sexta-feira, 29 de abril de 2011

Reflexão do dia – Dora Kramer: Razão e sensibilidade

O projeto de concessão dos aeroportos à iniciativa privada contraria o discurso estatizante do PT, põe o partido em franca contradição com tudo o que foi dito durante a última campanha eleitoral e vai de encontro ao pensamento da presidente Dilma Rousseff que, como chefe da Casa Civil, representou poderoso entrave à execução da proposta.

E por que o projeto anda agora, depois de oito anos no aguardo de uma decisão?

Porque é chegada a hora de conquistar eleitoralmente a classe média, público alvo da privatização com vistas à melhoria dos serviços no setor aéreo.

KRAMER, Dora. Um barco a vagar. O Estado de S. Paulo, 28/4/2011

A dança do “pudê”:: Rudolfo Lago

“Freire já viu o mesmo filme algumas vezes. É a atração pelo ‘pudê’, a forma como boa parte dos adesistas costuma se referir ao poder, com a intimidade que a aproximação contínua lhes reserva”

O atual ocaso das oposições brasileiras tem sido tema frequente da coluna nos últimos tempos. É que realmente salta aos olhos a forma como o DEM desmancha-se, como o PSDB patina, como o PV não se entende e como o PSD engorda na sua tática adesista. O que acontece? Como explicar?

Fui buscar socorro para esta tarefa no presidente do PPS, o deputado Roberto Freire (SP). Independentemente do que se ache de Freire, há um fato incontestável: ao longo de uma carreira política de quase 40 anos, ele só esteve ao lado do governo com Itamar Franco, de quem foi líder, e por alguns poucos meses no início da era Lula. Ou seja, nem que seja pela vasta experiência acumulada, Freire é expert quando se fala em oposição.

O PPS, partido presidido por Freire, é filho do PCB, que tinha a alcunha de “partidão”. Com o fim do modelo soviético de socialismo, que seguia, Freire propôs a reformulação que deu no PPS: a mudança para a defesa de um socialismo democrático, e não do antigo formato comunista. Daquelas discussões, restou para quem se opôs à revisão proposta um PCB, que ainda existe fiel às ideias originais, e o PPS. Com a nova sigla, o partido chegou a sentir em determinado momento das eleições de 2002 uma chance de chegar ao poder, com Ciro Gomes. Mas a língua indisciplinada e o temperamento irritadiço de Ciro acabaram por deixá-lo pelo caminho. Mais tarde, Ciro acabou deixando o PPS pelo PSB, quando o partido de Freire resolveu romper com o governo. Hoje, com seus 12 deputados, o PPS pode ser chamado de tudo, menos de “partidão”. Padece das mesmas dificuldades que atingem as demais legendas de oposição.

Ao longo do tempo em que exerce a política no Congresso (seu primeiro mandato foi em 1972), Freire já viu o mesmo filme de hoje algumas vezes. É a atração pelo “pudê”, a forma como boa parte dos adesistas costuma se referir ao poder, com a intimidade que a aproximação contínua lhes reserva. “Está se dando importância maior do que se deveria à natural dança dos políticos, esse adesismo que tem sido uma praga da política brasileira desde sempre”, diz Roberto Freire.

Num país em que a maior parte dos partidos não tem ideologia definida, são meros ajuntamentos de conveniências políticas, a atração pelo poder torna-se mais fácil. Porque fica mais fácil adaptar-se ao discurso do momento. Da mesma forma, os governos passaram a entender que a única forma possível de governar consiste em abrigar o apoio dessas maiorias de conveniência. E adotam, com maior ou menor grau, uma posição de centro que facilite esse adesismo. “Assim”, diz Freire, “as coisas estão longe de serem maniqueístas como o discurso do governo às vezes apresenta: não é verdade que as forças progressistas estão com eles e as forças conservadoras contra eles”.

Assim, lembra Freire, há do lado do governo do PT até o PP, o partido filho da Arena e do PDS, as legendas que apoiaram a ditadura militar. E, na oposição, há o DEM, mas há também o Psol, de extrema esquerda, e o PPS, que Freire situa no campo da esquerda. Por isso, diz Freire, as notícias sobre eventuais fusões de partidos que hoje estão na oposição para que tentem, juntos, se robustecerem, devem ser vistas com reservas. “Isso é um mito que o governo espalha. É preciso que haja identidade para que partidos se unam e virem um só. Eu até posso fazer eventuais alianças eleitorais com o DEM, mas não tenho qualquer afinidade ideológica com eles para que nos filiemos ao mesmo partido e passemos a conviver eternamente”, avalia Freire.

Para quem não se importa com essas filigranas ideológicas, uma união de qualquer jeito só faz sentido se for para aproximá-lo do poder. Daí o PSD do prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab. “É a dança do poder. Agora, o ritmo da dança pode mudar a qualquer momento, e é incrível que não se avalie isso”, diz o presidente do PPS.

O primeiro problema é que a adesão gera no adesista uma expectativa de usufruir das benesses do poder: cargos, verbas, etc. E esse capital, por parte do governo, é limitado. “Vai faltar soro fisiológico pra todo mundo”, brinca Freire. Especialmente com a perspectiva da volta da inflação. Para contê-la, Dilma tem de cortar o orçamento, segurar verbas, gastar menos. Vai se dissipando o “soro fisiológico”. Se a coisa for se agravando, e a economia sair do controle, muda a dança. “Se a inflação recrudescer, não tem como não crescer na sociedade um sentimento oposicionista”, analisa Freire. Foi assim que Fernando Henrique Cardoso foi perdendo apoio no seu segundo mandato, até se tornar incapaz de fazer seu sucessor, levando José Serra a perder em 2002 a eleição para Lula. Assim, diante de uma nova perspectiva, muda a música do poder. “E os adesistas dançam conforme a música”, lembra Roberto Freire.

FONTE: CONGRESSO EM FOCO

Freire: privatização de aeroportos mostra que retórica do PT é uma fraude


Freire afirma que Dilma já está desmentindo tudo o que disse na campanha

Valéria de Oliveira

O presidente nacional do PPS, deputado Roberto Freire (SP), disse, ao comentar a privatização dos aeroportos anunciada pelo governo do PT, que tanto o ex-presidente Lula quanto a presidente Dilma Rousseff utilizaram de “profunda desonestidade” ao condenar, nas campanhas eleitorais, as concessões realizadas pelo governo Fernando Henrique Cardoso. “Isso precisa ser dito porque eles assumiram uma postura patriota e muitos eleitores os acompanharam por esse motivo; agora desfaz-se o teatro, cai a máscara”.

Freire lembrou que o governo Lula teve a oportunidade de reverter as privatizações de FHC, mas não o fez. Agora, a presidente, com menos de seis meses no poder, privatiza os aeroportos. “Era só fanfarronice”, afirmou, ao lembrar que Dilma centrou sua campanha eleitoral, principalmente no segundo turno, no terrorismo às privatizações. “Já está desmentindo tudo o que disse na campanha, no tocante às privatizações, se mostrando uma fraude, uma farsa”.

Roberto Freire salientou que o assunto não é “algo menor”, mas sim uma questão muitas vezes decisiva, “que fazia com que a militância petista ficasse embevecida”. A privatização dos aeroportos pode ser a medida mais correta a tomar, diz Freire, “mas não se pode deixar de denunciar a desonestidade de Dilma, Lula e do PT, historicamente”. Freire chamou de falsidade ideológica o discurso contra as privatizações apresentado na época das eleições.

Campanhas

Durante as campanhas eleitorais de 2006 e 2010, o PT amedrontou o eleitorado com a possibilidade de o PSDB privatizar várias estatais, entre elas a Petrobras. Dilma insinuava que os tucanos, se vitoriosos, iriam privatizar o pré-sal. Na verdade, o governo Lula já havia licitado, sem necessidade, vários blocos para a exploração da nova camada de prospecção. “É impressionante como Dilma praticou a desonestidade e o cinismo, dizendo uma coisa e fazendo outra”, disse Freire. Segundo o deputado, os petistas “nada fazem ou fazem aquilo que, na retórica, condenam, e essa decisão sobre os aeroportos é o desmascaramento total”.

A então candidata do PT dizia que o PSDB vendeu R$ 100 bilhões do patrimônio público. No entanto, durante do governo Lula, o deputado Ivan Valente (PSol-SP) apresentou projeto para reestatizar a Companhia Vale do Rio Doce, mas o relator José Guimarães, do PT, rejeitou a proposta.

No relatório, dizia Guimarães que “a privatização levou a Vale a efetuar investimentos numa escala nunca antes atingida pela empresa”. Assinalou ainda que o lucro da companhia subiu de US$ 500 milhões em 1996 para US$ 12 bilhões em 2006. Os empregos, afirmou o relator petista, passaram de 13 mil para 41 mil. A arrecadação tributária em 2005 foi de US$ 800 milhões ao câmbio da época, valor superior, em dólares, ao lucro da empresa antes da privatização. Ou seja: o PT avalizou a privatização da Vale.

FONTE: PORTAL DO PPS

BC indica que ciclo de alta do juro será mais longo

A ata da última reunião do Copom indica que o ciclo de alta da taxa básica de juros deverá durar mais do que se previa inicialmente. Essa é a interpretação majoritária dos analistas econômicos após a elevação da Selic em 0,25 ponto, para 12% ao ano. A avaliação é de que o documento devolveu à Selic o protagonismo no combate à inflação e ainda serviu para a BC mandar um recado ao governo: é preciso moderar os subsídios ao crédito.

BC indica continuidade da alta do juro

Para analistas, ata do Copom revela que o ciclo de alta da Selic vai se prolongar; BC recomenda moderação nos créditos públicos subsidiados

Fabio Graner

Para pôr a inflação de volta na meta em 2012, o ciclo de alta da taxa básica de juros (Selic) deverá durar mais do que se previa inicialmente. Pelo menos, foi essa a interpretação majoritária dos analistas econômicos sobre a ata da última reunião do Comitê de Política Monetária (Copom), que elevou a Selic em 0,25 ponto porcentual, para 12% ao ano.

A avaliação foi de que o documento devolveu à Selic o protagonismo no combate à inflação e ainda serviu para o BC mandar um recado ao governo: é preciso moderar os subsídios ao crédito, como os praticados pelos bancos públicos.

"O Copom entende, de forma unânime que, diante das incertezas quanto ao grau de persistência das pressões inflacionárias recentes, e da complexidade que envolve hoje o ambiente internacional, o ajuste total da taxa básica de juros deve ser, a partir desta reunião, suficientemente prolongado", afirmou a diretoria do BC. Foi a senha para analistas preverem pelo menos mais duas altas de 0,25 ponto, embora já haja previsões de até mais cinco elevações, sempre no ritmo estabelecido da semana passada.

O documento não se alongou em explicar a divisão do comitê na decisão (cinco diretores votaram em alta de 0,25 ponto e dois por 0,50 ponto). Apenas informou que o grupo majoritário defendeu um ajuste menos agressivo, levando em conta o esforço já feito de combate à inflação, que ainda levará algum tempo para impactar a economia, enquanto a ala derrotada entendia que o "balanço de riscos" para a inflação exigia um aperto maior.

De maneira geral, a ata expôs um BC em situação bem desconfortável com a inflação. As projeções para a alta dos preços, tanto para este ano como para 2012, pioraram nos dois cenários tradicionais (de referência, com juros e câmbio constantes, e de mercado, que levam em conta as projeções para essas duas variáveis), ficando acima de 4,5%. O cenário alternativo (que considera o cenário de mercado para juros, mas câmbio constante) projeta o IPCA "em torno" do centro da meta em 2012.

O Copom reconheceu que a atividade econômica está em moderação, embora siga com perspectivas "favoráveis". Apesar de prever moderação no ritmo do crédito, o BC cobrou do governo uma ajuda extra.

Para o ex-diretor do BC Carlos Thadeu de Freitas, o Copom voltou a dar sinais mais transparentes sobre o que pretende fazer para levar a inflação à meta. A avaliação dele é de que a Selic voltou a ser a "bala de prata".

O economista-chefe da Prosper Corretora, Eduardo Velho, avaliou que "a novidade é o reconhecimento da importância do ajuste da política monetária no curto prazo via aumento da Selic para atingir a meta central no próximo ano, e não propriamente o uso apenas das medidas macroprudenciais, com restrições nas área de crédito e compulsório, como os últimos discursos e comunicados pareciam apontar".

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

Após mudança, Vale ajudará governo a salvar Belo Monte

Menos de um mês após ceder às pressões do Ministério da Fazenda e trocar seu presidente, a Vale anunciou ontem que entrará na construção e operação da usina hidrelétrica de Belo Monte, no Rio Xingu, a maior obra do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). A mineradora entra no Consórcio Norte Energia no lugar da Gaia, do frigorífico Bertin, que desistiu por enfrentar dificuldades financeiras. A Vale compra os 9% do negócio e vai reembolsar o Bertin em R$ 5 milhões já gastos. Além disso, injetará no consórcio entre US$ 400 milhões e US$ 500 milhões. A mineradora é uma das maiores consumidoras de energia elétrica no país e, com a entrada em Belo Monte, aumentará sua geração própria de energia de 45% do que consome para 63%.

