domingo, 1 de julho de 2012

Invasões recíprocas:: José de Souza Martins

No lançamento da candidatura do PMDB à Prefeitura de SP, política e religião se invadiram numa misturança que violou o respeito próprio de cada uma delas, afirma sociólogo

Um fantasma assombra a República desde a sua proclamação: a religião. Um outro fantasma assombra a religião desde que essa separação ocorreu: a República. De assombro em assombro, vamos recuando em relação aos valores democráticos, aqueles que asseguram as bases da consciência propriamente republicana, livre de pressupostos e constrangimentos estranhos à política. E também em relação aos valores propriamente religiosos, aqueles que pedem a paz do privado para o exercício ritual da fé, que é o âmbito da liberdade religiosa que a República assegurou. Religião deixou de ser um dever para ser um direito, livremente assumido. Essa é a diferença, que muitos não compreendem. Não ter religião já não é um defeito. Ter religião já não é, necessariamente, uma virtude.

A invasão da religião pela política partidária no último domingo, no lançamento da candidatura do PMDB à Prefeitura de São Paulo, e a recíproca invasão da política pela religião no mesmo ato, propõem um complicado problema. O candidato, versado em questões de Igreja, atrelou o ato partidário da praça ao prévio comparecimento à missa dos migrantes na Catedral, celebrada pelo arcebispo, arrastando consigo toda a cúpula de seu partido, mesmo quem não é católico. Uma misturança, o que a razão e a fé estranham em nome do respeito ao que é próprio de cada qual.

Os positivistas de 1889, já antes da Constituição de 1891, estabeleceram a separação entre o Estado e a Igreja. Na monarquia o próprio imperador nomeava os bispos e lhes pagava a côngrua, mandando prendê-los, se fosse o caso, como aconteceu na chamada Questão Religiosa. Da monarquia à República laica, foi um salto muito grande num país secularmente habituado à promiscuidade pré-moderna de política e religião. A separação do Estado em relação à Igreja, e a adoção do princípio de que o Estado não tem religião, de que o exercício da fé é livre e de que todas as religiões são toleradas, representou um imenso avanço no Brasil. A liberdade seria uma quimera se as pessoas não fossem livres para crer ou descrer e se não pudessem tomar decisões políticas, votar ou deixar de votar, em função unicamente dos ditames de sua consciência e de sua decisão racional. O eleitos representam a consciência política dos cidadãos, não a sua consciência religiosa.

O regime republicano não impediu que os brasileiros pudessem crer, que fossem católicos, protestantes ou professantes de qualquer outro credo religioso. Ou ateus e descrentes. Religião não é um atributo necessário ao bom exercício do governo. Um presidente carola, como foi Artur Bernardes, que nos jardins do Catete rezava ao anoitecer, quando o arcebispo dom Duarte lhe implorou que fizesse cessar o bombardeio da cidade de São Paulo, em 1924, que matava civis, também crianças e velhos, recusou. Mandou dizer-lhe que São Paulo era rico e poderia reconstruir sua bela capital. Nada falou sobre as vidas que motivaram o apelo. Sua religião não o fez mais humano nem o fez um estadista.

A República tampouco obrigou os brasileiros a crer nisto ou naquilo. Ou vetou o acesso de quem crê à representação política e mesmo à Presidência da República. Desde 1889, apenas dois presidentes da República foram protestantes: Café Filho, presbiteriano, e Ernesto Geisel, luterano. Todos os demais foram, ao menos nominalmente, católicos.

A decisão republicana foi boa também para a Igreja Católica e para as diferentes religiões que se difundiram no Brasil desde o Império. Com ela a Igreja se libertou da tutela do Estado, ganhou completa liberdade para ser plenamente igreja, sem sofrer interferências nas questões propriamente religiosas. O que a República proclamou é que, assim como o Estado não se mete nos assuntos da Igreja e das religiões, as religiões e a Igreja não se metem nos assuntos do Estado.

Infelizmente, estamos num progressivo recuo em relação a esse princípio fundante do nosso regime republicano. O neopopulismo brasileiro descobriu nas igrejas e nas religiões um verdadeiro curral de votos cativos, de gente crédula e dócil ao apelo eleitoreiro em suposto nome da fé. Não só os evangélicos têm sido assediados e não raro seduzidos pelas cantadas partidárias, mas também os católicos têm tido uma disponibilidade para a sedução que não é pequena. Já nas campanhas de Lula e do PT o uso abusivo do templo e até do púlpito não mereceu reparos.

Tudo seria compreensível num país atrasado como o Brasil, não fosse o avanço da ousadia não mais sobre as greis religiosas, mas agora também sobre o sagrado. Se as igrejas pretendiam afirmar sua identidade religiosa no plano político, mostrando força perante os candidatos e caíram na tentação do voto de cabresto, não se deram conta de que havia um preço a pagar. E o preço maior não era o voto, era a sutil invasão do sagrado pela política e pela politicagem. Foi isso que aconteceu na Sé e em sua praça no começo da última semana, o ato partidário praticado como ato pós-eucarístico, uma violação da essência do sagrado.

José de Souza Martins, sociólogo, professor emérito da USP, é autor de A política do Brasil Lúmpen, Místico (Contexto, 2011)

FONTE: ALIÁS / O ESTADO DE S. PAULO

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