laden nem reproduz a trajetória da revolução iraniana de 1979.

Mohamed ElBaradei, um dos líderes da oposição egípcia, acertou duas vezes: ao clamar pela saída incondicional do ditador e ao firmar um pacto democrático com a Irmandade Muçulmana, uma corrente perseguida que renunciou ao terror há quatro décadas e condena sistematicamente a violência jihadista. "Obama precisa entender que se continuar com essa política perderá credibilidade diante de toda a população do Oriente Médio", alertou ElBaradei. Ele poderia reforçar seu argumento convidando o presidente americano a olhar atentamente para as imagens dos manifestantes que tomaram as cidades árabes. Aquelas pessoas não são diferentes dos poloneses, alemães orientais, checos e húngaros de 1989, nem dos iranianos de 2010. São iguais a nós - apenas falam e rezam em outra língua.

Sociólogo e Doutor em Geografia Humana pela USP.

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

Forma e conteúdo:: Míriam Leitão

A presidente Dilma acertou em ir ao Congresso e ler sua mensagem. Nunca fez sentido a burocrática entrega do texto pelo chefe da Casa Civil, que houve em governos anteriores. O país precisava modernizar esse ritual. Mas o evento tem que ser mais simples, direto, menos propagandístico. Não é a hora certa de os tribunais falarem. E muito menos de o senador José Sarney dar-se a homenagem da última palavra.

Nossa democracia é jovem, por isso é bom pensarmos sobre o evento de ontem. Democracia tem rituais e o Brasil está construindo os seus. Nos Estados Unidos, onde é tradicional esse evento, ocorre assim: o presidente vai ao Congresso, presta contas e apresenta suas metas. Depois, o contraponto é feito em discurso de um integrante da minoria. E só. Ninguém mais fala: nem representantes de outros poderes, nem mesmo os presidentes da Câmara e do Senado. Não é hora de linguagem empolada, nem de salamaleques. A oposição aplaude ou não aplaude e assim demonstra o que aceita e do que discorda. O Brasil não precisa copiar ninguém, mas pode pensar um pouco sobre a oportunidade desse momento.

Na terça-feira, foi início do ano judiciário. A presidente lá esteve e, pela boa tradição, nada falou, apenas ouviu. É o momento do Poder Judiciário dizer o que tem que dizer e ponto. Os ministros do STF e TSE não tinham que falar ontem de novo. Na terça-feira, foi o dia das eleições nas duas casas legislativas e os eleitos falaram. Ontem, era o dia de a chefe do Poder Executivo apresentar a perspectiva do seu trabalho, prestar contas e pedir apoio a projetos que terão que ser aprovados pelo Congresso. Dilma fez isso. Errou no tom laudatório.

O discurso foi, em certos pontos, uma repetição do que ela disse quando foi eleita e quando foi empossada. A esta altura, todo mundo sabe que o PAC 2 não representa um investimento de R$955 bilhões. O número foi fabricado para o palanque. No Orçamento de 2011, está previsto investimento de R$64 bilhões do governo federal. O resto é o truque de se somar investimento de estatais, estados, de empresas privadas e dívidas que as famílias assumirão para comprar seus imóveis. Era hora de falar sério sobre alguns terríveis desafios e olhar com sinceridade para os problemas que temos que superar. Obama admitiu que seu país está em nono lugar em estudantes formados em universidade, que está perdendo a corrida de tecnologia de energia solar para a China, que a Coreia do Sul bate o país em vários itens. Enfim, fez autocrítica que tornou os autoelogios mais críveis.

A presidente admitiu um erro num país que pintou como quase perfeito: que os aeroportos estão ruins. No mercado de trabalho ela corretamente comemorou o fato de que pela primeira vez os trabalhadores formais são maioria. Há muito tempo isso não ocorria. Mas ficaria diferente da propaganda eleitoral se ela admitisse o alto desemprego de jovens. Em Salvador, a taxa chega a 22%. Desemprego de jovens hoje é um problema mundial e cada país está debruçado sobre esse desafio.