Vale entrará em Belo Monte, como queria o governo

Empresa comprará os 9% que eram do Bertin na maior obra do PAC

Ramona Ordoñez

Menos de um mês depois de decidir pela substituição de Roger Agnelli por Murilo Ferreira em sua presidência por forte pressão do governo, a Vale anunciou ontem que participará como sócia do projeto de construção e operação da usina hidrelétrica de Belo Monte - o maior projeto do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e considerado prioritário pela presidente Dilma Rousseff. A mineradora entra no Consórcio Norte Energia no lugar da Gaia, pertencente ao grupo Bertin, que detinha 9% do negócio e se retirou do empreendimento em meados de fevereiro por dificuldades econômicas. A Vale pagará ao Bertin em torno de R$5 milhões por gastos iniciais feitos no projeto e capitalizará o consórcio Norte Energia com um valor entre US$400 milhões e US$500 milhões.

Apesar de a troca no comando da Vale ter sido feita por influência política - Agnelli vinha desagradando ao governo Lula desde 2008, ao passo que Ferreira tem bom trânsito em Brasília - o diretor de Marketing, Vendas e Estratégia da Vale, José Carlos Martins, disse que a decisão de participar do projeto no rio Xingu, no Pará, foi exclusivamente tomada pela companhia, para atender a seus objetivos de aumentar a geração própria de energia para seus projetos. O executivo garantiu que a decisão não sofreu qualquer influência do governo federal.

- Sempre tivemos interesse no projeto, mas na época do leilão perdemos. Agora, surgiu essa oportunidade face às dificuldades do grupo (Bertin). A decisão está absolutamente dentro da estratégia da companhia de aumentar sua geração de energia renovável e limpa para atender seus projetos. Foi uma decisão econômica, não teve nenhuma ingerência política - afirmou.

O grande interesse pela fatia do Bertin - que chegou a ter oito interessados, entre eles EBX e Gerdau - deve-se ao fato de o grupo ser autoprodutor no projeto de Belo Monte. Esta condição permite que o sócio use parte da energia produzida para consumo próprio, o que explica o interesse da Vale, responsável por mais de 4% do consumo nacional. Os 9% na usina significam uma produção de energia suficiente para abastecer 1,6 milhão de residências durante um ano - quase metade dos consumidores da Light.

Com a entrada em Belo Monte, a Vale vai aumentar sua geração própria de energia, que atualmente é de 45% do total que consome, para 63%. O diretor Financeiro da Vale, Guilherme Cavalcante, explicou que os 9% do capital que serão adquiridos pela companhia vão representar o equivalente a 400 megawatts (MW) médios da energia total de Belo Monte, que terá uma capacidade total de 11 mil MW. O executivo explicou que a participação da Vale representa um investimento da ordem de R$2,3 bilhões. Todo o projeto tem custo estimado em R$25,8 bilhões - cerca de 75% serão financiados pelo BNDES.

- A participação da Vale em Belo Monte vai reafirmar o compromisso da companhia de diversificar seus investimentos, e vai garantir o fornecimento de energia para seus projetos. E o investimento tem retorno financeiro - destacou Cavalcante.

A entrada efetiva da Vale no empreendimento será concluída com o fechamento do acordo de acionistas com os demais participantes do Consórcio Norte Energia. O Bertin formou com a Chesf e a Andrade Gutierrez o pelotão de frente do consórcio montado pelo Palácio do Planalto que venceu, em abril de 2010, o leilão de Belo Monte. A usina ainda espera a Licença de Instalação (LI) do Ibama para iniciar as obras da maior hidrelétrica brasileira. A previsão é que o documento, maior preocupação do consórcio e principal entrave ao empreendimento, saia em maio, segundo o diretor de Relações Institucionais da Norte Energia, João Pimentel. A expectativa inicial era fim de abril. Boa parte da demora deve-se a condicionantes ligadas às comunidades indígenas. Segundo Pimentel, a Funai fez ainda mais exigências após o posicionamento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos, que solicitou ao Brasil a suspensão da construção da usina, tendo como base uma petição de cerca de 40 entidades que afirmam, entre outras coisas, que os indígenas não foram ouvidos.

Em 25 de fevereiro, em meio a especulações sobre a queda de Agnelli, a entrada da mineradora já era tida como uma possibilidade e considerada como tábua de salvação do executivo, já que a obra é prioritária para Dilma. Os problemas de Agnelli com o governo se intensificaram em 2008, quando a Vale anunciou a encomenda de 12 navios à China, por US$1,6 bilhão, num momento em que o governo trabalhava para o renascimento da indústria naval no país. Em dezembro do mesmo ano, no auge da crise financeira global, a Vale demitiu 1.300 empregados. O governo sequer foi notificado disso antecipadamente. Depois disso, ele fez mudanças no plano de investimentos da mineradora, dando prioridade, por exemplo, à construção de uma siderúrgica no Pará. Mas a medida foi considerada tímida. Também irritou o PT ao criticar publicamente a pressão por seu cargo, em pleno segundo turno da campanha presidencial.

Já a indicação de Ferreira, um ex-diretor da Vale e que assumirá o cargo em 22 de maio, agradou. De perfil técnico e com trânsito no governo, o executivo é visto com bons olhos por investidores e pelos acionistas privados, dos quais se aproximou ao longo dos 11 anos em que trabalhou na empresa. Também tem simpatia do governo, especialmente de Dilma, com quem teve contato direto quando ela era ministra de Minas e Energia.

FONTE: O GLOBO

Acusado de vazamento de dossiês presidirá PT

Em desafio à presidente Dilma, e numa articulação comandada pelo deputado cassada José Dirceu, o PT vai eleger hoje o deputado estadual Rui Falcão (SP) como seu presidente - José Eduardo Dutra renunciará por motivo de saúde. Falcão perdeu cargo na campanha eleitoral de Dilma, ano passado, por suspeita de vazar dossiê contra o tucano José Serra. O PT também deve aprovar a volta de Delúbio.

Dirceu impõe derrota a Dilma no PT

Acusado de vazar dossiê contra Serra na campanha, Rui Falcão presidirá o partido

Gerson Camarotti e Maria Lima

Numa estratégia para retomar o comando do PT e a interlocução sobre indicações para o segundo escalão do governo, o grupo paulista do partido articulou uma reviravolta na madrugada de ontem, surpreendeu o Palácio do Planalto e vai eleger hoje o deputado estadual Rui Falcão (PT-SP) para presidir a legenda até 2013, impondo uma derrota à presidente Dilma Rousseff. Numa manobra de última hora articulada pelo ex-chefe da Casa Civil José Dirceu, cassado no escândalo do mensalão, os paulistas aproveitaram a decisão do atual presidente da legenda, José Eduardo Dutra - que anuncia hoje a renúncia por problemas de saúde - e decidiram passar por cima até mesmo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que preferia o senador Humberto Costa (PT-PE) no cargo.

Ontem à noite, Lula foi ao encontro da presidente Dilma Rousseff no Palácio da Alvorada para avaliar a sucessão petista. Diante da força e do poder de votos dos paulistas no Diretório Nacional, Lula teve que avalizar o nome de Falcão. Segundo interlocutores de Dilma, a presidente ficou contrariada com a manobra paulista, mas, para evitar um enfrentamento, no início da noite, quando o quadro era irreversível, a presidente ligou para Rui Falcão e disse que está à disposição para discutir os assuntos de interesse do partido. Falcão chegou a ser coordenador da campanha de Dilma à Presidência, ano passado, mas perdeu o cargo em meio ao escândalo da suposta compra de dossiê contra o tucano José Serra e seus familiares.

- O maior problema para o PT agora não é quem vai ser o novo presidente, mas a composição do governo. O PT não está dividido em tendências, como era antes. Hoje está dividido entre os que estão satisfeitos e os insatisfeitos com o governo Dilma. O problema é o povo que está fora e quer entrar - revelou no meio da tarde um dos integrantes da Executiva Nacional, que se reuniu pela manhã, numa prévia da reunião do Diretório.

Na Câmara, outra jogada do partido

Foi a segunda derrota que o PT impôs à presidente Dilma desde que ela foi eleita. A primeira aconteceu em dezembro, quando a bancada escolheu o atual presidente da Câmara, deputado Marco Maia (PT-SP), como candidato para comandar a Casa. O indicado por Dilma era o atual líder do governo, Cândido Vaccarezza (PT-SP), que é do grupo paulista, mas evitou aparecer nas reuniões que articularam a eleição de Rui Falcão.

Segundo integrantes do PT, os paulistas insatisfeitos resolveram mostrar força diante do distanciamento do partido do núcleo do poder em Brasília. Ontem, a corrente Construindo um Novo Brasil (CNB) decidiu por unanimidade fechar questão em torno de Rui Falcão, com o apoio das tendências PT de Lutas e de Massa e Novos Rumos. Juntas, as três correntes têm quase 60% dos votos do Diretório Nacional do PT que escolherá hoje o deputado paulista como o novo presidente.

Tudo deverá ser resolvido hoje depois que Dutra apresentar formalmente sua renúncia, explicando o laudo médico de seu problema de saúde. Ele quer que sua fala seja assistida pela imprensa, para evitar especulações e versões desencontradas no noticiário. Ele vai participar da reunião do Diretório Nacional por volta de 10h.

- A decisão pelo nome de Rui Falcão como presidente até 2013 foi unânime e será votada amanhã (hoje) - comunicou Humberto Costa após a reunião de ontem à noite.

Toda a manobra para derrotar Dilma e Lula foi articulada à distância por José Dirceu, que retornou apenas ontem de Londres. A estratégia de retomada do PT foi acionada na noite de quarta-feira. Em um jantar que ocorreu num restaurante de Brasília, o senador Humberto Costa foi surpreendido, na chegada, ao ser informado que Rui Falcão seria o candidato do Campo Majoritário.

Humberto Costa tinha apoio de Dilma

Estavam no jantar, o próprio Falcão, o ex-presidente do PT Ricardo Berzoini (SP), o tesoureiro Antonio Vaccari Neto, entre outros paulistas. Mas vários petistas integrantes da Executiva não foram chamados. Humberto Costa tinha apoio de Lula e Dilma, mas não tinha votos no diretório.

- Foi uma reviravolta. Nada do que estava combinado vingou. A nossa presidenta Dilma deu umas ideias, mas não deu certo. Agora é dar uma solução rápida e acabar logo com isso - disse o deputado Sibá Machado (PT-AC), surpreso, durante reunião na sede do PT.

- O Dutra renunciando, o Rui assume e acabou. Hoje já pode avisar à mulher dele que é o presidente do PT até 2013 - exultava o petista paulista Jilmar Tatto.

No Palácio do Planalto, a decisão não agradou. Dilma não queria ter Rui Falcão como seu interlocutor junto ao partido, porque tem restrições desde o período da campanha. Na ocasião, Falcão era o coordenador de imprensa e foi acusado de entregar um esquema de fabricação de dossiês contra adversários na campanha presidencial, fato que ele sempre negou. E neste esquema estariam envolvidas pessoas ligadas ao agora ministro Fernando Pimentel (PT-MG), amigo de longa data de Dilma.

- O líder Humberto Costa foi designado para comunicar a presidente da escolha do Rui e ela aceitou. Não vai ter enfrentamento nenhum - disse o deputado Devanir Ribeiro (PT-SP), à noite.

FONTE: O GLOBO

Como previra Delúbio, mensalão vira mesmo piada de salão entre petistas

Jantar na casa de Marta Suplicy festeja volta ao partido de seu ex-tesoureiro

Maria Lima e Gerson Camarotti

BRASÍLIA. O mensalão virou piada de salão ontem no jantar oferecido pela senadora Marta Suplicy (PT-SP) para comemorar a eleição de seu aliado Rui Falcão (SP) para a presidência do PT e a volta ao convívio petista do companheiro Delúbio Soares, operador do esquema que desviou R$55 milhões para financiar apoios de partidos aliados. Ontem, a Executiva Nacional do PT recebeu a carta de Delúbio com o pedido de refiliação, que deverá ser aprovado hoje no Diretório Nacional. Mas, ontem mesmo, ao fim de várias reuniões, a decisão era votar e aprovar tudo rapidamente, tanto a volta de Delúbio quanto a eleição de Rui Falcão para a vaga de José Eduardo Dutra até 2013.

A certeza sobre a volta de Delúbio era tanta que, além da festa, seus companheiros previam que em dois dias o assunto estará morto na opinião pública. A mulher de Delúbio, Mônica, foi braço-direito de Marta na prefeitura de São Paulo.

- Eu sou católico. Para uma pessoa obter um perdão é preciso quatro coisas: o pecado, o arrependimento, a penitência e a promessa de que não vai pecar de novo. Perfeito, só Deus! As críticas à aprovação da volta do Delúbio não seguram dois dias de manchete de jornal - disse o deputado Jilmar Tatto (PT-SP), do grupo de Marta e Rui Falcão.

