segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

“O Brasil é uma vasta comilança” - Wilson Figueiredo

“Ninguém quer saber de discutir, ninguém quer agitar idéias”, queixava-se Lima Barreto, por intermédio do seu personagem Policarpo Quaresma, quando a República ainda estava na moldura do sonho de que passaria a limpo os costumes políticos que sobrecarregaram a monarquia e deixaram a desejar muito mais do que faltava ao Brasil no crepúsculo do Século 19.

“Todos querem é comer”, concluía Policarpo, para usar genericamente um verbo que tem significados variados mas uma única maneira de conjugar, com aplicação variada. O Triste fim de Policarpo Quaresma vocalizou com mão de mestre a decepção com a República que derrapava no encilhamento financeiro e na frustração das promessas à maneira possível à época. A simbiose entre interesse público e interesse privado dava o que comentar, o ano inteiro, na vida diária dos cidadãos.  A senha de Lima Barreto: “O Brasil é uma vasta comilança”.

O triste fim de Policarpo foi uma paródia que garantiu o futuro do seu autor em termos literários, mas não incrementou o gênero de tratar, com a mesma qualidade e em forma de ficção, a realidade política nacional. Nem limpou os costumes.  O produto literário bruto da República deixa a desejar, tanto quanto o saldo insuficiente dos períodos constitucionais e ditaduras que não dizem a que chegam e se vão sem prestar contas do que deixaram de fazer. E do resto.

O áspero sabor de paródia garantiu o sucesso do livro que manteve, com ironia e pessimismo, o sucesso do autor por todas as Repúblicas que se sucederam e sucumbiram aos mesmos sintomas enquanto o tempo transcorria. A primeira República, pretendida a dos sonhos, durou mais que todas as que se seguiram, e deixaram saldo negativo em literatura de compromisso político, que vem a ser a maneira suportável de reconhecer as verdades e conviver com as inverdades.

Pelo resultado ou, melhor, pela falta de saldo (para não dizer tudo), das sucessivas formas de governo que alternaram períodos constitucionais e ditaduras ao longo do século 20, o remédio para as crises que espreitavam a democracia, no gargalo das sucessões presidenciais, passou a ser, bem depois do que se comenta,  a reeleição que os fundadores da primeira república abominavam. Bateram o pé e não a deixaram entrar. Mais adiante, Fernando Henrique, no paraíso da utopia social-democrata, sem considerar as conseqüências, mordeu a maçã que uma serpente lhe ofereceu, saiu da história e assina ponto como ex-presidente. O resto também é conversa fiada.

“Todos querem é comer”, explode em veemência e indignação o personagem por intermédio do qual seu criador, Lima Barreto, diz o que pensa e o leitor concorda com a resignação de quem paga a conta por falta de alternativa. O verbo comer acolheu na atual república as significações que ampliaram sua presença na vida social. Em jogo de futebol, diz-se que o goleiro come frango (quando deixa a bola passar por falha ou desatenção). A fome endêmica de leis não explica mas deixa muito subentendido na flexibilidade do verbo. 


Já não há intervalo na faina das empresas do florescente ramo de negócios que o poder público administra ou se associa. Nem se percebem nuances nas diferentes aplicações do verbo, para não ter que usá-los na contabilidade oficial. Pelo jeito, o enriquecimento por fora dos mandatos e funções públicas, vai acabar mesmo  figurando nos cálculos do Produto Interno Bruto.

A questão não está posta, mas vai postar-se em breve, com o potencial que, no passado, levaria a uma crise, mas já aponta na direção do futuro que não tem tempo a perder e não pode voltar atrás. Nem dar passos maiores do que as pernas. No desabafo político de Lima Barreto, pulsa com ênfase de indignação cívica o toque de classe média veemente que, desde a propaganda republicana, desenvolveu lenta e crescente presença política.

O resto que falta está a caminho. O pedágio passa a ser pago na sucessão presidencial que começa com dois candidatos  do mesmo partido e da mesma procedência oficial  mas um prosseguirá e outro ficará pelo caminho no espaço legal disponível. A questão (Dilma ou Lula?) lateja nos bastidores, virá a público e trará conseqüências, estas sim, imprevisíveis e inevitáveis.

Fonte: Jornal do Brasil

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