O discurso teve alguns excelentes pontos. A presidente Dilma avisou que o governo implantará o sistema de alerta contra desastres naturais e que vai apoiar os estados nesse trabalho de identificação de áreas de risco. "Nenhum país é imune aos desastres naturais, mas não iremos esperar o próximo ano, as próximas chuvas pra chorar as próximas vítimas", disse a presidente. Ela propôs um pacto social para acabar com a miséria. Não bastará a transferência de renda, será preciso educação fundamental. Ao falar da educação, ela creditou ao país "nas últimas décadas" a universalização do ensino fundamental. Perdeu uma oportunidade de fazer um gesto à oposição: foi a campanha "Toda criança na escola", no governo Fernando Henrique, que atingiu esse objetivo. Fez bem em reafirmar o compromisso anti-inflacionário: "Não permitiremos em nenhuma hipótese que a inflação venha a corroer o tecido econômico." Seria esperar demais que ela fizesse justiça ao grupo político que realmente derrotou a inflação. Uma das bases da inflação baixa é o controle rigoroso dos gastos públicos, e naquele mesmo momento seu ministro da Fazenda, Guido Mantega, estava defendendo a indefensável maquiagem nas contas públicas feita no ano passado.

Ela foi aplaudida fortemente quando anunciou que tem na agenda as reformas tributária e política. É bom que ela saiba que aquelas palmas não significam aprovação. Nessas duas reformas cada um tem um projeto na cabeça, e uma reforma tributária passa por uma trabalhosa negociação com os estados.

Temos razão para sentirmos orgulho da democracia e algumas razões de constrangimento. Os ministro Cezar Peluso e Ricardo Lewandowski falaram da razão de orgulho: uma robusta estrutura constitucional que permite ao país resolver os conflitos. A tragédia do Egito, que ontem se aprofundou com briga de rua incitada pelo governo, confirma os dois juízes. Só a democracia tem os canais de escape que permitem a solução negociada dos impasses.

Ao fazer o longo e tortuoso discurso, o senador José Sarney lembrou das várias vezes que o Congresso foi fechado na História do país. Só se esqueceu de dizer que ele estava ao lado da ditadura que fechou a Casa em 1968 e 1977. O pior momento da cerimônia de ontem foi este: quando o presidente do Senado, em seu extravagante quarto mandato, deu a si mesmo o direito da palavra final.

FONTE: O GLOBO

Mera constatação:: Dora Kramer

O País todo sabe desde a campanha eleitoral que Dilma Rousseff pretendia fazer um governo de "continuidade". Para a eleição isso bastou.

Nos primeiros dias de governo da presidente soubemos que a manutenção do conteúdo implicaria uma alteração significativa da forma, marcada pela diferença de estilo em relação ao antecessor.

De um governo, no entanto, exige-se (ou deveria ser exigido) mais que conceitos vagos e mudança de maneiras. É preciso que o País tenha claro quais são seus objetivos, aonde vai e como pretende chegar lá.

Isso, mais de um mês depois, ainda não se sabe a respeito do governo iniciante. Chamá-lo de "novo" seria uma impropriedade linguística, em face da opção pelo uso de material usado em sua composição.

Ao apresentar suas diretrizes ao Congresso Nacional, a presidente Dilma Rousseff poderia ter alterado essa percepção, mas escolheu não fazê-lo, perdendo uma excelente oportunidade de explicitar seu projeto de Brasil aos brasileiros.

Ficou na repetição dos feitos passados, no diagnóstico de metas, nas proposições genéricas - erradicação da miséria, ampliação de oportunidades, política econômica consistente - e nas constatações óbvias.

Entre elas prioridades às áreas de educação, saúde e segurança, apresentadas sob o invólucro do surrado apelo ao "pacto social", à formação de "parcerias sólidas" e "ações integradas" entre municípios, Estados e União.