Delúbio lembra sua tentativa de refiliação em 2009

Paralelamente à reunião da Executiva, as várias correntes do partido com representantes no Diretório Nacional analisaram o pedido de refiliação do ex-tesoureiro, um dos 39 réus do processo do mensalão. No pedido, Delúbio lembra sua fidelidade e diz que nunca se filiou a outra legenda. Em tom emocional, apela: "Eu sou PT de formação e de coração, portanto quero voltar a militar no partido". Ele lembra que, em abril de 2009, encaminhou pedido de refiliação, mas acabou retirando por recomendação da direção do PT, que temia impacto negativo na campanha de Dilma Rousseff.

No fim do dia, acompanhado de Mônica, Delúbio fez uma defesa emocionada de sua volta, durante reunião na sede do partido. Segundo presentes, Delúbio ficou com a voz embargada mas segurou o choro.

- A minha identidade política é a mesma do PT. Preciso da minha identidade política de volta - pediu Delúbio.

Sua fala surtiu efeito. Outros petistas se emocionaram e o reconfortaram. O deputado Sibá Machado (PT-AC) e o dirigente Francisco Rocha, o Rochinha, quase choraram.

- Ele segurou o choro e ficou muito emocionado. Mas agora sinto que o Delúbio está feliz e aliviado, na boa - contou o secretário de Comunicação André Vargas(PT-PR).

Havia dúvidas se o pedido de refiliação de Delúbio seria incluído na pauta do Diretório Nacional a partir de hoje. Na corrente majoritária Construindo um Novo Brasil (CNB), a maioria defendia que fosse votado já.

- Uns querem esperar o julgamento do Delúbio no STF. Mas e se não julgar? Vamos jogar o cara aos leões? Quando vai ser esse momento de resolver isso? - defendeu Jorge Coelho, membro da Executiva e secretário nacional de Mobilização do PT.

O presidente do Diretório do PT em Goiás, Luiz Sérgio Bueno, nega que uma condenação de Delúbio no Tribunal de Justiça, por ter apresentado documentos falsos para continuar recebendo salário como professor da rede pública, o impeça de concorrer a uma vaga de vereador por Goiânia em 2012. Delúbio foi condenado a devolver aos cofres públicos R$164,6 mil, além de ter suspensos direitos políticos por oito anos.

FONTE: O GLOBO

Acusado de vazamento de dossiê

Falcão é ligado ao grupo de Marta Suplicy e, hoje, também a Dirceu

Sérgio Roxo

SÃO PAULO. O futuro presidente do PT, Rui Falcão, de 67 anos, tem sua trajetória no partido marcada por polêmicas. Na campanha presidencial do ano passado, foi citado pelo jornalista Amaury Ribeiro Jr., em depoimento na Polícia Federal, como responsável por ter roubado informações de seu computador para fazer um dossiê contra o tucano José Serra. Falcão negou a acusação e entrou com uma queixa-crime contra o jornalista. O episódio causou constrangimento para a então candidata Dilma Rousseff, que foi companheira de militância de Falcão contra a ditadura na organização guerrilheira VAR-Palmares, nos anos 60.

A crise na campanha de Dilma, que levou ao afastamento de Falcão do núcleo de decisões petistas, não foi a primeira vez em que o jornalista e atualmente deputado estadual por São Paulo causou dor de cabeça para colegas de partido. Nos anos 90, quando presidiu o diretório paulistano da sigla, se colocou como opositor da administração petista da então prefeita da cidade, Luiza Erundina, hoje no PSB.

Apesar da grande participação nas articulações internas, em público, o mineiro de Pitangui costuma se mostrar discreto e cauteloso nos contatos pessoais. Os aliados o descrevem como "disciplinado e organizado". Advogado e jornalista, Falcão ingressou no PT em 1982, dois anos depois da fundação da legenda. Na época, era diretor de redação da revista "Exame", da Editora Abril. Ficou no posto até 1988, mas antes trabalhou em diversos jornais paulistas, como o "Jornal da Tarde".

No ano seguinte, assumiu a direção do PT na capital paulista e iniciou o embate com Erundina. A trajetória no partido também é marcada pela troca de lado nas disputas internas. Em 1993, rompeu com a corrente moderada Articulação, de Lula e José Dirceu, e que atualmente atende pelo nome de Construindo um Novo Brasil (CNB), que agora dá aval para que ele assuma a presidência do partido. Foi apoiado pela tendência de esquerda "Hora da Verdade", no entanto, que se elegeu vice-presidente nacional da legenda. Em 94, quando Lula deixou comando do partido para se candidatar a presidente da República contra o tucano Fernando Henrique Cardoso, acabou herdando o comando do PT e coordenou a campanha derrotada de Lula.

No mesmo ano, se elegeu deputado estadual. Quatro anos antes, havia ficado como suplente do cargo, mas assumiu o mandato. Em 1998, tentou um passo maior, mas ficou apenas como suplente de deputado federal. Aceitou o convite de Marta Suplicy e assumiu a Secretaria de Governo da administração da Prefeitura de São Paulo. Era responsável pelas articulações com a Câmara Municipal e novamente provocou polêmica no PT ao ser acusado por parlamentares da legenda de organizar um loteamento da administração municipal. A base de Marta montada por Falcão incluía vereadores de legendas que, na época, não costumavam se aliar ao PT como PMDB, PL e PPB. Por sua estreita ligação com Marta, foi candidato a vice na chapa de reeleição da petista, que acabou derrotada por José Serra (PSDB) em 2004.

Com o tempo, Falcão se reaproximou do grupo de Lula e Dirceu. Apesar disso, nunca foi próximo do ex-presidente. A relação com Dirceu, pode ser classificada como "ioiô". Foram aliados até 1993, quando romperam depois da aliança de Falcão com o grupo de esquerda do partido. Na época do governo Marta, de acordo com petistas, Falcão e Dirceu ficaram "muito próximos", o que acontece até hoje.

FONTE: O GLOBO

Apagão de combustíveis:: Roberto Freire

Na última semana de abril de 2006, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse, no programa de rádio Café com o Presidente, que o país tinha conquistado a independência na produção de energia graças à autossuficiencia em relação ao petróleo.

"A Petrobras é uma empresa de formação e produção de conhecimento porque poucas empresas no mundo têm o grau de competência de seu pessoal. Agora, com muito mais orgulho porque a autossuficiência significa que somos donos do nosso nariz."

Exatos cinco anos depois o que vemos é uma verdadeira catástrofe energética instalada no país. Afora os micro apagões cotidianos, que atingem cidades e bairros, infelicitando milhares de brasileiros, sem contar os enormes prejuízos causados às empresas, podemos melhor aquilatar o resultado daquela bazófia travestindo um programa de rádio em programa de governo.

Fruto de uma política econômica irresponsável que orientou seus últimos dois anos, o governo Lula/Dilma não apenas fez ressurgir o fantasma da inflação, como ao transformar uma empresa do porte da Petrobras em garoto-propaganda de governo, jogou ao mar qualquer racionalidade econômica e abriu uma crise de combustíveis no país como fruto direto da ausência de um governo com capacidade mínima de planejamento.

A escassez de gasolina e etanol que vivemos hoje é uma realidade em várias partes do país. E muitos donos de postos podem estar tirando proveito da situação em que o governo colocou o consumidor. Isso está ocorrendo pelo simples fato de não termos uma política de estoques reguladores de combustíveis líquidos. Essa é mais uma prova da falência do governo e de sua capacidade de governar.

Se em vez de vender ilusões, se tornando "mascate do etanol", considerando heróis os usineiros, tivesse preparado o país para suportar o crescimento da frota de carros flex, que cresceu vertiginosamente, no período, com a implementação de políticas que garantissem o devido crescimento da oferta de álcool combustível, não estaríamos agora vivendo esse vexame.

A Petrobras está importando gasolina e etanol, cujo preço subiu 30%. Com o aumento da frota de veículos e a falta de investimentos compatíveis na produção de gasolina, o Brasil vive o chamado "apagão" de combustíveis. As importações devem provocar um déficit de US$ 18 bilhões na balança de derivados de petróleo neste ano.

Estamos vivendo o pior dos mundos. Crescimento da inflação, uma política cambial cujo efeito mais danoso é um claro processo de desindustrialização e uma política de juro que só faz aumentar nossa vulnerabilidade externa, por conta da atração que fomenta de dinheiro especulativo.

Perdemos o sentido de uma política econômica indutora de desenvolvimento, restando-nos tão somente ações defensivas de um governo paralisado por suas contradições.

Não deixa de ser irônica a imagem de boa gerente da presidente Dilma Rousseff que o governo tem propalado. Assistimos estarrecidos à paralisia que toma conta do governo, a partir do que anunciou como mais exuberante: as obras do PAC. Isso deve ser uma piada de mau gosto. A que ponto chegamos.

Roberto Freire é presidente do PPS

FONTE: BRASIL ECONÔMICO

A irrespirável atmosfera política :: Fernando Gabeira

Uma grande discussão sobre as classes médias emergentes foi provocada por um artigo de Fernando Henrique Cardoso. É um debate típico de grupos que disputam o poder estatal. Mas existe no mundo também um grande debate voltado para as pessoas que não disputam o poder estatal, não têm projetos de salvação, muito menos acreditam no mito do fim dos tempos.

Bruno Latour, na introdução do livro de 1.070 páginas Atmosferas da Democracia, que traz inúmeras contribuições criativas, usa uma imagem que talvez sintetize o sentimento das pessoas diante da política. Segundo ele, há conjunções planetárias tão pavorosas que os astrólogos recomendam que fiquemos em casa até que os céus mandem novas mensagens. A cena política, com seus picaretas, bufões, terroristas, é algo que desanima.

Mas se é assim, por que tanto esforço e tanto papel para detectar novas possibilidades? O próprio Latour responde no parágrafo seguinte: a astrologia e a ciência política não são exatas e há sempre a possibilidade de novas conjunções, de mudanças. O momento de desespero político permite, pelo menos, que se investiguem outras ideias, novas matérias. Aliás, a tônica de sua intervenção é defender uma política orientada para o objeto, uma política que não seja realista como no tempo de Bismarck porque a palavra realidade perdeu o sentido, diante de tantos crimes cometidos em seu nome.

De forma mais abstrata, esses temas podem ser discutidos numa série de conversas que estou preparando. No momento, vou usá-los, parcialmente, para expressar minha perplexidade diante do que acontece na Líbia.

Por que na Líbia? No século passado aderi ao socialismo revolucionário, que continha uma proposta de salvação. Nas últimas décadas tenho defendido a luta ecológica, que também encerra, embora muitos não percebam, elementos da mitologia religiosa, como o fim dos tempos.

Neste princípio do século 21, sinto a democracia liberal, pressionado pela busca de recursos naturais, caminhar pelas mesmas trilhas mitológicas, da invasão do Iraque aos bombardeios à Líbia. A suposição de que um regime político pode ser imposto de fora para dentro, com a força das bombas, só pode ser movida por sentimentos religiosos de salvação.

John Gray, cujo livro Anatomia acaba de ser lançado no Brasil, abordou essa questão na forma de sátira, escrevendo um artigo sobre a importância da tortura para preservar a democracia e a necessidade de proteger os torturadores no seu delicado papel. Foi alvo de inúmeras críticas de gente que até hoje não entendeu a sátira, escrita na tradição de Jonathan Swift, que, uma vez, propôs que os irlandeses dessem suas crianças para serem comidas pelos ingleses.

Entendo também como uma sátira o texto de Peter Sloterdjick, no livro coordenado por Latour, propondo o parlamento pneumático para levar a democracia de cima para baixo aos povos da África e do Oriente Médio. A proposta, bastante detalhada, implica um grande parlamento que, lançado de paraquedas de um avião, a uma altura de mil metros, ao cair seria inflado automaticamente. O parlamento pneumático de Sloterdjick teria lugar para 160 representantes e contaria também com algumas baterias de energia solar.

Quando John Gray questionou a imposição da democracia pela força e a tortura, estava se baseando apenas nos fatos revelados em Abu Ghraib, prisão do Iraque. Esta semana o WikiLeaks revelou inúmeros outros problemas em Guantánamo, onde até um octogenário, com demência senil, era mantido como perigoso terrorista.

O que acontece na Líbia não precisa só das sátira para se incluir na dimensão do absurdo. Basta um exame frio dos efeitos colaterais da luta pela democracia. Esses efeitos não são apenas bombardeios que às vezes atingem civis. São mais concretos e podem, paradoxalmente, representar um recuo na democracia ocidental.

Um exemplo disso é o drama dos refugiados que se concentram na Ilha de Lampedusa e obrigaram a França a interromper os trens que vinham da Itália. Apesar de o papa Bento XVI ter pedido por eles, os refugiados do Norte da África podem provocar um recuo no próprio processo de integração da Europa. Alguns países, como a França e a Alemanha, tendem a questionar o Tratado de Schengen, que permite ao estrangeiro circular, livremente, pela Europa, uma vez admitido num dos países-membros.

