Os sinais são muito fortes para serem ignorados: há um novo estado de coisas no mundo que se realiza como que por detrás dos atores, movido por um processo irresistível que a ação humana, embora não tenha mais como barrar, pode e deve procurar dirigir. O levante democrático-popular que varre a margem árabe do Mediterrâneo e se espraia pelo Oriente Médio dá início a uma nova época, independente das peripécias, decerto tumultuadas, que vai conhecer pelo muito caminho que ainda tem pela frente. Dessa feita, a revolução da igualdade, na análise e nos termos de Tocqueville, com quem este texto vinha flertando até aqui, não pode ser denunciada como portadora de ameaças potenciais à liberdade porque ela é feita também em seu nome.
Essa é uma revolução da sociedade civil, como a seu tempo e na sua circunstância, a da Comuna de Paris no longínquo 1871, sem partidos estruturados verticalmente e homens providenciais, conquanto sejam evidentes, particularmente no Egito, a presença de instituições modernas na emergência da rebelião popular. Com o seu desenlace ainda envolto em névoas, de ciência sabida, já se pode dizer que, ali no Oriente, a democracia como valor universal vem ganhando a dimensão que lhe faltava.
Trata-se, sem dúvida, de todo um novo repertório, condenando ao anacronismo as fórmulas prisioneiras das circunstâncias e da cultura do século do qual estamos nos afastando em passo acelerado. No Brasil, desde as lutas contra o regime militar, experimenta-se a internalização desse repertório, sobretudo na forma consagrada pelas instituições da Carta de 88. Contudo, o plano institucional e o da imaginação e o da prática política não vêm guardando entre si relações de homologia.
Assim, enquanto a Constituição, a par de instituir amplas liberdades civis e públicas, abre possibilidades para a democracia participativa, facultando até a intervenção da sociedade no controle de constitucionalidade das leis, e se orienta pelo princípio da descentralização administrativa; no plano do agir político, não só assistimos a um impulso crescente rumo à centralização administrativa, do que são exemplares as políticas públicas de saúde, segurança e educação - para não mencionar o Conselho Nacional de Justiça, criado em 2004, como instância federal de regulação da magistratura - e à centralização política, mal disfarçada pelo nosso presidencialismo dito de coalizão.
A essa forma de presidencialismo, herdeira envergonhada de muitas das tradições do nosso autoritarismo político - não à toa viceja tão bem entre nós -, deve-se o resultado de um Executivo que se impõe como poder hegemônico diante do Legislativo, rebaixado ao papel de caudatário na iniciativa das leis.
Sob a égide do pragmatismo, tanto nos mandatos de FHC como nos de Lula, vive-se uma política que desconhece os termos da sua justificação, malgrado os intelectuais de declaradas vocações teóricas que integraram seus governos - em alguns casos, consensualmente reconhecidas. Ora, denuncia-se a era Vargas como carga obsoleta a ser jogada ao mar, ora reabilita-se acriticamente a sua obra, inclusive em matéria sindical, como referência republicana a ser preservada, sem que se anunciem os fundamentos dessa operação.
Partidos de extração moderna, como o PSDB e o PT, originariamente contestadores do patrimonialismo e de suas práticas a fim de realizar suas aspirações de poder, se associam à personagens do atraso político e social em nome de ampliar suas coalizões e da governabilidade. Nessa batida, o pragmatismo arrisca se desprender dos limites de uma ética de responsabilidade para se acanhar em uma política que sequer cogita da sua justificação, uma vez que adotou como seu o rumo que lhe é indicado pelo regime dos ventos. Sem a animação que os partidos poderiam emprestar à política, afora a cenografia dedicada à contemplação dos que se encontram à margem dos círculos do poder, ela se curva, diante de uma sociedade imobilizada politicamente, ao domínio da razão tecnocrática e ao pragmatismo instrumental.
Imaginação e coragem criativa, contudo, não fariam falta à política de hoje em razão de um diagnóstico não confessado, mas observado pela classe política e suas adjacências: com o Plano Real, de FHC, e as políticas de inclusão social de Lula, o Brasil como que teria chegado ao fim da sua história. A recente campanha presidencial é a melhor ilustração da aceitação desse diagnóstico - os dois principais candidatos se limitaram a disputar quem seria o autor do próximo capítulo a garantir continuidade ao enredo dessa história virtuosa.
Mal comparando, estaríamos, na política, como nas décadas do segundo reinado, quando a política de conciliação entre conservadores e liberais - nos dias de hoje, ainda mal comparando, a articulação entre atraso e moderno, base do nosso presidencialismo de coalizão - apresentou-se como o percurso ideal para se perseguir os fins civilizatórios das elites da época, moderando-se os impulsos de reforma e desconfiando-se da imaginação. Mas, o longo ciclo de FHC a Lula, se preservou os elementos recessivos e anacrônicos da nossa política, modernizou e democratizou de fato a economia e a estrutura social do país, importando com isso novas exigências a serem satisfeitas, em particular as que são portadas pelos trabalhadores e seus sindicatos e das que poderão provir do mundo agrário, se e quando movimentos como o MST romperem com o anacronismo da sua orientação e se renderem ao espírito da época.
Em política, às vezes pequenos sinais também podem ser úteis à observação. No Rio de Janeiro, nesse carnaval que passou, para além das celebridades dos camarotes e dos desfiles das escolas de samba, o fato a registrar está nos jovens dos blocos de rua, especialmente a multidão de adolescentes, que, postos em permanente comunicação por meio de celulares e do Twitter, fizeram uma festa para si, fora do circuito oficial, onde não tinham como entrar.
Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador da PUC-Rio.
FONTE: VALOR ECONÔMICO