Pois bem, mas como o governo pretende desatar os nós que amarram o Brasil ao passado? A presidente reafirmou compromisso com a estabilidade econômica esquecendo-se de que só se chegou a ela mediante um programa muito nítido de reformas estruturais iniciado no governo Fernando Collor, aprofundado nas administrações Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, precisando ainda ser consolidado com a conclusão das reformas restantes.

Sobre elas a presidente referiu-se de passagem, citando apenas duas (política e tributária) e, ainda assim, sem especificar o que realmente quer o governo.

Mostrou disposição de trabalhar em prol dos "superiores interesses do Brasil", em conjunto com o Congresso, o Judiciário, a sociedade. Faltou dizer em que termos.

De maiorias. Nem se pode dizer que o governo tenha feito barba, cabelo e bigode no Congresso, pois não houve disputa de coisa alguma nas eleições das presidências da Câmara e do Senado.

A rigor, não houve sequer troca de comando. Na véspera o senador José Sarney e o deputado Marco Maia já ocupavam os postos para os quais foram eleitos no dia seguinte.

A maioria agora acachapante funcionará como dantes: eficaz como instrumento de defesa no caso de escândalos que requeiram CPIs e similares, mas dependente de negociações específicas no caso de votações de projetos de interesse do governo.

Faro fino. O PSDB reivindicou e conseguiu ocupar a 1.ª secretaria do Senado. Ali, de onde o ex-senador Efraim de Morais (DEM-PB) saiu carregando acusações de contratação de funcionários fantasmas e fraudes em licitações, estão concentradas as causas dos escândalos administrativos da Casa.

É de se observar qual será a atitude dos tucanos para compreender o motivo da ambição pelo posto, porque só há duas possibilidades: consertar os malfeitos ou tirar proveito deles.

Capitania. José Sarney mobiliza sua tropa, incluídos ministros de Estado, para "ajudar" na tentativa de eleger Renan Calheiros seu sucessor na presidência do Senado.

Ao mesmo tempo o líder do PMDB na Câmara, Henrique Eduardo Alves, já se comporta em público como futuro presidente da Casa, em cumprimento ao acordo de alternância com o PT.

Portanto, o PMDB está firme no propósito de daqui a dois anos acumular a Vice-Presidência da República com as presidências da Câmara e do Senado.

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

Forma e conteúdo:: Eliane Cantanhêde

Se Dilma Rousseff havia enviado sinais de que faria uma inflexão na política externa na área de direitos humanos, ela ontem deixou claríssimo que seu governo não apenas manterá como aprofundará a política Sul-Sul, dando de ombros para Estados Unidos e Europa e apertando os laços com os vizinhos da América do Sul.

Ela simplesmente não citou os EUA ao falar na abertura dos trabalhos do Congresso, nem mesmo para fazer uma gentileza diplomática com Barack Obama, que fugiu à regra para anunciar sua vinda de março ao Brasil justamente no discurso ao Parlamento. Seria adequado, até porque o secretário do Tesouro, Timothy Geithner, chega ao Brasil na próxima segunda.

Na outra ponta, Dilma falou três vezes na América do Sul e defendeu a reforma da ONU, o multilateralismo e o "mundo multipolar" (sem os EUA mandando em tudo). Um discurso que poderia ter sido perfeitamente escrito pelo ex-chanceler Celso Amorim.

Em compensação, o governo tem sido bem mais cauteloso quando se trata da crise do Egito. Ou melhor, do mundo árabe. Enquanto os Estados Unidos já falam oficialmente em transição tranquila e o Reino Unido já classifica a pancadaria de ontem contra os manifestantes como "inaceitável" (um termo forte e raro em diplomacia), o Brasil continua em cima do muro.

Em nota, o governo defendeu ações e reações pacíficas. Ah, bom! Em rápida declaração ao deixar a Argentina, a própria Dilma disse torcer para que a saída seja "democrática e leve o povo a desfrutar do desenvolvimento". Ah, bom!