Outro efeito colateral interessante foi revelado esta semana pelo jornal The New York Times: um companheiro de Bin Laden, que lutou com ele no Afeganistão, foi preso em Guantánamo e libertado em 2007, é hoje líder de um dos grupos meio bizarros que lutam contra Kadafi. Sem querer, os Estados Unidos tornam-se aliados de um militante da Al-Qaeda.

Todos esses paradoxos que envolvem a democracia liberal não são novos, mesmo dentro do contexto autoritário do comunismo. Quando os tanques entraram em Praga, um grupo pequeno entre nós denunciou aquilo afirmando que o socialismo não poderia ser imposto de fora para dentro, na ponta das baionetas.

O próprio liberalismo, a julgar por pensadores como Gray e Isaiah Berlin, este já morto, pode encontrar um caminho no seu labirinto. Basta desvencilhar-se de um dos polos da contradição que o deforma. O problema é escolher entre o consenso racional sobre o melhor modo de vida ou a aceitação de que seres humanos podem desenvolver-se adotando os mais diversos modos de vida.

Isso não implica passividade diante dos crimes de Kadafi. Mas significa apenas admitir que é um absurdo imaginar que a democracia se vai impor de fora para dentro, com bombas e tortura.

O marxismo foi uma religião secular, com seus ritos e sua mensagem de salvação universal. A ecologia, com o mito do fim dos tempos, corre o mesmo risco, assim como a democracia ocidental, com suas guerras pela liberdade. Ao fundar sua ação na fé, a política, conforme observa o próprio Gray, provou ser tão destrutiva como a religião, nos seus piores momentos.

Jornalista

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

Primeiros passos :: Merval Pereira

Em meio a mais uma crise, o Senado aprovou várias propostas de reforma política que terão que ser confrontadas com as da Câmara para que se viabilize um projeto comum para aprovação. Fica claro na maioria das justificativas uma tentativa de refazer o contato com a opinião pública, com admissões de culpa expressas pela crise de representatividade dos partidos políticos. E algumas medidas são, realmente, passos importantes no aperfeiçoamento institucional.

O tema mais polêmico, por exemplo, o voto em lista fechada, não está na relação de emendas constitucionais ou projetos de leis já encaminhados porque não se chegou a um acordo sobre que instrumento legal será necessário para essa alteração.

Da mesma forma, a proposta de financiamento público de campanha ficou suspensa, pois depende da aprovação do voto em lista fechada, pelo qual os partidos políticos preparam, por critérios internos, uma lista de candidatos que ocuparão as vagas reservadas aos partidos de acordo com a quantidade de votos que a legenda receber.

O eleitor votará apenas na legenda. Se um partido, na divisão determinada por lei, tiver direito a indicar 15 deputados federais, por exemplo, os 15 primeiros da lista partidária serão eleitos.

Para complicar mais ainda a situação, chegou à comissão do Senado uma manifestação do jurista Ives Gandra Martins, presidente do Conselho Superior de Direito da Federação do Comércio de São Paulo, declarando inconstitucional a adoção do voto em lista fechada.

Para o jurista, a proposta fere uma cláusula pétrea estabelecida no artigo 60, §4º, inciso II, da Constituição. Segundo ele, "manifestamente, o voto em lista é incompatível com o voto direto, secreto, universal e periódico, porque afronta o preceito constitucional citado". Ele afirma que a proposta legislativa "retira do eleitor o poder de escolha de seu representante, como estabelece o parágrafo único do artigo 1º da Carta Magna. Se todo poder emana do povo, como proclamado pelo referido parágrafo único, o Voto em Lista é inconcebível no Estado Democrático", conclui o jurista.

O Senado preparou sete emendas e dois projetos de lei, sendo o mais importante deles, na minha opinião, a emenda constitucional que determina que somente com um referendo poderá ser alterado o sistema eleitoral em vigor atualmente.

"Qualquer alteração no princípio da proporcionalidade, como as diferentes modalidades de voto distrital, bem como toda tentativa de fechar e bloquear as listas partidárias importa em subtração da soberania popular", diz a justificativa do referendo.

"Decisões dessa ordem não podem depender apenas do rito de aprovação de emendas constitucionais, mas devem ser sancionadas pelo principal interessado: o eleitor, em referendo convocado para esse fim".

A proposta de emenda que acaba com a reeleição é justificada por depoimentos de senadores que exerceram cargos no Executivo ou tentaram a eleição que afirmaram que o titular do mandato, ao acumular a condição de candidato, compete na campanha eleitoral em condições extremamente favoráveis em comparação com os concorrentes. A reeleição introduziria "um viés quase insuperável no processo eleitoral em favor da continuidade da administração".

A proposta do Senado é recuperar do texto original da Constituição de 1988, que fixa os mandatos em 5 anos e declara inelegíveis para os mesmos cargos, no período subsequente, o presidente da República, os governadores, os prefeitos e quem os houver sucedido ou substituído nos seis meses anteriores ao pleito.

O direito à reeleição fica garantido aos atuais chefes do Executivo que estejam exercendo um primeiro mandato, por meio de normas transitórias.

Os mandatos do presidente da República e dos governadores a serem eleitos em 2014, e os dos prefeitos eleitos em 2012 terão, curiosamente, um acréscimo para que seja feita outra alteração, o do dia da posse.

O presidente ganhará mais 15 dias, e os governadores e prefeitos mais dez dias para que os escolhidos nas eleições seguintes já possam tomar posse em datas mais "normais", em vez de 1º de janeiro.

Isso aconteceria também para que os mandatos que estão em curso não sejam nem prorrogados nem reduzidos.

A emenda que põe fim às coligações proporcionais, um dos mais importantes tópicos da reforma política proposta pelo Senado, é defendida em termos assemelhados a uma confissão de culpa dos políticos:

"Ocorre que a experiência brasileira revela que as coligações eleitorais nas eleições proporcionais, em geral, constituem uniões passageiras, estabelecidas apenas durante o período eleitoral por mera conveniência, sem qualquer afinidade entre os partidos coligados no tocante ao programa de governo ou ideologia. Tais coligações objetivam, sobretudo, aumentar o tempo de propaganda eleitoral no rádio e na televisão de partidos maiores e viabilizar a conquista de um maior número de cadeiras nas Casas Legislativas por partidos menores, ou permitir que essas agremiações alcancem o quociente eleitoral. Além disso, o voto dado ao candidato de um determinado partido ou à própria legenda pode contribuir para a eleição de candidato de outra agremiação que integre a coligação".

A aprovação da candidatura avulsa também tem embutida uma crítica à formação dos partidos, e uma admissão de que vivemos uma crise política: "Para responder à crise é preciso revigorar os partidos e, ao mesmo tempo, permitir a expressão eleitoral de forças que não se sentem representadas no atual sistema partidário". Mas essa válvula de escape só vale para as eleições locais de prefeito e vereadores, que precisarão ter apoio de meio por cento do eleitorado da circunscrição.

Outra medida que teoricamente melhorará o desempenho dos partidos foi a aprovação da chamada "cláusula de desempenho" para a atuação parlamentar de um partido.

Só terá direito a ela o partido que eleger no mínimo três representantes de diferentes estados. Por esse critério, pelo menos 5 partidos estariam alijados do Congresso na eleição de 2010: PHS com 2; PRTB com 2; PRP com 2; PTC; e PSL com 1 cada.

Mas, como sempre, os políticos encontram um jeitinho de deixar uma brecha. Está dito na proposta que será facultada à Mesa Diretora da Câmara "a tarefa de dispor sobre o funcionamento parlamentar do partido com representação eleita ou filiada inferior a esse número".

E o projeto também mantém o direito da propaganda eleitoral gratuita para os partidos que elegeram só um deputado.

FONTE: O GLOBO

Conceito de ética:: Dora Kramer

Seria impreciso dizer que o Senado chegou ao fundo do poço quando decidiu constituir um Conselho de Ética ao arrepio do decoro indispensável à atividade parlamentar. Isso porque o poço em que o Poder Legislativo resolveu já há algum tempo jogar sua credibilidade parece não ter fundo.

Entra ano, sai ano, entra escândalo, sai escândalo, os acontecimentos bizarros não têm fim, medida nem limites.

A presença de oito processados na Justiça entre os 15 titulares do conselho soa como uma contradição em termos. Agride à lógica da vida normal, mas está absolutamente de acordo com as regras do Congresso.

Mais: compõe perfeitamente o cenário da degradação. Todos os integrantes do conselho destinado a zelar pela ética na Casa são tão senadores quanto qualquer outro. A partir do momento em que seus pares não impuseram reparos a condutas julgadas no passado e os eleitores lhes confiaram delegação, podem participar de todas as atividades sem restrição.

A questão não é o que Renan Calheiros, que trocou a renúncia à presidência do Senado pela absolvição em processos por quebra de decoro, ou Gim Argello, investigado pela Polícia Federal e obrigado recentemente a renunciar à relatoria do Orçamento da União por suspeita de desvios na distribuição de emendas, estão fazendo no Conselho de Ética.

A pergunta correta é o que esses e outros estão fazendo no Senado e o que o Senado faz consigo ao, entre outras façanhas, reconduzir à presidência da Casa José Sarney e seu manancial de escândalos, cuja mais recente leva data de dois anos atrás.

Esse episódio do conselho ganhou repercussão, é tratado como um grande problema, mas é apenas parte do infortúnio que assola o Parlamento e, em boa medida, a sociedade que não exerce ela mesma o voto limpo enquanto não se institui de vez a obrigatoriedade legal da ficha limpa: a indiferença à ética, ao conjunto de valores que disciplinam o comportamento humano como atributo essencial à vida civilizada. Pública ou privada.

Embora a completa ausência de pudor, ainda que em grau apenas suficiente para a manutenção das aparências em colegiado presumidamente ético, fira os espíritos mais sensíveis, não se configura uma novidade em face da revogação geral de quaisquer valores balizadores de condutas.

Em ambiente onde um senador pode roubar um gravador - como fez Roberto Requião ao surrupiar o equipamento pertencente à rádio Bandeirantes e apagar do cartão de memória uma entrevista que não lhe interessava ver divulgada - e ainda assim ser defendido pelo presidente da Casa, não há poço que seja fundo o bastante para delimitar a fronteira entre a civilidade de fachada e a selvageria total.

Terra arrasada. Aos arquitetos do PSD não falta ousadia para cogitar da possibilidade de atrair políticos aparentemente inamovíveis do DEM.

O senador Demóstenes Torres já recebeu convite e, segundo consta, ficou de pensar. Ninguém menos que o presidente do DEM, senador Agripino Maia, integra a lista das próximas investidas.

Não se pode dizer que o plano do PSD seja deixar que os últimos dos moicanos apaguem a luz, porque a ideia é que não reste luz para ser apagada.

Precedente. A decisão do Supremo Tribunal Federal em favor da posse de suplentes de deputados levando-se em conta o cálculo da coligação e não do partido, foi ao encontro do entendimento da Mesa da Câmara, que resolveu adotar esse critério mesmo antes da sentença do colegiado.

Descumprindo, portanto, a decisão liminar que estava em vigor até então instruindo exatamente o oposto: que a posse dos suplentes deveria levar em conta o partido e não a coligação.

A Câmara venceu no final, mas durante três meses ignorou o imperativo da obediência a determinações judiciais. Um desapreço mediante o qual o Poder Legislativo subtrai de si e das demais instituições relevância na sustentação do Estado de Direito.

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

Carrapicho, comichão e aggiornamento :: Maria Cristina Fernandes

A presidente Dilma Rousseff costuma ler o que fala. É uma das diferenças que cultiva em relação ao antecessor. Esta semana, além de lida, a retórica presidencial abrigou um termo estranho aos discursos de Luiz Inácio Lula da Silva: aggiornamento.

Dilma repetiu o termo em italiano numa única frase ao falar ao Conselhão sobre o Fórum de Gestão e Competitividade: "Com ele, nós iremos contribuir para que haja uma melhoria, um aggiornamento, um verdadeiro aggiornamento do Estado brasileiro às exigências que a conjuntura econômica, tanto no curto e no médio prazo, exigem do país".

Na década de 1960, o termo traduziu a modernização da igreja pelo Concílio Vaticano II. Décadas depois, ruído o muro de Berlim, as reformas liberais abusariam do aggiornamento para adornar o discurso contra o Estado gigante e lento.

No seu mais recente e decantado texto, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso foi buscá-lo para pôr o dedo na ferida do seu partido: "O maior equívoco das oposições, especialmente do PSDB, foi o de haver posto à margem as mensagens de modernização, de aggiornamento do país".

Retórica aproxima e política econômica conflita Dilma e FHC

No esboço de uma política econômica menos concentrada nos juros do que na oferta de crédito, Dilma tem se afastado mais da herança fernandista do que Lula. E, a despeito disso, a popularidade de Dilma indica um avanço da presidente sobre a tradicional classe média tucana que sempre resistiu a Lula.

