sábado, 28 de janeiro de 2012

Gestão fiscal com autonomia federativa :: Paulo Paiva

As reformas fiscais que ocorreram no Brasil nas últimas décadas se basearam em dois pilares: transparência e equilíbrio orçamentário. Um novo regime fiscal foi construído da criação da Secretaria do Tesouro à adoção de regras e indicadores que permitem o acompanhamento de metas, culminando, em 2000, com a promulgação da Lei Complementar n.º 101, que estabeleceu normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade fiscal. Esse novo regime fiscal foi emergindo ao tempo em que diferentes esforços buscavam conter a inflação, exigindo maior controle no uso dos recursos públicos. Nesse difícil processo prevaleceu um alto grau de centralismo na gestão fiscal que, de certa forma, conflita com os princípios federativos estabelecidos na Constituição de 1988. Num país grande e heterogêneo como o Brasil, a relação entre disciplina fiscal e autonomia federativa não é trivial e requer profundo amadurecimento político, isonomia de responsabilidades entre os entes federados e sólidos compromissos comuns.

A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) estabeleceu rígidos critérios para Estados e municípios no que tange à gestão de suas receitas, ao grau de endividamento e ao comprometimento da receita líquida com despesas de pessoal. Os efeitos positivos da LRF sobre a gestão fiscal de Estados e municípios aparecem não só nos resultados, mas com igual importância na mudança do comportamento dos gestores e, ouso dizer, na avaliação da população sobre o desempenho da administração pública.

Mas ao longo dos anos a autonomia dos Estados para gerir suas finanças vem diminuindo. Por quê? De um lado, o governo federal passou a concentrar crescente parcela da receita tributária por meio da criação de contribuições que não são distribuídas a Estados e municípios. Ademais, as transferências à União, decorrentes do acordo da dívida, comprometem até 13% da receita líquida. Como o saldo devedor dessa dívida cresce em média 6% acima da inflação, os poucos anos que ainda restam no contrato de financiamento não serão suficientes para liquidá-lo. Assim, no final da próxima década, em alguns Estados haverá uma dívida impagável, se não houver nova renegociação.

De outro lado, há uma crescente vinculação de despesas em razão da legislação federal. Ainda recentemente foi sancionada lei que regulamenta a EM 29. A presidente vetou o dispositivo que escalonaria no tempo o seu cumprimento. Ferindo o princípio da isonomia, ela vetou também a obrigatoriedade de a União aplicar em saúde um porcentual mínimo de sua receita, como estabelecido para Estados e municípios.

Quanto aos gastos com pessoal, o Executivo estadual não pode comprometer mais do que 49% da receita líquida. Todavia, parte considerável da variação dessas despesas é decidida na esfera federal, como o aumento do salário mínimo, que este ano chegou a 14%, e a atualização anual do piso salarial dos professores, que é definida por portaria ministerial, não levando em consideração a estrutura de gastos dos Estados. Comenta-se que para 2012 o acréscimo no piso do magistério será de 22% ante uma inflação de 6,5% no ano passado.

Assim, a capacidade dos Estados de se manterem nos limites da LRF está se esgotando por falta de compatibilidade entre as imposições de gastos tomadas em Brasília e a evolução das receitas tributárias estaduais que não acompanham o crescimento da carga tributária total. Não está longe o tempo em que Estados estarão sujeitos à intervenção federal por não cumprirem a LRF; o tempo em que Estados dependerão exclusivamente de transferências voluntárias da União para exercer suas atribuições básicas; o tempo em que Federação será apenas um sonho sonhado.

Para garantir a estabilidade política, urge restabelecer a autonomia e a isonomia federativas. Além da transparência e do equilíbrio orçamentário, a autonomia federativa deve ser outro pilar do regime fiscal do País. Não considerá-la pode pôr em risco tanto o equilíbrio federativo quanto o fiscal. Urge uma ação suprapartidária, antes que seja tarde.

Paulo Paiva, professor da Fundação Dom Cabral, foi ministro do Trabalho, do Planejamento, Orçamento no governo FHC.

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

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