Se fosse no governo anterior, Lula já teria falado umas três metáforas impróprias e Amorim já estaria certamente articulando uma reunião internacional para salvar o mundo árabe de teocracias.

Conclusão: o foco da política externa não muda. O que muda, como dito aqui desde o início, são os atores. E, portanto, os estilos.

FONTE: FOLHA DE S. PAULO

Governismo de Kassab afeta projetos de Serra no PSDB:: Jarbas de Holanda

A escolha, anteontem, de ACM Neto para a liderança do DEM na Câmara dos Deputados, com larga vantagem sobre o concorrente, antecipou provável vitória de seu grupo na disputa do comando do partido na convenção nacional a realizar-se no próximo mês. O que deverá reforçar o movimento do prefeito de São Paulo Gilberto Kassab em direção ao PMDB de Michel Temer, como parte do objetivo de uma candidatura sua ao governo paulista em 2014 contraposta à do tucano Geraldo Alckmin, buscando reeleger-se. Objetivo cuja viabilização não se prefigura como possível por meio de alternativa distinta dos polos da política paulista, PSDB e PT – como ele procurou justificar esse movimento -, só podendo vir a ganhar competitividade sendo assumida também pelos petistas e pelo Palácio do Planalto. Este, agora, independentemente do exame de um cenário do gênero, acompanha com vivo interesse os passos de Kassab (avaliando a articulação de Temer para abrir-lhe as portas do PMDB) pelo que a adesão do prefeito representará como ganho para o governo federal e como enfraquecimento da oposição. Para Kassab, a perspectiva de derrota dos seus aliados na convenção do DEM vai inviabilizando o que buscava nela: ou dissolver o partido para fusão com o PMDB ou acertar com os novos dirigentes uma postura de concordância ou tolerância à migração dele e de parlamentares aliados para outra legenda (a peemedebista). Cabendo assinalar que tal migração – no contexto da forte queda das bancadas federais do DEM no último pleito nacional – está sendo também avaliada por outras lideranças do partido (entre as quais Raimundo Colombo, de Santa Catarina, um dos dois governadores eleitos pela legenda, segundo informação do Panorama Político, do Globo de ontem).

A outra dimensão do realinhamento partidário do prefeito de São Paulo é a de suas implicações com os projetos de José Serra. Esse realinhamento – tratado em reportagem recente do Valor, com o título “Sobrevivência política afasta Serra de Kassab” – vai retirando do ex-governador a principal base de apoio que lhe restava (após a derrota na última sucessão presidencial e a substituição no governo paulista de seu grupo pelo de Geraldo Alckmin) para o embate que trava com Aécio Neves pela liderança nacional do PSDB e da oposição. Com a perda dessa base, para desencadear tal embate Serra faz o ensaio de uma aliança anti-Aécio com Alckmin. Na qual os dois caminhariam juntos em 2014 – o indicado como candidato a presidente apoiando a candidatura do outro a governador. A aliança começaria com a eleição de Serra para a presidência do PSDB, neste primeiro semestre de 2011. Mas até o ensaio parece pouco viável em face da persistência de boas relações entre Aécio e Alckmin, como já se evidenciou no acerto entre ambos em torno da indicação dos líderes do partido e da oposição na Câmara Federal, bem como da de Tasso Jereissatti para presidente do Instituto Teotônio Vilela, que tem assento na executiva nacional. E porque uma possível nova candidatura de Alckmin ao Palácio do Planalto ou uma mais provável à reeleição não deverão ser parte de um esquema anti-Aécio.