A retórica assemelhada de Dilma e Fernando Henrique pode ser uma explicação para isso, mas não encerra o significado desse movimento que ora aproxima, ora distancia os principais adversários da política nacional.

A aproximação dá uma pista para a crise do PSDB. Já o distanciamento traz embutido o veneno que ameaça a hegemonia do PT.

Dilma se aproxima da herança tucana quando anuncia a privatização dos aeroportos, gestada e barrada no governo Lula. Também é na rota de aproximação que surge o empresário Jorge Gerdau Johannpeter para cuidar do Fórum de Gestão e Competitividade, missão para a qual já tinha havido convite - e recusa - nos anos lulistas.

Gerdau é o patrono do Movimento Brasil Competitivo onde nasceu não apenas o choque de gestão do governo Aécio Neves em Minas como muitas das iniciativas pela eficiência da máquina pública adotadas por governos estaduais de diversas colorações.

As funções de Gerdau no governo começaram pela Fundação Nacional de Saúde (Funasa), velho covil pemedebista que atravessou incólume o governo Lula. Ao escolher a Funasa para a primeira missão do empresário, Dilma parece não temer a capacidade de reação do PMDB.

O que já houve de mais próximo das funções que Gerdau vai exercer é o ministério da Reforma do Estado, ocupado por Luiz Carlos Bresser Pereira durante todo o primeiro governo FHC. O ex-ministro tucano acaba de anunciar sua saída do PSDB. Pode não ser a solução, mas rima.

Dilma avança sobre o discurso tucano no momento em que o governo paulista, encarnação da retórica da eficiência, ruma para rever a remuneração por meta de desempenho na educação.

Foi com os tucanos do Palácio dos Bandeirantes que teve início a política de bônus para professores cujos alunos demonstrassem bom desempenho nas provas unificadas. A iniciativa não reverteu numa melhoria continuada das notas dos estudantes.

Especialista no tema, o sociólogo Rudá Ricci diz que o modelo está em crise porque além de confundir educação com preparação para testes, não foi capaz de identificar a origem das dificuldades de quem ficou para trás.

Ricci cita o livro em que a assessora do governo George W. Bush responsável pela implantação da premiação de professores na educação americana, Diane Ravitch, diz que fez tudo errado.

A política, continuada por Obama, levou a fraudes no sistema de avaliação. Focados numa pontuação utópica, muitos professores acabaram rebaixando os padrões para atingi-la.

Citando dados mundiais das instituições de ensino por estudante, Ricci diz que o gasto público com educação ainda está muito aquém da média mundial. Os países da OCDE gastam seis vezes mais com um aluno do ensino médio; os EUA, cinco vezes com aqueles dos primeiros anos do ensino fundamental; e o Chile duas vezes o que se gasta no Brasil com a criança da pré-escola.

Ricci reconhece que o governo petista ainda resiste à premiação de professores, mas vê convergência com os tucanos no uso que se faz hoje de testes como o Ideb.

A revisão dos bônus da educação não é o único movimento do principal governo tucano em direção às políticas sociais do PT. Na Saúde, o governador Geraldo Alckmin decidiu que não mais expandiria as Ames, unidades ambulatoriais criadas por José Serra e Gilberto Kassab, e rumaria para aderir às UPAs federais e ao Samu.

Com a maior base parlamentar da história e atraindo os governos do maior partido de oposição, Dilma estaria criando, no entendimento de Ricci, um colchão para os tombos de seu governo.

Onde a presidente corre mais risco de tropeçar é na política anti-inflacionária, precisamente aquela em que mais se distancia do legado tucano. A tese é que, desarticulada, a oposição teria mais dificuldades para reagir quando, para não tropeçar na inflação, Dilma tiver que fazer escolhas e desagradar sua ampla base aliada.

No encontro da semana - gratuito - com metalúrgicos, Lula deu a entender que não confia na tática de extermínio da oposição por ele preconizada nos palanques do ano passado: "Oposição é que nem carrapicho. Cresce sem ninguém plantar".

Lula diz que está com comichão para voltar a fazer caravana. Além de falar em português, conhece melhor que Dilma e Fernando Henrique essa plateia que ascendeu pelo consumo e passou pelos bancos escolares no vazio da meritocracia. Seu tempo passou, mas para que Lula se mantenha nos limites da animação de auditório basta que Dilma faça as escolhas certas e a oposição não alcance a turma do Prouni.

Maria Cristina Fernandes é editora de Política

FONTE: VALOR ECONÔMICO

A galinha dos avos de ouro :: Rogério L. F. Werneck

Em face da preocupante deterioração do quadro inflacionário, foi noticiado que o governo aproveitaria a reunião do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES) para não deixar dúvidas acerca de seu real compromisso com o controle da inflação. O que se viu, no entanto, foi algo bem distinto. Em meio à densa nuvem de adjetivos, advérbios e frases de efeito, o que se pode entrever foi apenas a reafirmação do discurso ambíguo e inconvincente que já vinha pautando a condução da política macroeconômica.

A presidente Dilma Rousseff declarou que "o governo está, diuturnamente, e até noturnamente, atento a todas as pressões inflacionárias, venham de onde vierem". Mas reiterou o diagnóstico de que a aceleração da inflação decorre da elevação de preços de commodities, pouco tendo que ver com a expansão desmesurada da demanda interna. E insistiu que o governo prefere aguardar os efeitos das medidas de combate a inflação já tomadas, sem sacrificar prematuramente o desenvolvimento econômico e social. O ministro da Fazenda bateu nas mesmas teclas. Afirmou que "o Brasil não está mal na foto da inflação mundial" e que é preciso "moderar o crescimento da demanda sem matar a galinha dos ovos de ouro”.

A galinha de ovos de ouro vem tendo, de fato, um desempenho espetacular. E é perfeitamente compreensível que o governo esteja alarmado com a possibilidade de que isso venha a ser afetado. No 1º trimestre de 2011 a arrecadação administrada pela Receita Federal mostrou uma taxa de crescimento nominal, em relação ao mesmo trimestre do ano anterior, de nada menos que 19,55%. Deflacionado pelo IPCA, isso equivale a uma expansão real de 12.7%, o que corresponde a pelo menos o triplo da taxa de crescimento do PIB previsto para este ano.

Tal fartura fiscal não chega a ser surpreendente. Além da combinação do forte aquecimento da economia com o aumento de eficácia da máquina arrecadadora, na esteira da ampla disseminação da nota fiscal eletrônica. É com essa fartura que o governo conta para cumprir a meta fiscal de 2011 e ainda manter expansão substancial do dispêndio tradicional, em paralelo à que já vem sendo feita por meio das transferências do Tesouro ao BNDES, não contabilizadas no resultado primário. Tendo em conta esses dois canais de expansão fiscal, é fácil entender por que o ministro da Fazenda apresentou ao CDES uma previsão de crescimento real do investimento agregado de 10,4% em 2011.

O problema é que, como era de esperar, tal sobrecarga tributária, combinada com a apreciação cambial, vem acirrando as dificuldades por que vem passando empresas de vários setores. Para fazer face a insatisfação que se acumula, o governo passou a acenar com a perspectiva de uma reforma tributária ""realista", com agenda fatiada. Uma das fatias envolveria medidas de desoneração da folha de pagamento. Mas, apesar do excelente desempenho da arrecadação, o governo já deixou claro que não está disposto a abrir mão de receita tributária. Ou seja, algo mais terá de ser onerado para que a folha seja desonerada.

Na discussão sobre como exatamente fazer tal redistribuição de carga tributária, têm surgido propostas impensadas de todo tipo. A Confederação Nacional dos Serviços, com base em estudo supostamente preparado pela Fundação Getúlio Vargas, defende a criação de uma nova CPMF. Já a Fiesp - é o que se noticia - prefere que a conta seja repassada a Cofins. E, no governo, aventa-se a possibilidade da criação de um novo imposto sobre faturamento, cobrado em cascata.

O mínimo que se pode dizer é que o foco da discussão está mal colocado. O que se faz necessário é uma diminuição dos encargos sobre a folha de pagamento que implique efetiva redução da carga tributária agregada, seja porque o governo se dispôs a abrir mão de parte do aumento de receita que vem auferindo, seja porque, afinal, decidiu conter a expansão de gastos na Previdência. Não faz sentido desfigurar mais ainda o sistema tributário para tentar desonerar a folha de pagamento.

Economista, doutor pela universidade Harvard, e professor titular do departamento de economia da PUC-RIO

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

Palavras e ausências:: Míriam Leitão

Com palavras que entram e saem das atas do Copom, os analistas do mercado financeiro, das empresas, das consultorias vão entendendo os sinais do Banco Central. Na ata divulgada ontem, o Banco Central escreveu a palavra "principalmente" antes da expressão "ações convencionais de política monetária." Foi entendido que os juros podem subir mais.

É preciso ler também as ausências. Na última ata, depois da horrenda palavra "macroprudencial" - que quer dizer controle de crédito - estava escrita a definição "um instrumento rápido e potente para conter a demanda." Desta vez, a definição não estava mais lá. Juntando o fato de que o BC vai principalmente usar as ações convencionais e não está repetindo que o macroprudencial é "rápido e potente", analistas como o professor Luiz Roberto Cunha, o economista Luis Otávio Leal e economistas de diversos bancos concluíram que a instituição acredita mais em juros do que em medidas como IOF sobre crédito para controlar a inflação.

Pode-se imaginar que tudo isso é um jogo de apostas, em que palavras servem para se tentar adivinhações. Na verdade, esse ritual de comunicação entre o Banco Central e as instituições que compram - com o nosso dinheiro - títulos da dívida pública remunerados pela taxa Selic é uma forma de dar transparência e previsibilidade às ações do BC. Através disso ele vai se comunicando e influenciando as expectativas. Quanto mais transparente e coerente for, mais influente será.

Por isso, existe a ata, uma semana depois de cada reunião do Copom, e Relatório de Inflação, de três em três meses. Cada palavrinha presente ou ausente serve para indicar aos iniciados que movimentos o BC pode fazer. Neste momento, a autoridade monetária está diante de enormes desafios: conseguirá convencer que tem mesmo autonomia para combater a inflação? Está o Banco Central sabendo avaliar todos os riscos presentes na economia brasileira e mundial? Há controvérsias. Até dentro do banco, porque dois dos diretores votaram por um aumento de 0,5 ponto percentual, e não 0,25 p.p., como foi aprovado. Esses diretores acham que era preciso "mitigar riscos de que pressões inflacionárias recentes se transmitam ao cenário prospectivo." Em uma palavra, eles temem a "indexação".

Quanto maior a inflação, quanto mais confusas as análises e expectativas, mais cada pessoa ou empresa tenta garantir nos seus preços e contratos que não vai perder renda. Os aluguéis, por exemplo, são corrigidos pelo IGP-M. Os IGPs são índices nervosos: caem drasticamente, às vezes; disparam, em outros momentos. Por isso, o dono do imóvel se garante e registra no contrato que é o IGP-M ou o IPCA, "o que for mais alto." Assim, no ano de 2009, os IGPs ficaram abaixo de zero, mas ninguém reduziu o aluguel. No ano passado, ele passou de 10%. Ou seja, o inquilino sofre sempre. Quando a demanda está aquecida, como agora, o proprietário cresce para cima do inquilino. Imagine que o locatário é um cabeleireiro que possa impor aumento no seu preço. Ele tenderá a subir na mesma proporção dessa elevação de custos. Os resquícios da cultura inflacionária numa economia aquecida, com o governo dando sinais de que está convencido de que a inflação é tolerável porque está subindo em todos os países do mundo, são ingredientes para uma grande confusão. Essas mudanças bruscas dos IGPs têm uma explicação: eles são índices formados por preços ao consumidor, custos da construção civil e matérias-primas. Quando dispara o preço do minério de ferro, pode ser bom para a balança comercial e para a Vale, mas afeta esse índice de inflação. O mesmo com o petróleo e alimentos in natura. E por aí vai. O risco é de transmissão da inflação de um ano para o outro.

Algumas tarifas de serviços públicos, como a energia elétrica, também são corrigidas ou afetadas por este índice, que subiu muito no ano passado. Onde há competição de produto importado isso não acontece porque o dólar está caindo e neutralizando parte do aumento. Na área de serviços, o impacto é maior. Por isso a inflação de serviços ultrapassou 8%.


Na ata de ontem, o Banco Central disse que "a demanda se apresenta robusta", ou seja, está todo mundo comprando muito. Em parte pelo crédito, em parte pelo aumento da renda. Para o BC, o governo cortou gastos, mas os estímulos dados na época da crise ainda estão acelerando a economia. A verdade é um pouco mais complexa. O governo cortou gastos de um lado e aumentou de outro, fez superávit primário aumentando arrecadação e não cortando despesas, e demorou demais a retirar os incentivos fiscais ao consumo porque 2010 era ano eleitoral. Mas isso certamente não estaria numa ata do Copom. De vez em quando, com sua linguagem de contorcionista, o Banco Central avisa delicadamente que o governo tem que cortar gastos. Mas isso produz resmungos no Ministério da Fazenda e esta administração ainda não ficou "robusta" - usemos a palavra que os economistas gostam tanto - o suficiente para uma ousadia dessas. E o BC ainda não é autônomo no Brasil; tem autonomia quando o governo a concede.

