João Cezar de Castro Rocha*
O novo livro de Roberto Schwarz, Martinha Versus Lucrécia, reúne 17 textos, enfeixando grande diversidade de gêneros: ensaios de fôlego, outros curtos, escritos de ocasião, palestras, entrevistas e mesmo uma arguição de trabalho acadêmico.
O leitor talvez se sinta desorientado frente à natureza heteróclita do livro. Contudo, para esclarecer a coerência da organização, recordem-se dois títulos machadianos.
Principie-se pela advertência de Machado de Assis a Papéis Avulsos (1882): "Este título (...) parece negar ao livro uma certa unidade; faz crer que o autor coligiu vários escritos de ordens diversas para o fim de não os perder. A verdade é essa, sem ser bem essa."
O mesmo pode ser dito a respeito de Martinha Versus Lucrécia.
O primeiro ensaio, Leituras em Competição, cujo eixo fornece o título da coletânea, apresenta os pressupostos da pesquisa corrente de Roberto Schwarz, assim como anuncia desdobramentos futuros. Trata-se, assim, de trabalho em curso, que busca ampliar seu bem-sucedido modelo de interpretação da obra machadiana.
O último texto, Na Periferia do Capitalismo, uma longa entrevista, permite a Schwarz recapitular os primeiros passos de sua carreira, desde o ingresso no curso de ciências sociais na USP, em 1957, até a formação de seminário dedicado ao estudo de O Capital, no ano seguinte.
No fundo, os dois extremos se tocam. Em Dom Casmurro (1899), Bento Santiago almejou semelhante unidade para a escrita de suas memórias: "O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui."
Se não vejo mal, Martinha Versus Lucrécia compõe uma autobiografia intelectual oblíqua. E, ao contrário do narrador casmurro, Schwarz articula com êxito os momentos de seu percurso.
Voltemos ao princípio, escutando as lembranças do autor acerca dos estudos dedicados ao livro de Karl Marx: "Começou a se configurar no seminário a distância entre a construção marxista e a experiência histórica do país. O seminário teve a força de não desconhecer a discrepância (...)."
A obra de Roberto Schwarz foi a que levou mais longe as consequências dessa dissonância entre construção teórica e vivência histórica.
O exame de O Capital, a partir da circunstância brasileira, demandou a atualização do clássico no confronto com um contexto diverso do de sua produção. Ao mesmo tempo, porém, foi preciso compreender a realidade local com as lentes novas fornecidas pelo exame. O vaivém epistemológico é propriamente dialético e deu a régua e o compasso do método de Schwarz: "Dentro de minhas possibilidades, quando chegou a hora de fazer tese e de analisar os romances de Machado de Assis, eu me havia impregnado muito desse modo de ver."
Esse modo de ver adquire direito de cidadania na viravolta machadiana; noção que fornece o fio condutor de seu livro. De uma forma ou de outra, os 17 textos lidam com aspectos variados da noção.
Consultemos o ensaio precisamente intitulado A Viravolta Machadiana, e que sintetiza dois de seus livros - Ao Vencedor as Batatas (1977) e Um Mestre na Periferia do Capitalismo (1990). No ensaio, encontra-se a definição: "Até as Memórias Póstumas de Brás Cubas - a obra da viravolta machadiana -, o romance brasileiro era narrado por um compatriota digno de aplauso (...). Já o narrador das Memórias Póstumas de Brás Cubas é (...) acintoso, parcial, intrometido, de uma inconstância absurda (...)."
Portanto, a viravolta ocorre a partir da adoção de um ponto de vista com ramificações inéditas. Nos primeiros quatro romances, por meio do tradicional narrador onisciente, Machado assumiu o ponto de vista do agregado, cujo desejo mais atrevido se limitava à cooptação por parte de um protetor rico. Já nas Memórias Póstumas, a desfaçatez do narrador, típico representante da elite pátria, elabora uma forma literária dominada pela volubilidade da voz narrativa que, pelo avesso, articula uma exposição corrosiva das desigualdades definidoras da sociedade brasileira.
Assim, o caráter sempre arbitrário e por vezes violento da narrativa em primeira pessoa do defunto autor denuncia a arbitrariedade e a violência dominantes no Brasil escravocrata. E isso em meio à defesa dos princípios do liberalismo.