Quanto ao relacionamento de Aécio com o DEM, cabe registrar que a corrente que vai se afirmando na luta interna partidária (com a eleição de ACM Neto para a liderança na Câmara) tem clara postura de apoio a uma candidatura presidencial do senador mineiro.
Jarbas de Holanda

Para oposição, Dilma fez discurso genérico; aliados elogiam diálogo

NOVA LEGISLATURA

Senador Aécio Neves diz que pronunciamento foi "conjunto de boas intenções"

Cristiane Jungblut e Adriana Vasconcelos

BRASÍLIA. O gesto da presidente Dilma Rousseff de levar pessoalmente a mensagem sobre as ações de seu governo ao Congresso mereceu elogios dos governistas e da oposição. Mas enquanto os ministros da Casa Civil, Antonio Palocci, e das Relações Institucionais, Luiz Sérgio, buscavam ressaltar a disposição da presidente em estabelecer uma parceria com o Legislativo, os oposicionistas expunham sua desconfiança após ouvirem o que chamaram de discurso "genérico" de Dilma.

- É um conjunto de boas intenções. Mas esse discurso não é muito diferente daquele que ouvimos oito anos atrás. Senti ausência de uma referência mais clara sobre a necessidade de fortalecermos a federação no Brasil - observou o senador Aécio Neves (PSDB-MG).

- O discurso da presidente nós conhecemos, resta saber o que o governo realmente fará - emendou o presidente nacional do PSDB, deputado Sérgio Guerra (PE).

Palocci salientou o simbolismo da presença de Dilma na abertura da 54ª Legislatura:

- É um gesto muito significativo dos três Poderes, que, por um lado respeita a autonomia dos Poderes, e por outro os convida para uma atuação em conjunto, pelo bem do Brasil.

Perguntado sobre eventuais problemas diante de disputas por cargos e votação de pontos polêmicos, como o valor do salário mínimo, Palocci minimizou o clima de insatisfações entre os governistas:

- Faz parte da agenda, não tem problema.

Reforma política em debate

Na mesma linha, Luiz Sérgio disse que os parlamentares saberão levar em conta o gesto da presidente:

- A presidente disse que ela fazia questão de vir. É o valor da relação dos três Poderes.

O presidente nacional do PT, José Eduardo Dutra, disse que o discurso de Dilma foi contundente e mostrou suas principais intenções, como a de fazer a reforma política:

- Acho que (sua vinda) foi um gesto extremamente positivo, não só por vir aqui, mas pelo conteúdo da mensagem. A presidente reafirmou alguns compromissos, e o principal é a parceria com o Poder Legislativo.

Sobre as dúvidas levantadas pela oposição sobre a disposição de o governo encampar realmente uma proposta de reforma política, Dutra acrescentou:

- Todos são a favor de reformas, mas há uma série de divergências que precisam ser discutidas no Congresso. A oposição serve para isso, para reclamar do presidente.

O líder do DEM, deputado ACM Neto (BA), elogiou a presença de Dilma, mas disse que seu discurso não avançou:

- Foi um discurso genérico, um conjunto de intenções, que não traz novidades. Por isso, é difícil até fazer uma avaliação das "boas vontades". Vamos aguardar as medidas legislativas. Mas o fato de ela ter vindo ao Congresso foi positivo, de respeito ao Congresso e merece ser percebido.

Já o líder do PSDB na Câmara, Duarte Nogueira (SP) classificou como "superficial e protocolar" o discurso feito pela presidente Dilma Rousseff.

- Podia pelo menos ter aproveitado a oportunidade de estar sentada ao lado dos dois chefes do Legislativo e fixar metas. E ela pode contar conosco para cumpri-las - criticou Duarte Nogueira.

Colaborou: Isabel Braga

FONTE: O GLOBO

Dilma rejeita Cunha e irrita PMDB do Rio

NOVA LEGISLATURA

Henrique Eduardo Alves, líder do partido, diz que bancada não abre mão de indicar o presidente de Furnas

Gerson Camarotti, Adriana Vasconcelos e Cristiane Jungblut

BRASÍLIA. Com a retomada das articulações para nomeação dos cobiçados cargos do segundo escalão, a mudança do comando de Furnas virou ontem o principal problema do governo por causa do impasse entre PT e PMDB. Os peemedebistas ameaçaram entregar todos os cargos caso a bancada do Rio de Janeiro perdesse o comando de Furnas. Mas segundo interlocutores próximos, a presidente Dilma Rousseff já avisou que não vai aceitar uma indicação do deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) não só para Furnas, mas também para todos os cargos do setor elétrico.