Outro recado dado pelo BC no palavrório de ontem foi que a temporada de alta de juros vai ser "suficientemente prolongada" para conter a inflação. Disse no parágrafo 30 e repetiu no 32. Tudo lido e traduzido fica ainda insuficiente para se saber como o BC pretende reverter o jogo que ainda está embolado no meio-de-campo.

FONTE: O GLOBO

Sarmiento: Viajante americano:: Ana Amélia M.Cavalcanti Melo

Resumo: Neste artigo busco refletir sobre as representações da América, sua natureza e cultura, contidas nas cartas escritas por Domingo Faustino Sarmiento em suas viagens de 1945 a 1947. Posteriores à publicação de Facundo: civilização e barbárie, e realizadas com o objetivo de conhecer o sistema educacional da Europa, estas viagens e as cartas que escreve nesse interregno, desvelam uma paisagem e ambiente construídos e marcantes no imaginário de alguns intelectuais e homens letrados Ibero-americanos. Destarte neste texto pretende-se examinar as formas de ver e descrever essa América meridional elaboradas por Sarmiento em sua passagem pelo continente, estabelecendo uma relação entre as cartas e Facundo: civilização e barbárie

Palavras-chaves: Sarmiento, Viajantes, Civilização e Barbárie

Abstract: In this article I reflect on the representations of America, its nature and culture, contained in letters written by Domingo Faustino Sarmiento in his travels from 1945 to 1947. Later publication of Facundo: civilization and barbarism, and carried out in order to meet the educational system of Europe, these journeys and the letters they write in this interregnum, unveiled a landscape and built environment and striking the imagination of some intellectuals and learned men Ibero Americans. Thus this paper seeks to examine ways of seeing and describing the American South developed by Sarmiento in his passage through the continent, establishing a relationship between letters and Facundo: civilization and barbarism.

Keywords: Sarmiento, travel, civilization and barbarism.

Introdução

Este estudo parte de duas inspirações. A primeira, de ordem metodológica, representa mais que nada, uma aspiração utópica. Esta vem de Carlo Ginsburg, de seu trabalho metódico de pesquisa através do que chama de indícios, especialmente de dois livros: Nenhuma ilha é uma ilha, publicado no Brasil em 2000 e O fio e os rastros de 2007 [1]. Em ambos o historiador italiano desenvolve um trabalho de pesquisa e análise partindo de achados provenientes das margens, de comentários e referências de um escritor sobre outro. Em termos metodológicos esta é minha primeira inspiração.

A segunda inspiração, que justifica este trabalho, é a referência que Euclides da Cunha, autor de Os Sertões, faz a um também autor emblemático, desta feita, e também um clássico, o argentino Domingo Faustino Sarmiento. A aproximação entre estes autores não é nova. As indicações são significativas. Se, como nos diz Berthold Zilly [2], não pode ser encontrada nenhuma alusão em Os Sertões, a Sarmiento, sua presença é manifesta na estrutura do texto e em seus tópicos: o meio físico, a população e a cultura, a guerra. Podem ser citadas ainda as referências teóricas e a combinação de autores aos quais se referem. Entretanto a menção de nomes como Comte, Guizot, etc. não representaria prova do conhecimento e leitura de Sarmiento por Euclides, uma vez que são autores lidos e citados por toda uma geração.

Porém a indicação do conhecimento que tinha o escritor brasileiro de Facundo: civilização e barbárie tornam-se enfáticas em dois textos. Em A Margem da História, publicado em 1909 e Contrastes e confrontos de 1907. Segundo B. Zilly nos informa Euclides conhecia bem o Facundo:

“Em seu ensaio “Viação Sul-Americana”, publicado em Á Margem da História, fala das ‘páginas admiráveis de um dos maiores livros sul-americanos, ressoantes ao tropear das cavalarias disparadas dos Quirogas e dos Chachos’. Analisando a relação entre estrada de ferro, progresso econômico e liberdade política, aplaude o raciocínio de Sarmiento na obra que cita como Civilización y barbarie. No “Discurso de recepção” proferido na Academia Brasileira de Letras, o novo acadêmico aponta o autor argentino como historiador-escritor modelar, junto com Thierry, Macaulay, Alexandre Herculano, pois todos eles trabalhariam no ‘domínio comum da fantasia e da razão’, ao passo que no Brasil faria falta um autor ‘que nos abreviasse a distancia do passado e, num evocar surpreendente, trouxesse aos nossos dias os nossos maiores com os seus caracteres dominantes, fazendo-nos compartir um pouco as suas existências imortais (...)’ ” [3]

É esclarecedora a nota explicativa de B. Zilly. Este olhar entusiasmado de Euclides sobre Sarmiento e as semelhanças já apontadas incitaram, em alguma medida, a reflexão aqui proposta: como um americano do sul, especificamente argentino, viu e descreveu outros territórios dessa mesma América? Se Euclides pode ter visto o Brasil através do binômio civilização e barbárie e marcado pelo olhar sarmientino, como seria possível realizar uma leitura inversa? Como um argentino viu e descreveu o Brasil? O objetivo deste texto é o de dar a conhecer e analisar a representação que Sarmiento fez da América que conhece de passagem, estabelecendo uma relação entre as cartas e Facundo: civilização e barbárie.

O ponto de partida é o livro de Viagens de Sarmiento no qual estão publicadas as cartas escritas pelo argentino entre 1845-1847, durante seu longo trajeto rumo á Europa. Estas são posteriores ao livro-tese de 1945.

Sarmiento: Viajante americano

Não foram poucos os viajantes europeus a percorrer o território americano durante o século XIX. Os objetivos ou a categoria destes homens que chegavam aos trópicos eram diversos. Cientistas naturalistas uns, ávidos em catalogar espécies, religiosos missioneiros outros apressados no registro das almas, curiosos aventureiros, ou meros passageiros o que se via por estas paragens eram olhares curiosos e estranhos a interrogar sob o significado e a magnificência deste outro extremo do mundo. Suas narrativas modelam as representações sobre as terras distantes e se impõem como gênero.

O fascínio pelo estilo da narrativa de viagens, verificado entre os séculos XVII e XIX presta-se a algumas observações. Por um lado devemos lembrar seu significado de domínio europeu sobre as terras do “outro mundo”, domínio este também intelectual, de apropriação e interpretação de um vasto universo já colonizado. Alexandre Von Humboldt, um dos mais proeminentes viajantes-cientistas reinventaria uma América do Sul para europeus e norte-americanos assim como para as elites da América meridional [4]. Seu relato serviria de inspiração para muitos outros que o seguirão. O gênero é representativo também da experiência moderna do individualismo. Nesse sentido é possível estabelecer uma relação de aproximação entre as narrativas de viagens do século XIX e a forma do romance moderno.

A narrativa marcada pelo olhar subjetivo, é definida pelas impressões, sejam elas apresentadas em cartas, crônicas ou relatos. A própria ascensão do romance, que representa em síntese, no dizer de Ian Watt, essa experiência individual e o relato da memória autobiográfica, busca no modelo da viagem a forma de expressão [5]. O que é senão impressão de um viajante o que nos descreve Defoe em Robson Crusoe? Vale lembrar também aqui que a relação não é unilinear. A experiência de Robson alimentou a imaginação de muitos viajantes reais e imaginários. [6]

Segundo nota filológica preliminar apresentada por Elena Rojas na edição de 1997, da coleção Arquivos da Unesco, as cartas que compõem o livro de Viagens foram publicadas pela primeira vez em Santiago do Chile em 1849, num primeiro tomo e em 1851 o tomo dois. Três anos depois, em 1854 sairia em Buenos Aires uma segunda edição e em 1886 uma terceira como parte das obras completas publicadas ainda em vida. Nessas reimpressões nenhuma alteração ou correção foi realizada por Sarmiento.

O livro está organizado como uma coletânea de cartas escritas aos amigos durante os dois anos (1845-1847) da viagem que começara no porto de Valparaiso no Chile e tinha como destino final a Europa.

O olhar deste viajante que não vinha do velho mundo “civilizado” é pouco conhecido do leitor brasileiro. Domingos Faustino Sarmiento passaria pelo Brasil, depois de ter atravessado Montevidéu e de ter vivido e evocado uma “aventura robinsoniana” na ilha de Más-a-Fuera [7].. A viagem, feita com o propósito de conhecer o sistema educacional primário na Europa por encomenda do governo chileno, e que, portanto teria no percurso do território americano, um caráter de fato “passageiro”, seria registrada em cartas escritas a amigos que deixara no Chile e Argentina. Nelas encontramos não somente anotações sobre a vida das cidades que conhecia, entre elas uma curta estadia no Rio de Janeiro em fevereiro de 1946, mas especialmente a elaboração de representações e a imaginação em torno do horizonte de construção das nacionalidades americanas.

Sarmiento é especialmente conhecido no Brasil por sua mais significativa obra, considerada um clássico do pensamento latino-americano - Facundo: civilização e barbárie, publicada em Santiago do Chile em 1845. Sua produção foi, entretanto, muito mais vasta e sua biografia compõe o perfil de um escritor e político polêmico. Se em breves linhas caracterizamos as feições deste intelectual, em primeiro lugar temos que ressaltar seu autodidatismo. Pertencente a uma família tradicional e empobrecida de San Juan, teria seu destino marcado pelas fatalidades históricas das lutas caudilhas na Argentina da primeira metade do século XIX. [8]

Na leitura de Facundo é possível destacar os autores que compunham o contexto cultural e ideológico desta primeira geração pós-independência. Da evocação a Tocqueville, passando pelas citações de abertura de cada capítulo, e os comentários realizados ao longo do texto, comparecem Humboldt, Maquiavel, Guizot, Victor Hugo, Victor Cousin, Raynal, Voltaire, Rousseau, etc. Assim como para Sarmiento, estes escritores e pensadores marcariam um grupo de intelectuais argentinos conhecidos como a Geração de 37. Organizados em torno da luta contra a arbitrariedade dos caudilhos, ou segundo estes, na luta pelo estabelecimento de uma res publica, pela construção da nação argentina, este grupo de liberais e sua atuação só pode ser compreendida no âmbito das lutas políticas entre unitários e federalistas. A elaboração de Facundo é parte deste debate sobre o projeto nacional argentino.

A situação privilegiada, tanto geográfica quanto economicamente, de Buenos Aires em relação às demais províncias e o domínio que esta exercerá sobre a região platina deve ser compreendido valendo-se da desorganização política e econômica causada pelas sucessivas guerras do período de independência. Buenos Aires, controlando as comunicações com além-mar e, dessa forma, também os ingressos alfandegários conseguiu impor um domínio muitas vezes contestado pelas Províncias del Rio de la Plata. As demais províncias, quando puderam recuperar-se da devastação das guerras já encontraram Buenos Aires monopolizando as rendas e buscando subjugar aos vizinhos. Se após a independência criou-se uma elite de políticos profissionais vinculados aos comerciantes de Buenos Aires, já a partir de meados da década de 1820 o investimento em terras e gados faz surgir um grupo social de proprietários rurais de grandes fortunas e poder local que aspiram ao controle político direto. Rosas será a figura emblemática desta nova organização de poderes [9]. Esta nova classe política, fazendo-se porta-voz do federalismo irá representar e dominar através dos poderes caudilhos.

Ao escrever Facundo, Sarmiento refaz o caminho das disputas locais e acaba por elaborar uma interpretação da nacionalidade argentina e também do caudilhismo. A ótica será a de um liberal pensando a política ou os caminhos de construção da esfera pública e do mundo da política. É por esta ótica que ele faz o apelo a Tocqueville, buscando espelhar-se e equiparar-se na tarefa de desvendar a política argentina. [10]

A importância de Tocqueville na interpretação de Sarmiento é central, atravessando a própria oposição civilização e barbárie. Não serão as poucas referências a América do Sul feitas por Tocqueville que marcariam a visão de Sarmiento sobre a Argentina, especialmente o modelo de análise da sociedade Norte-Americana e a apropriação do conceito de civilização para a interpretação da América. Vale a pena citar as palavras de Sarmiento:

“`A América do Sul em geral, e à República Argentina sobretudo, fez falta um Tocqueville, que munido do conhecimento das teorias sociais, como de barômetros, octantes e bússolas o cientista viajante, viesse penetrar no interior de nossa vida política como num campo vastíssimo e ainda não explorado nem descrito pela ciência, e revelasse à Europa, à França, tão ávida de fases novas na vida das diversas porções da humanidade, este novo modo de ser que não tem antecedentes bem demarcados e conhecidos”. [11]

Ainda em Facundo o olhar de Sarmiento é sobretudo o de um viajante. Neste livro de 1845 os cinco primeiros capítulos trarão a descrição dos aspectos físicos e dos costumes da Argentina. Há nele um estilo, um tipo de observação característico e devedor dos relatos dos viajantes europeus. Os sentidos do mundo americano vão originando-se a partir de analogias que refletem muito mais e, paradoxalmente, a imaginação de uma outra América.

