sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Ulysses: até o fim, lição de política


Duas décadas sem Ulysses. 

Nos seus últimos dias de vida, o homem que liderou a oposição na ditadura se preocupava com o apetite do PMDB por mais cargos e alertava contra a corrupção

Luiza Damé, Isabel Braga e Cristiane Jungblut

BRASÍLIA "A corrupção é o cupim da República". A frase era repetida à exaustão pelo deputado Ulysses Guimarães, que desapareceu há exatos 20 anos num acidente de helicóptero no mar de Angra dos Reis. Doutor Ulysses, como era chamado, dedicou o último dia da sua vida, embora estivesse em momento de lazer com a esposa, Mora, e amigos, ao que sempre gostou de fazer na vida: política. Articulou até as últimas horas a formação do governo Itamar Franco, que acabara de assumir a Presidência após o impeachment de Fernando Collor. Na costura do novo governo, prometeu que se empenharia para conter o ímpeto do PMDB por cargos e o orçamento que vem embutido nesse pedido, já sabendo que essa era a principal moeda de troca nas relações dos partidos com o Executivo. Segundo amigos, ele já desconfiava das negociatas no submundo do Congresso, que levaram ao escândalo dos anões do Orçamento em 1993 e, atualmente, o mensalão.

- Ele, às vezes, comentava com alguns amigos, antes de estourar o escândalo dos anões: "Olha, ninguém discute mais o Brasil, só discutem orçamento. As pessoas estão mudando o padrão de vida, as pessoas só falam em comprar e vender apartamento, ninguém fala mais em Brasil, não se discute mais Brasil" - recorda-se o ex-deputado e ex-senador Heráclito Fortes, amigo próximo.

Sobre o "homem austero que ficava chocado com ostentação", Heráclito conta outro episódio que o marcou. Estavam em Nova York, perto do Central Park, e Ulysses quis comer um cachorro-quente, daquelas de rua. Um deputado, numa limusine branca, os viu e convidou Ulysses para dar uma volta.

- Ulysses reagiu: "Sai daqui com esse carro, não vou me expor a um ridículo desses". Depois que o deputado foi embora, ele comentou comigo: "Vê como são as coisas. Esse deputado não tinha condições disso há dois anos e agora está aqui, com essa limusine, tem algo estranho, deve custar uma fortuna" - contou Heráclito.

Até seu desaparecimento, Ulysses participou dos principais acontecimentos da História recente do Brasil. Liderou a resistência à ditadura militar, defendeu a anistia, comandou o movimento Diretas Já, presidiu a Assembleia Nacional Constituinte e disputou a primeira eleição direta para presidente após o regime militar, em 1989.

Saiu massacrado do pleito, com 5% dos votos, ficando em sétimo lugar. Humilhado, quase não conseguiu se reeleger deputado federal, em 1990, e passou por um período apagado. Só voltou à cena política na CPI do PC, em 1992, que resultou no impeachment de Collor.
- Ele era a solução sempre. Quando a situação ficava muito complicada, íamos ouvir o Ulysses - afirma o deputado Miro Teixeira (PDT-RJ).

Para Ulysses, o mar era "silêncio e paz"

O hoje senador Luiz Henrique (PMDB-SC) relembrou recentemente, em artigo, um episódio já conhecido do amigo: escreveu que, em 8 de outubro de 1992, Ulysses o chamou para ir a seu gabinete. Henrique levou de presente uma coleção de gravações da Orquestra de Glenn Miller, feitas durante a Segunda Guerra Mundial. Ao receber o presente, Ulysses afirmou: "Homem feliz, esse Glenn Miller. Teve uma vida de sucesso. Desapareceu no mar. O mar é silêncio e paz! Quando eu morrer, se me botarem num caixão, pode dizer que ali vai um homem contrariado!".

- O diálogo era a arma dele. Só tinha uma arma: a palavra dele. Não tinha poder, não era governador, era um presidente de partido. No meu combate do impeachment, ele me orientou várias vezes- diz o senador Pedro Simon (PMDB-RS).

O ex-ministro Nelson Jobim, que foi o braço-direito de Ulysses na elaboração da Constituição de 1988, resume como ele atuava na Constituinte:

- O doutor Ulysses não se atirava em aventuras, não era de rompantes. Os rompantes eram todos preparados.

Mozart Viana, que por anos acompanhou os trabalhos no plenário da Câmara, até hoje se emociona ao lembrar a chuva de papel picado e a imagem de Ulysses levantando, na última sessão, o texto da "Constituição cidadã":

- Ele era hábil, negociador. Na época tinha que enfrentar dois homens duros, Mário Covas, do lado da centro-esquerda, e Ricardo Fiúza (líder do PFL, que comandava o chamado Centrão). Precisava de um algodão no meio de cristais, para garantir que a Constituição fosse feita. Esse foi doutor Ulysses.

Até hoje, lugar reservado no Piantella

Como lembrança do amigo com o qual teve uma relação de pai e filho, o empresário e dono do restaurante Piantella, Marco Aurélio Garcia, mantém a mesa em que Ulysses reuniu amigos e políticos para traçar estratégias e relaxar - era a famosa "Turma do Poire". O hábito começou em 1976, quando Ulysses foi pela primeira vez ao restaurante e durou até 1992, pouco antes do acidente.

O mineiro Marco Aurélio lembra uma das lições que aprendeu com Ulysses: ou se é político ou empresário - para não se confundir o público com o privado. Por isso, nunca tentou a política. Ele não lamenta o fato de o corpo nunca ter sido encontrado:

- Fico bem assim (sem encontrar o corpo). Se achassem, muitos que o traíram quando foi candidato à Presidência, iriam querer pegar nas alças do caixão, fazer discurso.

A mesa foi mantida no andar de cima do restaurante, onde funciona hoje a adega. Além de um quadro com imagem de Ulysses sorrindo, há outros com lições de política e um painel com fotos, charges e reportagens. A mesa serve, até hoje, como local reservado para conversas.

Fonte: O Globo

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