No Palácio do Planalto, há forte contrariedade com as últimas declarações em tom de ameaças do deputado peemedebista por causa das denúncias envolvendo Furnas feitas pelo jornal O GLOBO. A informação de que Cunha estava disposto a manter as ameaças numa entrevista para uma revista semanal foi considerada por ministros como uma espécie de declaração de guerra do peemedebista.

Líder do PMDB se reúne com Palocci e endurece discurso

No início da noite de ontem, o líder do PMDB, deputado Henrique Eduardo Alves (RN), teve um encontro no Palácio do Planalto com o chefe da Casa Civil, ministro Antonio Palocci, e resolveu endurecer as negociações com o governo. Muito próximo de Cunha, deixou claro que não abriria mão de que o comando de Furnas fosse indicado pela bancada do PMDB do Rio de Janeiro e que não aceitaria compensações. A reunião marcou o início das negociações pelo loteamento político dos cargos de segundo escalão.

Para integrantes do PMDB, Henrique Alves fez um desabafo pouco antes de ir para o Planalto: caso a bancada ficasse sem Furnas, seria melhor entregar todos os cargos. O ministro de Minas e Energia, Edison Lobão, chegou a sugerir como solução para o impasse a indicação do ex-diretor da Eletrobras Flávio Decat para o comando de Furnas. Dentro dessa proposta, o PMDB manteria o comando da Eletrobras e da Eletronorte.

- Eu e a presidente Dilma queremos o Flávio Decat - disse Lobão.

Mas a proposta foi rejeitada pela bancada do PMDB da Câmara, o que acentuou o impasse. Inicialmente, o nome de Decat estava indicado para presidir a Eletrobras.

- O Decat não ia para a Eletrobrás? Ele não é uma indicação da bancada. Estamos discutindo nomes técnicos. Não posso como líder desconhecer essa realidade: a bancada do PMDB do Rio tem nove deputados. Como fica essa bancada? Eletrobras e Eletronorte são indicações do Senado e não da Câmara. Por isso, não podemos anular as reivindicações da Câmara - avisou Henrique Alves.

Dilma está disposta a fazer uma mudança completa na diretoria de Furnas com a substituição não só do presidente da estatal, Carlos Nadalutti Filho, indicado pelo PMDB, mas de toda a diretoria, inclusive as indicações petistas. Apesar do esforço do líder peemedebista Henrique Eduardo Alves em disfarçar a ansiedade latente dentro de sua bancada, o clima entre os parlamentares da legenda continua de desconfiança em relação ao PT.

- A eleição do deputado Marco Maia foi um primeiro sinal da melhora do clima na base governista, depois do jogo desigual na composição ministerial, que mais parecia um jogo de handebol no qual o PT fez 17 gols e o PMDB apenas quatro. O ministro Palocci prometeu a partir de agora equilibrar o jogo. Vamos ver agora se os fatos confirmam essas intenções - adiantou o líder peemedebista.

Paralelamente às negociações do segundo escalão, a bancada do PMDB no Senado também busca se precaver para não ser surpreendida pelos petistas mais adiante. O grande temor do partido é que o PT reivindique, daqui a dois anos, o comando da Casa, como contrapartida ao apoio dos deputados petistas ao peemedebista Henrique Dias na sucessão de Marco Maia. Esse foi um dos assuntos discutidos ontem numa reunião promovida na casa do presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP).

Depois de participar da cerimônia de abertura dos trabalhos do Legislativo, o presidente nacional do PT, José Eduardo Dutra, disse que os partidos estão disputando, mas não necessariamente brigando pelos cargos. Apesar de na terça-feira o vice-presidente Michel Temer ter dito que existe uma briga entre PT e PMDB, Dutra afirmou que o que existe é uma "disputa natural".