A América: entre civilização e barbárie

A leitura dos principais ensaios e da literatura ibero-americana das primeiras décadas do século XX revela um dado não pouco significativo: a presença abrumadora da natureza. Carlos Fuentes, num estudo sobre a natureza em Rómulo Gallegos nos traça um interessante percurso do que ele chama um “problema clássico da origem da civilização: como responder ao desafio da natureza, ser com ela, mas distinta dela?” [12]. Ele mesmo trata de dar uma resposta a esta pergunta através de Canaima de Rômulo Gallegos. Segundo o escritor mexicano, a literatura ibero-americana do século XX, na qual a natureza é uma constante, apresenta o problema com base na perspectiva de uma natureza devoradora, em síntese, bárbara. A disjuntiva civilização-barbárie é representada por outra disjuntiva: história-natureza. E a história seria o primeiro passo na humanização da natureza. A história, neste sentido, está associada diretamente a idéia de civilização.

Se retomarmos as obras narrativas dos primeiros tempos da conquista veremos que representam uma tentativa de domínio desse novo espaço geográfico e dessa natureza do novo mundo. Crônicas e relações de viagens vão fundar uma tradição cujas expressões se estruturam mais organicamente com o nascimento da narrativa ibero-americana em princípios do século XIX. [13]

Nas primeiras décadas do século XX, quando ganha força na América Latina, o processo modernizador, aprofunda-se o afã de explicar esse mundo que, aos olhos da elite letrada formada pelos padrões europeus, parecia inexplicável [14]. Explicar esse mundo, em certo sentido significava domá-lo. O assombro que vinha dos primeiros navegadores em face do novo continente, perpetua-se na descoberta posterior de uma natureza ainda “bárbara” [15]. A pampa, o llano e o sertão aparecem como um desafio de dimensões metafísicas. A natureza é vista como hostil uma vez que está culturalmente vazia.

Esta discussão sobre a natureza no pensamento ibero-americano confunde-se com uma outra discussão muito mais ampla, que é a da identidade. Na literatura como na ensaística busca-se pensar a América Latina para definir sua identidade em contraposição a Europa. Neste sentido, a oposição entre civilização e barbárie esteve presente de maneira particular [16]. Já no final do século XVIII, quando os cientistas-viajantes europeus se deslocam pelo mundo, em específico pelo continente americano, definem e representam o território não-europeu, nos relatos científicos, ou nas narrativas sentimentais e impressionistas, como algo que foge a seus paradigmas. A catalogação desse novo mundo faz-se não apenas como espaço da natureza, desprovido de história, posto que o homem que aí vive é visto como parte dessa natureza, mas de sobremaneira como natureza exótica. [17]

Esta perspectiva que marca os valores europeus atinge a elite de letrados das recentes nações latino-americanas. Começa a surgir na América Latina um discurso que, procurando definir uma identidade, encontra sobretudo nos discursos científicos, os argumentos que pareciam capazes de dar conta de uma realidade distinta daquele mundo europeu e civilizado. Domingo F. Sarmiento inscreve-se entre estes homens para o qual analisar significava descrever, ordenar e classificar conforme as categorias das ciências modernas. Sarmiento inaugurava com Facundo: civilização e barbárie um tipo de análise que se tornaria referencia no pensamento latino-americano.

Emblemático, neste autor, seria a oposição civilização e barbárie. O dualismo partia de leituras determinadas. Tocqueville seria, mais uma vez, um caso explícito. A comparação entre a América do Norte e a América do sul e identificação de civilização ao mundo europeu serviria também de inspiração a Sarmiento.

“A Europa, entregue a si mesma, chegou por seus próprios esforços a transpassar as trevas da Idade Media; a América do Sul é cristã como nós; têm as nossas leis, os nossos costumes; encerra todos os germes das civilizações que se desenvolveram no seio das nações européias e de seus rebentos; a América do Sul tem mais que nós, o nosso exemplo, por que permaneceria sempre bárbara?” [18]

O binômio marcaria o pensamento latino-americano da segunda metade do século XIX. Sua constância e relevo, assim como o grau de generalidade nos conduzem necessariamente à análise de Norbert Elias, ao que ele chama de uma “sociogênese” do conceito [19]. No exame dos sentidos de civilização, N. Elias aponta para a existência de uma consciência que o Ocidente tem de si mesmo. Porém para cada nação do Ocidente o conceito de civilização tem significações distintas. Para ingleses e franceses a palavra é empregada para expressar o “orgulho pela importância de suas nações para o progresso do Ocidente e da humanidade” [20]. Este significado torna-se mais obscuro e impreciso quando é utilizado para aludir a outras áreas que não às sociedades inglesas e francesas. Sua utilização nestas sociedades é feita, segundo Elias, para fazer referencia tanto a fatos políticos, econômicos, religiosos, morais, artísticos ou intelectuais. Dizem respeito também, com o adjetivo civilizado, às qualidades sociais das pessoas, sua educação formal, sua fala, suas roupas, etc. Civilização concerne também a uma idéia de progresso, um processo em permanente evolução.

De igual maneira a idéia de progresso nasce de modo explícito, nos primórdios da modernidade, assentada nas grandes descobertas científicas do século XVI. Primeiramente a idéia de progresso surge e se consolida no domínio científico. Somente no século XVIII ela se generaliza sendo utilizada seja para referir-se à história, filosofia ou economia [21]. Também a ele está associada a confiança na razão e num mundo governado por leis físicas e morais. O tema tornar-se-á dominante em fins do século XVIII consolidando-se, finalmente, como categoria essencial no século XIX.

Convém ainda realçar o estudo de Raymond William sobre os significados historicamente construídos da palavra civilização. A origem tanto de sua acepção em inglês e francês é encontrada no latim medieval cuja raiz seria civil ou civis e dizia respeito a cidadão. No século XVI, aproximadamente, teria sido usada em inglês com o sentido ampliado de ordeiro e educado. Segundo Williams já nos séculos XVII e XVIII começaria a ser usada a palavra civilidade com o sentido tanto de ordem social quanto de refinamento. Tratava-se de um estado e não ainda de um processo. Finalmente a palavra civilidade seria substituída, ainda no século XVIII por civilização trazendo o significado, como nos diz Williams (2007), de um processo e de uma qualidade adquirida. A história deste conceito é inequivocamente devedora da tradição do Iluminismo e seria incorporada no ideário das elites ilustradas da América Latina. [22]

O livro de Viagens

Composto de 11 cartas escritas a amigos diversos, apenas três estarão dedicadas aos vizinhos da América do Sul: a primeira falando de sua experiência robsoniana na ilha de Más-a-Fuera escrita em Montevidéu e datada de 14 de dezembro de 1845; uma segunda sobre Montevidéu escrita e datada nessa cidade em 25 de janeiro de 1846; e finalmente a terceira e ultima carta em território sul americano escrita do Rio de Janeiro em 20 de fevereiro de 1846. A estadia nessas cidades é passageira. Além das 24 horas em Más-a-Fuera, ficaria uma curta temporada em Montevidéu sitiada e de lá se dirigiria para a cidade do Rio de Janeiro, em que se instalaria durante dois meses até partir para a Europa.

Ao iniciar sua viagem Sarmiento acabava de publicar Facundo em folhetim, no jornal O Progresso de Santiago de Chile. A viagem originou-se de uma proposta do governo chileno para realizar uma análise de instituições de educação na Europa. Os desígnios assim como as polêmicas de Facundo orientam suas observações, particularmente quando se sublinha a dicotomia civilização e barbárie. A viagem tem um amplo sentido pedagógico. Representava um aprofundamento de sua formação como também era, a seu entender, um modo de buscar os meios capazes de superação da barbárie americana. Por outro lado o prólogo atribui um sentido claro a seu projeto, segundo suas próprias palavras as cartas dão a conhecer “o espírito que agita às nações, as instituições que retardam ou impulsionam seu progresso” [23].

A afirmação condiz com as idéias que propõe em O Progresso do Chile. Munido de imaginário liberal e formado pelo que Maria Odila chama de a ética do Século das luzes no qual a liberdade e a felicidade eram alcançadas através das ciências. [24]

Com relação a este transplante, entretanto, algumas observações devem ser colocadas. O complexo da ilustração iberoamericana é entendido a partir das reformulações Ibéricas e Americanas. Se seguirmos as indicações de Richard Morse, compreenderemos não tratar-se de um continuum no qual um pensamento tradicional é seguido por um moderno, mas de readaptações e remodelações que mais que nada conformam um mosaico. Aqui destaco que o uso que se faz do termo Iberoamérica diz respeito a um propósito: o de realçar a distinção da tradição Ibérica nas Américas, em relação a anglo-saxônica [25]. Nesta tradição tem relevo o ecletismo que, se como nos afirma o autor supracitado, em sentido amplo o ecletismo é comum a todos os sistemas de idéias, no caso espanhol, pela inexistência de uma situação revolucionária, seja política ou religiosa, prevaleceu o caráter de harmonização entre um ideário tradicional e o novo racionalismo. [26]

Na América, a impropriedade de um continente majoritariamente constituído por escravos e índios, aliados a um legado europeu incompleto, levantava especialmente no período de pós-independência, o dilema da conformação ou harmonização desta malsinada realidade. A interpretação desta dicotomia entre um mundo imaginado e a realidade disforme estaria expressa na disjuntiva civilização e barbárie que Sarmiento nos apresentaria na década de 1840.

Seguindo este sentido Sarmiento empreende, em sua viagem iniciática de 1845, um percurso em busca da utopia da civilização. Os primeiros dias da viagem, desde a saída do porto de Valparaiso até a chegada a Montevidéu, a primeira parada prevista, Sarmiento descreve uma natureza a desfazer os esforços da “arte humana”. O percurso que seria pela costa do Pacífico até o Cabo de Hornos, se realizaria não sem transtornos dignos de um aventureiro. Sarmiento, ao escrever a carta ao amigo Demetrio Pena, se pergunta sobre o que escreveria a respeito de uma viagem de Valparaiso a Montevidéu. Ao evocar a esperada quietude torna mais que nada saliente, pela oposição, o caráter pouco ordinário da experiência.

Os mencionados “incidentes” de uma viagem são apresentados como naturais, não obstante a advertência inicial de que “no mar o homem aprende a resignar-se ao destino e esperar”. A natureza é portadora de uma “vontade soberana”, fortes ventos retêm o barco durante dias na costa sul do Chile, ondas gigantescas levam o barco para fora de seu rumo, baleias enormes acompanhavam a travessia e ainda, nas proximidades da ilha de Chiloé um homem cai no mar sem que seja possível resgatá-lo. Todos estes eventos extraordinários para o leitor de hoje, são descritos como incidentes que não mudariam a qualidade pouco memorável da viagem não fosse a inusitada experiência na ilha de Más-a-Fuera, acentuada sob a inscrição de uma “experiência robinsoniana”. Claro está a necessidade de se fazer uma ressalva quanto aos recursos literários amplamente utilizados por Sarmiento, dando ao leitor uma idéia da insignificância de tais episódio. Sobretudo se lembramos que não seria estranho conjeturar que Sarmiento escrevia pensando num público leitor para além de seus confidentes amigos.

A descrição do desembarque na pequena ilha rochosa e o encontro com os quatro únicos homens que ali habitavam está repleta de expressões que denotam sensações de espanto e rejubilo de encontrar “seres racionais”. A descrição evoca a imaginação construída com a leitura de Robson Crusoé. É numa mansão “semi-selvagem” construída com restos de caixas, barris e outros utensílios deixados por naufrágios que Sarmiento, junto a outros homens, é recebido calorosamente pelos ilhéus que saudavam o dia feliz em que, segundo o autor das cartas, a Divina Providência lhes concedia a ventura de ver outros seres inteligentes. É interessante destacar aqui as palavras de Sarmiento:

“Ya ve que no sin razón nos venia a cada momento la memoria de Robinson; creíamos estar con él en su isla, en su cabaña, durante el tiempo de su dura prueba. Al fin lo que veíamos era la misma situación del hombre en presencia de la naturaleza salvaje (…)” [27]

Seguindo as indicações de Peter Burke, é com base nessas leituras que se cria uma expectativa que finalmente conduziu, orientou e induziu a interpretação do mundo americano [28]. O que torna singular os escritos de Sarmiento é o fato, não da viagem propriamente, mas da descrição dessa experiência especialmente por tratar-se de um homem sul-americano. É possível perceber através dele a força que o imaginário sobre a civilização, teve entre os homens ilustrados da América meridional. Sarmiento seguiu a risca um itinerário de opiniões já anteriormente demarcadas. Insistia em determinados temas e assuntos, assim como utilizava fórmulas e expressões recorrentes numa certa tradição de relatos de viagens que vinham desde o século XVI com os primeiros viajantes e chegava a seus contemporâneos como os relatos de viagens de Humboldt [29]. Pratt, chama atenção para a particular importância deste livro de viagens [30]. Se era comum, entre as elites americanas, realizar tal empreendimento cultural, o mesmo não se pode afirmar da elaboração de uma obra que, como Sarniento faz, reinventa a Europa para os americanos. Esta particularidade pode ser desdobrada ainda no significado paradoxal do olhar de um viajante americano sobre o continente que, não obstante seu, pareceria mais estranho e exótico do que aquele distante para o qual rumava.