A viravolta machadiana é a mais completa tradução da dissonância cognitiva aprendida no corpo a corpo com Karl Marx.
Chegamos, portanto, à noção-chave da primeira fase da obra de Roberto Schwarz. O livro traz um ensaio esclarecedor sobre o tema, Por que 'Ideias Fora do Lugar'?
De um lado, Schwarz sistematizou uma longa tradição que defendia a inadequação entre princípios estrangeiros e cotidiano nacional. Ou seja, ele produziu um mapeamento específico dessa ideologia no caso da adoção oitocentista do liberalismo numa sociedade escravocrata. Não se trata, assim, de advogar um lugar platônico para as ideias, porém de identificar a tópica articuladora do discurso hegemônico no Brasil.
De outro lado, Schwarz identificou uma deliberada volubilidade ideológica. Isto é, para consumo externo, nossa elite lança mão do discurso liberal, reivindicando sua igualdade frente aos pares europeus e norte-americanos. No entanto, para uso doméstico, a mesma elite assegura sua diferença defendendo a "necessidade" de preservar o trabalho escravo. Ora, como os públicos-alvo são diferentes, por que exigir coerência discursiva?
Jano é o símbolo dessa estratégia marota, que ainda hoje possui partidários.
Aqui, as "ideias fora do lugar" e a volubilidade estrutural se dão as mãos, esclarecendo a força do pensamento de Roberto Schwarz.
Para concluir, apontemos dois reparos para um possível diálogo.
Valeria a pena incorporar certo aspecto da crítica de Alfredo Bosi. Schwarz está certo ao sublinhar o sentido específico que atribui à noção de "ideias fora do lugar". Daí, a ressalva de Bosi sobre as incoerências do liberalismo também na Europa apenas reforça a intuição de Schwarz, pois a alta voltagem da dissonância no cenário brasileiro estimula o remate decisivo: "O dado de observação tem horizonte local, mas o horizonte último da análise é globalizador e ironiza o primeiro, que pode ironizá-lo por sua vez." Touché!
Porém, a observação de Bosi sobre a existência de correntes opostas do liberalismo no Brasil oitocentista poderia tornar o raciocínio de Schwarz mais complexo. Estudar a presença de um grupo que, antes da viravolta machadiana, tocou o dedo na ferida, assinalando a discrepância entre discurso liberal e escravidão, poderia fornecer uma fonte ainda não explorada de diálogo para o entendimento do Machado das Memórias Póstumas.
Tratemos, por fim, do ensaio mais polêmico do livro, o até agora inédito Verdade Tropical: Um Percurso do Nosso Tempo.
A fascinação de Roberto Schwarz com o livro de Caetano Veloso relaciona-se tanto ao gênero da autobiografia, quanto à possível associação do narrador de Verdade Tropical com a volubilidade de Brás Cubas.
O paralelo, contudo, é problemático, embora não deixe de ser estimulante. No caso das Memórias Póstumas, a notável análise do crítico acerca do narrador e de suas cabriolas ideológicas nunca é interrompida para que se indague severamente acerca do engajamento de Machado nas transformações da sociedade brasileira. A hipótese é absurda, pois supõe uma justaposição ingênua entre autor empírico e narrador do romance.
Já na leitura de Verdade Tropical, Schwarz parece oscilar entre o estudo do texto - que julga notável - e a avaliação do comportamento político do autor, que ele considera autoindulgente e condenável.
Há, portanto, um desequilíbrio estrutural no ensaio. O olhar do crítico é, por assim dizer, estrábico: nem sempre trata do mesmo objeto, embora escreva sobre o "mesmo" livro. O estrabismo crítico pode ser produtivo, mas somente se o analista problematizar a dualidade de sua perspectiva.
Assim, a divisão observada na escrita de Caetano também contamina o discurso do analista. Por vezes, trata-se do crítico estudando o texto com a inteligência costumeira; por vezes, trata-se do cidadão Roberto Schwarz, avaliando as posições do compositor a partir de um contraponto nunca explicitado - o de suas convicções políticas.