- O termo não é briga política, mas sim disputa. Esse é um governo plural apoiado por diferentes partidos políticos que podem indicar quadros para o segundo escalão. É um governo de continuidade, não basta apresentar uma lista de indicações. Os cargos não estão vagos, é continuidade - disse Dutra.

FONTE: O GLOBO

No Congresso, Dilma prega reforma política

A presidente Dilma Rousseff entregou sua mensagem ao novo Congresso com a promessa de construir consensos para a retomada da agenda de reforma política, paralisada desde o governo Lula. Na primeira sessão legislativa do ano, Dilma priorizou a reforma tributária e a política de recuperação do salário mínimo, no modelo proposto pelo Planalto.

Dilma prega estabilidade das regras do mínimo

Em mensagem ao Congresso, presidente faz aceno a parlamentares no reajuste do salário

Vera Rosa

Disposta a evitar polêmica com deputados e senadores, a presidente Dilma Rousseff entregou ontem sua mensagem ao novo Congresso com a promessa de adotar uma "política de longo prazo para o salário mínimo", que prevê reajustes anuais. Dilma pregou a manutenção de "regras estáveis" e disse que enviará ao Legislativo uma proposta de valorização do mínimo.

"A manutenção de regras estáveis que permitam ao salário mínimo recuperar o seu poder de compra é um pacto deste governo com os trabalhadores", disse a presidente. "Os salários dos trabalhadores terão ganhos reais sobre a inflação e serão compatíveis com a capacidade financeira do Estado."

Até agora, porém, não há acordo. A equipe econômica insiste em aumentar o mínimo para R$ 545, enquanto as centrais sindicais batem na tecla de R$ 580. A tendência é chegar a um meio termo, na casa dos R$ 550. O governo enviará ao Congresso uma medida provisória com o reajuste.

A proposta de longo prazo a que Dilma se refere leva em conta a inflação do ano anterior acrescida do PIB de dois anos atrás. Em seu pronunciamento, o presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), criticou o excesso de medidas provisórias produzidas pelo Executivo. "Seu rito de tramitação transformou-se numa armadilha", resumiu.

Na primeira sessão legislativa do ano, Dilma também pôs na lista das prioridades as reformas política e tributária e afirmou ser necessária a construção de "consensos" sobre esses temas. No momento em que o PT e o PMDB se digladiam por cargos no segundo escalão, a presidente procurou adotar tom pacificador. Diante de um plenário lotado, na Câmara, disse que são necessárias mudanças para aperfeiçoar o "sentido programático" dos partidos.

"Trabalharemos em conjunto com esta Casa para a retomada da agenda da reforma política", afirmou Dilma. Interrompida por aplausos, ela repetiu a frase, em improviso que não constava do discurso original, de 35 minutos. O PT quer o financiamento público de campanha, para coibir o caixa 2, e o fim das coligações proporcionais. E o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva já prometeu à sucessora ajudá-la na reforma política, conversando com os partidos.

Parceria. Com um discurso pontuado pela defesa de parcerias, Dilma conclamou deputados, senadores, governadores e prefeitos a se unirem em torno de um "pacto de avanço social".

Foi mais uma vez aplaudida ao mencionar a necessidade de uma "parceria sólida" para acabar com a miséria, melhorar a saúde e a educação, garantir a segurança e combater as drogas. "Este pacto pode ter como símbolo o esforço deste governo (...) para que nunca mais se repita a tragédia das chuvas que roubaram centenas de vidas e destroçaram o sonhos de milhares de famílias", insistiu Dilma.

Embora as diretrizes apresentadas tenham caráter genérico, a presidente citou até mesmo a política internacional. A exemplo do que o Estado revelou na segunda-feira, o Itamaraty pediu às embaixadas e à missão do Brasil na ONU que façam até março uma reavaliação da política externa.