Para nossa análise serão salientadas aqui as observações sobre o Rio de Janeiro com o objetivo de refletir a cerca de certa distância cultural que ele destaca a propósito do exotismo natural, percebendo desta maneira, a enfática retórica da “civilização” a contrapor-se a barbárie, evocando seu livro anterior, Facundo: civilização e barbárie.

A estadia de Sarmiento no Rio de Janeiro se passa entre os meses do verão. Sua carta será datada de 20 de fevereiro desse ano, e então se refere aos já vinte dias na cidade. É importante observar três características importantes em Sarmiento. O fato de ser viajante, estrangeiro e sul-americano. O sentido de viajante é, como acentua Moreira Leite diferenciador [31]. Seu olhar já estará informado pelo caráter temporário de sua estada e, portanto, por certa autonomia em relação aos lugares sociais e as dinâmicas de um mundo no qual está efetivamente de passagem; por outro lado a perspectiva de partida e, especialmente neste caso, o objetivo da viagem, não será desimportante na elaboração de suas percepções. Da mesma forma, o fato de ser estrangeiro e, portanto de ocupar um lugar específico nesse universo social, a maneira como será visto, as formas de relacionamentos e as pessoas com que se relacionará é determinada pelo fato de ser um estrangeiro. Nesse sentido, nota-se as referências que fará às pessoas que conhece no Rio de Janeiro. Além de Rugendas, será apresentado ao naturalista alemão Mr. König encarregado dos jardins do palácio de São Cristóvão, a Hamilton, encarregado de negócios da Inglaterra no Brasil, Dr. Sigaud, médico do Imperador, etc. Todos nomeados e identificados. Os distanciamentos são estabelecidos nesta diferenciação social. È ele visto e recebido como representante do governo chileno. Esta terceira e última característica, traz maiores singularidades. Não se trata de um representante da Inglaterra, França ou Alemanha, mas de um argentino exilado no Chile e que represente este país também sul-americano. A diferença dos muitos estrangeiros da Europa, sua missão que não deixa de ser científica, deve ser realizada no Velho Continente.

Suas primeiras observações são dedicadas à natureza. Sublinha-se o aspecto negativo. O medo, a tirania, a prostração indicam e introduzem o leitor nessa natureza bárbara que limita as faculdades físicas e morais do homem. O sol abrasador mutila a existência humana. Os raios do sol são agudos como flechas, cortantes como chuva de agulhas [32]. É esse sol dos trópicos que traz “a morte em vida dos corpos” e a “irritação do espírito”.

Entretanto a natureza é também extraordinária. Sarmiento passeava pelos arredores da cidade sentindo que suas faculdades não alcançavam para tamanha maravilha. O olhar aqui trata de trilhar e desvendar uma natureza totalmente desconhecida. Através da escrita ele se apropria e vai construindo um sentido para este percurso iniciático. O relato é também parte deste processo de viajar. [33]

A imaginação construída através de leituras, de uma viagem textual, informa a experiência das sensações dando a escrita plasticidade. Se a diversidade da natureza e da realidade social do Brasil, entre europeus representava um abismo cultural a ser transposto a partir de uma série de convenções, para um viajante sul americano estas distâncias deveriam ser menores. Entretanto não o é. O que é bastante singular em si tratando de um argentino que discursa contra o barbarismo de sua terra. O que denota a adequação do olhar ao arquétipo europeu.

As anotações se prolongam num tema central neste século, a questão da raça e da mestiçagem. A escravidão é condenada como sinal do atraso. É baliza da debilidade, de onde não há dinamismo. Existem escravos onde não há poderes enérgicos. É ela o recurso dos últimos países na escala do progresso civilizacional. É ela considerada um câncer desagregador, consentido pela moral pública. Sarmiento se detém ainda num comentário e reflexão sobre o mulato. “Raça viril” ele conserva o sangue ardente do Africano e os elementos de crânio da família européia. Diz ele:

“Me detengo sin quererlo sobre las brillantes cualidades morales de esta raza intermediaria entre el blanco, que se enerva en los climas ecuatoriales, i el negro, incapaz de elevarse a las altas rejiones de la civilización. Otra vez habia notado la predisposición constante del mulato a ennoblecerse, i su sentimiento esquicito del arte, que lo hacen instintivamente músico (…)” [34]

A passagem dá continuidade a uma idéia já presente no livro anterior, de uma visão poética da realidade americana, da luta imponente e grandiosa, repleta de recursos dramáticos que o europeu nem o africano alcançam. O mulato é a fibra do nacional. Sarmiento reproduz nesta carta a ambivalência de suas idéias, seja apontando o “caráter odioso e deformante das degenerações dos trópicos”, seja afirmando, extasiado, a grandiosidade do espetáculo da natureza. A melodia que Sarmiento evocava no Gaúcho cantor nascida do espetáculo da barbárie, de um mundo incompreensível, faz-se presente também na natureza tropical aludida. “Hai en la naturaleza tropical melodías inapercibibles para nuestros oidos”

Como um observador atento Sarmiento procura conhecer a geografia da cidade os bairros aristocráticos de Botafogo e Catete, “verdadero Saint-Germain de la nobleza estranjera, de la diplomacia, la finanza”. Em poucas passagens há uma identificação social dos lugares, das hierarquias e dos espaços sociais. De um lado está uma “aristocracia”, do outro as zonas da cidade central, de ruas estreitas e movimentadas pelo comércio.

Finalmente, Sarmiento detém-se na forma de governo que no Brasil se organiza. A ausência da República denuncia a carência de projeto político esclarecido, civilizatório. Ao aludir aos movimentos republicanos numa referência à Minas e São Paulo, recupera a idéia marcante de facundo: civilização e Barbárie, de denúncia do caudilhismo. Alimentando uma profunda desconfiança daqueles movimentos oriundos do interior, das províncias distantes da capital, numa evocação às disputas unitárias e federalistas da Argentina, Sarmiento acaba por fazer uma representação obliqua dos movimentos republicanos no Brasil.

“La República se ha mostrado en el Brasil embozada en el poncho i armada del lazo, equipaje semi-bárbaro, que no abona, sin duda, sus principios. Yo no comprendo la republica sino como la última expresión de la intelijencia humana, i me desconfio de ella cuando sale del interior de los bosques, de las provincias lejanas de la capital, del rancho del negro, o del espíritu de insubordinación de algún caudillo de jinete.” [35]

Tratei de demonstrar aqui as convergências entre as cartas e o livro de 1845 de Sarmiento. A perspectiva do narrador destas cartas expõe uma América que está em facundo, uma América mais que tudo imaginada, construída através do argumento da civilização a contrapor-se à barbárie. Seu ponto de vista está já construído e determina seu olhar sobre a paisagem e realidade humana que conhece antes de rumar para a Europa. É nesse sentido que a viajem contem um significado amplamente pedagógico. Ela confirmaria a problemática apresentada anteriormente. A poética barbárie americana representava um obstáculo para a construção do progresso, da civilização e não permitia a edificação de instituições políticas governadas pela soberania da razão.

É professora do Departamento de História Universidade Federal do Ceará (UFC)

FONTE: ESPÉCULO, revista de estúdios literários. Universidad Complutense de Madrid, nº47, marzo-junio, 2011.

Notas:
[1] Ginzburg, Carlo. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo, Cia das Letras, 2007. E também do mesmo autor: Nenhuma ilha é uma ilha: quatro visões da literatura inglesa. São Paulo, Cia das Letras, 2004.
[2] Zilly, Berthold. barbárie, do Facundoa Os Sertões.2001. G gramsci e o Brasil. http://www.artnet.com.br/gramsci/arquiv157.htm
[3] Ibid.
[4] Pratt, M. Louise. Humboldt e a reinvenção da América, in: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 4. n.8, 1991, p. 151.
[5] Watt, Ian. São Paulo, Cia das Letras, 1990, p. 14.
[6] “O romance é a forma literária que reflete mais plenamente essa reorientação individualista e inovadora. As formas literárias anteriores refletiam a tendência geral de suas culturas a conformarem-se à prática tradicional do principal teste da verdade: os enredos da epopéia clássica e renascentista, por exemplo, baseavam-se na História ou na fábula e avaliavam-se os méritos do tratamento dado pelo autor segundo uma concepção de decoro derivada dos modelos aceitos no gênero. O primeiro grande desafio a esse tradicionalismo partiu do romance, cujo critério fundamental era a fidelidade à experiência individual - a qual é sempre única e, portanto nova. Assim o romance é o veículo literário lógico de uma cultura que, nos últimos séculos, conferiu um valor sem precedentes à originalidade, à novidade."Ibid., p. 14.
[7] Javier Fernandez, “De Valparaíso a Rio de Janeiro”, in: Domingo Faustino Sarmiento, Viajes. São Paulo, ALLCA XX , 1997.
[8] Prado, Maria ligia Coelho, “Para ler o facundo de Sarmiento”, in: América Latina no século XIX: tramas, textos e telas.”. São Paulo, Edusp, 2004.
[9] Lynch, John. “A República do Prata da independência à Guerra do Paraguai”, in: Bethell, Leslie. História da América Latina. Da Independência até 1870. Vol. 3, São Paulo, Edusp, 2004, p. 647.
[10] Beired, José Luis Bendicho. História, São Paulo, USP, 22(2), 2003.
[11] Sarmiento, D. Faustino. Facundo: civilização e barbárie. Petrópolis, Editora Vozes, 1997, p. 48.
[12] Fuentes, Carlos. Valiente mundo nuevo. Épica, utopia y mito en la novela hispanoamericana. México,Fondo de Cultura Económica, 1990, p.106.
[13] Ainsa, Fernando. Identidad cultural de iberoamerica en su narrativa. Gredos, Madri, 1986.
[14] Larraín, Jorge. “Interpretaciones de la identidad latinoamericana” , in: J. Larrain, Identidad chilena. Santiago de Chile, LOM, 2001, pp. 49-81.
[15] Magasich, Jorge e Jean-Marc de Beer, América Mágica. Mitos y creencias en tiempos del descubrimiento del nuevo mundo, Santiago, LOM Ediciones, 2001.
[16] Campra, Rosalía. América Latina:La identidad y la máscara, México, Siglo XXI, 1982, p. 49.
[17] Op. Cit. Pratt, Mary Louise, p. 151.
[18] Tocqueville, A. A Democracia na América, Belo Horizonte, Itatiaia, 1977, p.310.
[19] Elias, Norberto. O processo civilizador. Vol. I. Uma História dos costumes. Rio de Janeiro, Zahar, 1994, p. 24.
[20] Ibid. , p. 24.
[21] Le Goff, Jacques. “Progresso e reação”, Enciclopédia Einaudi - Vol. I, Memória e História. Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1984, p. 338.
[22] Williams, Raymond. Palavras-chave: um vocabulário de cultura e sociedade. São Paulo, Ed. Boitempo, 2007.
[23] Sarmiento, Domingo F. Prólogos, Viajes. Edición crítica. Javier Fernandez (Coord.). Primeira reimpressão. Madrid, ALLCA XX, 1997, p. 5. Faço aqui uma tradução diretamente desta edição em espanhol, mantendo a grafia antiga. Daqui em diante será citado apenas pelo título.
[24] Dias, Maria Odila L. da Silva, “Aspectos da Ilustração brasileira”, in: A interiorização da metrópole e outros estudos. São Paulo, Alameda, 2005.
[25] Morse, Richard. O espelho do próspero: cultura e idéias nas Américas. São Paulo, Cia das Letras, 1988.
[26] Ibid., p. 73.
[27] Viajes, p. 10.
[28] Burke, Peter. “O discreto charme de Milão: viajantes ingleses no séc. XVII.” In: Variedades de História Cultural. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2006, p. 137-158.
[29] Ver Dossiê Brasil Viajantes, Revista da USP, n. 30, junho/julho/agosto/ 1996 e Mary Louise Pratt, Humboldt e a reinvenção da América, Estudos Históricos, vol. 4, n. 8, 1991.
[30] Pratt, Mary Louise. Op. Cit.
[31] Moreira Leite, Miriam L. Livros de Viagem (1803-1900). Rio de Janeiro, UFRJ, 1997, p 162.
[32] Viajes, p. 56.
[33] Martins, Luciana de Lima. O Rio de Janeiro dos Viajantes. O olhar britânico (1800-1850). Rio de Janeiro, Zahar, 2001, p. 29.
[34] Viajes, p. 59.
[35] Ibid. p. 67.