É como se a complacência identificada na narrativa do músico ironicamente se voltasse contra o crítico. Entende-se, então, a abertura incomum do ensaio: "De início devo dizer que não sou a pessoa mais indicada para comentar a autobiografia de Caetano Veloso, pois não tenho bom conhecimento da música nem das composições do autor. Entretanto gosto muito do livro como literatura".
O artifício é sagaz, um drible desconcertante. Ou não.
Schwarz deseja sugerir que sua leitura apenas leva em consideração o texto, uma vez que se declara pouco familiarizado com a obra do compositor. Contudo, ele revela pleno conhecimento da carreira artística de Caetano, mediado por um viés determinado da circunstância política.
Ora, por que não imaginar a escrita de um novo ensaio, no qual o crítico reconheceria que sua análise da autobiografia de Caetano também é um exercício autobiográfico?
Para um dos mais destacados críticos dialéticos da atualidade - e isso em qualquer latitude -, talvez a sugestão não seja impertinente.
*João Cezar de Castro Rocha é professor de literatura comparada da UERJ
Martinha Versus Lucrécia
Autor: Roberto Schwarz
Editora: Companhia das Letras
(320 págs., R$ 44)
FONTE: SABÁTICO/O ESTADO DE S. PAULO
Sua crítica perde valor diante do seu robusto filtro ideológico. É fácil perceber sua fixação por Marx: ali é fácil garimpar palavras comuns como capital e capitalismo. Julga ser um justiceiro que está do lado dos anjos. Só vê o comunismo como salvação do injusto mundo. Qualquer outro modo de pensar é herético, pois contraria a verdade dos porcos de George Orwel.
ResponderExcluirAcho bem interessante a colocação do Castro Rocha, da oscilação não plenamente assumida de Schwarz entre leitura do romance\ensaio e julgamento do homem público Caetano e, logo, do Tropicalismo. Tem uma tensão aí que causa um estranhamento que não é explicitado. Eu não sei bem o que pensar dele, mas é estranho, principalmente se a gente pensar que o Schwarz em nenhum momento julga o homem público Machado de Assis - e o livro de Caetano é lido como romance, como ele insiste em frisar. Acho bem justa a reivindicação do Castro Rocha: o ensaio faz uma leitura autobiográfica enviesada da própria trajetória do Schwarz, mas as diferenças ideológicas do Tropicalismo não são usadas para rever sua própria posição, quais os limites dela frente a potência (reconhecida) do outro. Quando ele poderia fazer isso, parte para o ataque da parte mais frágil, mais à direita, do Verdade Tropical, paralisando a auto-crítica.
ResponderExcluirFica parecendo, em certos momentos mais frágeis da argumentação, no geral fodida de boa, pra variar, que o que é bom no livro do Caetano é aquilo que confirma o diagnóstico que o Schwarz nos apresenta há um bom tempo. Nos termos do Wisnik, como se a força do livro estivesse na parte Capitu, mas depois Caetano se torna o Bentinho e caga tudo. Tem um certo binarismo que é mantido aí, e que eu acho que, se pode ser mantido na leitura do livro - que eu não li inteiro - para tratar da Tropicália é mais complicado, pois nesse caso a Capitu e o Bentinho estão contidos no mesmo gesto cancional (assim como boa parte da canção popular consegue conciliar "direita" e "esquerda" sem que se possa afirmar que se trata de um gesto conservador, ou neutro - o caso do Jorge Ben - ao mesmo tempo tropicalista e pré Rap - pra mim é paradigmático), e que acaba por problematizar os próprios critérios de avaliação que partem desse binarismo. Eu acho inclusive que mesmo a figura pública do Caetano, em sua parte mais à direita - que não se dissocia da parte à esquerda - tem momentos de bastante lucidez. Como quando ele propõe uma identidade mestiça e em nome dela se coloca contra as cotas: é reacionário e regressivo mas, no caso dele, tem lucidez. Não é porque ele não goste de negros, seja racista, ou não tenha pensado direito no assunto. É interessante o que ele tem a dizer, apesar de eu estar em total desacordo. É bem mais lúcido que alguns argumentos pró-cotas, apesar de ser mais conservador politicamente.