Em uma das últimas prioridades apresentadas ontem, Dilma fez questão de destacar que a política externa estará ancorada em quatro pilares: promoção da paz, defesa dos direitos humanos, respeito ao princípio de não intervenção e fortalecimento do multilateralismo. Disse, ainda, que é preciso dar "consistência maior" ao Mercosul e à Unasul.

À saída da Câmara, a presidente passou por manifestantes que gritaram: "Dilma, liberte Battisti já!" Era uma referência ao ex-ativista italiano Cesare Battisti, preso no Brasil desde 2007.


REPERCUSSÃO

Aécio Neves
Senador (PSDB-MG)

"É um belo conjunto de boas intenções, não muito diferente do que o presidente Lula fez há oito anos. Ouvi com respeito, mas vou guardar meus aplausos quando essas promessas se transformarem em ações, sobretudo em relação às reformas"

Aloysio Nunes
Senador (PSDB-SP)

"Senti falta de medidas concretas. Este projeto de longo prazo para o salário mínimo é uma forma de tentar escapar da pressão das centrais sindicais por um salário mínimo de R$ 580,00 e do PSDB, de um valor de R$ 600,00"

José Eduardo Dutra
Presidente do PT

"Numa mensagem não vão se esmiuçar questões como reforma política e tributária. As divergências devem ser esmiuçadas no Congresso. Dilma foi incisiva ao conclamar o Congresso para fazer uma parceria pelaerradicação da pobreza"

Maurício Rands
Deputado (PT-PE)

"Eu acho que ela foi precisa, ela ratificou seu compromisso com as reformas política e tributária e desceu a pormenores como a construção de Upas e o que irá fazer com os recursos do pré-sal, além de conclamar a sociedade para um pacto contra a miséria"

Líder do governo Cabral contestado

O líder do governo, André Corrêa (PPS do Cabral), já é questionado. Ontem, Paulo Ramos (PDT) quis saber se um nobre licenciado do seu partido pode ocupar o cargo. E o presidente do PPS, Comte Bittencourt, alfinetou, lembrando sua traição a Fernando Gabeira para apoiar Sérgio Cabral.

Ah, sim! O rapaz não foi a posse porque passou mal, é de paz, não brigou com ninguém e nem passou pela 91ª DP.

FONTE: JORNAL EXTRA

Acaso:: Fernando Pessoa

No acaso da rua o acaso da rapariga loira.
Mas não, não é aquela.

A outra era noutra rua, noutra cidade, e eu era outro.

Perco-me subitamente da visão imediata,
Estou outra vez na outra cidade, na outra rua,
E a outra rapariga passa.

Que grande vantagem o recordar intransigentemente!
Agora tenho pena de nunca mais ter visto a outra rapariga,
E tenho pena de afinal nem sequer ter olhado para esta.

Que grande vantagem trazer a alma virada do avesso!
Ao menos escrevem-se versos.
Escrevem-se versos, passa-se por doido, e depois por gênio, se calhar,
Se calhar, ou até sem calhar,

Maravilha das celebridades!

Ia eu dizendo que ao menos escrevem-se versos...
Mas isto era a respeito de uma rapariga,
De uma rapariga loira,
Mas qual delas?
Havia uma que vi há muito tempo numa outra cidade,
Numa outra espécie de rua;
E houve esta que vi há muito tempo numa outra cidade
Numa outra espécie de rua;
Por que todas as recordações são a mesma recordaçãJustificaro,
Tudo que foi é a mesma morte,
Ontem, hoje, quem sabe se até amanhã?

Um transeunte olha para mim com uma estranheza ocasional.
Estaria eu a fazer versos em gestos e caretas?
Pode ser... A rapariga loira?
É a mesma afinal...
Tudo é o mesmo afinal ...

Só eu, de qualquer modo, não sou o mesmo, e isto é o mesmo também afinal.