Acho que fica faltando um movimento importante - uma vez que Caetano é meio que o oposto do Machado, e reconhecido como brilhante também - que é o pólo dialético da violência contra o próprio pensamento. Reconhecer seriamente que o livro não é grande APESAR de ser conservador, mas grande JUSTAMENTE por ser conservador (aliás, Schwarz afirma isso, mas é obviamente um elogio que serve com uma mão para derrubar com a outra), o que implicaria numa revisão mais explícita do que há de "conservador" em sua posição JUSTAMENTE por ser de esquerda, ou seja, aquilo que não pode ser dito a partir dessa posição. Sem isso, é preciso dividir o Caetano em dois.
É isso aliás, que eu sinto falta em algumas ausências muito significativas na obra do Schwarz. Onde está o Guimarães Rosa, por exemplo? A Clarice? Não que o cara tenha que falar de tudo, mas esses autores não são "tudo". São caras que problematizam a ideia fixa do Roberto e são foda pra caralho também.
Acho bem interessante a colocação do Castro Rocha, da oscilação não plenamente assumida de Schwarz entre leitura do romance\ensaio e julgamento do homem público Caetano e, logo, do Tropicalismo. Tem uma tensão aí que causa um estranhamento que não é explicitado. Eu não sei bem o que pensar dele, mas é estranho, principalmente se a gente pensar que o Schwarz em nenhum momento julga o homem público Machado de Assis - e o livro de Caetano é lido como romance, como ele insiste em frisar. Acho bem justa a reivindicação do Castro Rocha: o ensaio faz uma leitura autobiográfica enviesada da própria trajetória do Schwarz, mas as diferenças ideológicas do Tropicalismo não são usadas para rever sua própria posição, quais os limites dela frente a potência (reconhecida) do outro. Quando ele poderia fazer isso, parte para o ataque da parte mais frágil, mais à direita, do Verdade Tropical, paralisando a auto-crítica.
ResponderExcluirFica parecendo, em certos momentos mais frágeis da argumentação, no geral fodida de boa, pra variar, que o que é bom no livro do Caetano é aquilo que confirma o diagnóstico que o Schwarz nos apresenta há um bom tempo. Nos termos do Wisnik, como se a força do livro estivesse na parte Capitu, mas depois Caetano se torna o Bentinho e caga tudo. Tem um certo binarismo que é mantido aí, e que eu acho que, se pode ser mantido na leitura do livro - que eu não li inteiro - para tratar da Tropicália é mais complicado, pois nesse caso a Capitu e o Bentinho estão contidos no mesmo gesto cancional (assim como boa parte da canção popular consegue conciliar "direita" e "esquerda" sem que se possa afirmar que se trata de um gesto conservador, ou neutro - o caso do Jorge Ben - ao mesmo tempo tropicalista e pré Rap - pra mim é paradigmático), e que acaba por problematizar os próprios critérios de avaliação que partem desse binarismo. Eu acho inclusive que mesmo a figura pública do Caetano, em sua parte mais à direita - que não se dissocia da parte à esquerda - tem momentos de bastante lucidez. Como quando ele propõe uma identidade mestiça e em nome dela se coloca contra as cotas: é reacionário e regressivo mas, no caso dele, tem lucidez. Não é porque ele não goste de negros, seja racista, ou não tenha pensado direito no assunto. É interessante o que ele tem a dizer, apesar de eu estar em total desacordo. É bem mais lúcido que alguns argumentos pró-cotas, apesar de ser mais conservador politicamente.
Acho que fica faltando um movimento importante - uma vez que Caetano é meio que o oposto do Machado, e reconhecido como brilhante também - que é o pólo dialético da violência contra o próprio pensamento. Reconhecer seriamente que o livro não é grande APESAR de ser conservador, mas grande JUSTAMENTE por ser conservador (aliás, Schwarz afirma isso, mas é obviamente um elogio que serve com uma mão para derrubar com a outra), o que implicaria numa revisão mais explícita do que há de "conservador" em sua posição JUSTAMENTE por ser de esquerda, ou seja, aquilo que não pode ser dito a partir dessa posição. Sem isso, é preciso dividir o Caetano em dois.
É isso aliás, que eu sinto falta em algumas ausências muito significativas na obra do Schwarz. Onde está o Guimarães Rosa, por exemplo? A Clarice? Não que o cara tenha que falar de tudo, mas esses autores não são "tudo". São caras que problematizam a ideia fixa do Roberto e são foda pra caralho também.