“Ninguém
quer saber de discutir, ninguém quer agitar idéias”, queixava-se Lima Barreto, por
intermédio do seu personagem Policarpo Quaresma, quando a República ainda
estava na moldura do sonho de que passaria a limpo os costumes políticos que sobrecarregaram
a monarquia e deixaram a desejar muito mais do que faltava ao Brasil no
crepúsculo do Século 19.
“Todos
querem é comer”, concluía Policarpo, para usar genericamente um verbo que tem significados
variados mas uma única maneira de conjugar, com aplicação variada. O Triste fim
de Policarpo Quaresma vocalizou com mão de mestre a decepção com a República
que derrapava no encilhamento financeiro e na frustração das promessas à maneira
possível à época. A simbiose entre interesse público e interesse privado dava o
que comentar, o ano inteiro, na vida diária dos cidadãos. A senha de Lima Barreto: “O Brasil é uma vasta
comilança”.
O
triste fim de Policarpo foi uma paródia que garantiu o futuro do seu autor em
termos literários, mas não incrementou o gênero de tratar, com a mesma
qualidade e em forma de ficção, a realidade política nacional. Nem limpou os
costumes. O produto literário bruto da
República deixa a desejar, tanto quanto o saldo insuficiente dos períodos constitucionais
e ditaduras que não dizem a que chegam e se vão sem prestar contas do que
deixaram de fazer. E do resto.
O
áspero sabor de paródia garantiu o sucesso do livro que manteve, com ironia e
pessimismo, o sucesso do autor por todas as Repúblicas que se sucederam e
sucumbiram aos mesmos sintomas enquanto o tempo transcorria. A primeira
República, pretendida a dos sonhos, durou mais que todas as que se seguiram, e
deixaram saldo negativo em literatura de compromisso político, que vem a ser a
maneira suportável de reconhecer as verdades e conviver com as inverdades.
Pelo
resultado ou, melhor, pela falta de saldo (para não dizer tudo), das sucessivas
formas de governo que alternaram períodos constitucionais e ditaduras ao longo
do século 20, o remédio para as crises que espreitavam a democracia, no gargalo
das sucessões presidenciais, passou a ser, bem depois do que se comenta, a reeleição que os fundadores da primeira
república abominavam. Bateram o pé e não a deixaram entrar. Mais adiante,
Fernando Henrique, no paraíso da utopia social-democrata, sem considerar as
conseqüências, mordeu a maçã que uma serpente lhe ofereceu, saiu da história e
assina ponto como ex-presidente. O resto também é conversa fiada.
“Todos
querem é comer”, explode em veemência e indignação o personagem por intermédio
do qual seu criador, Lima Barreto, diz o que pensa e o leitor concorda com a
resignação de quem paga a conta por falta de alternativa. O verbo comer acolheu
na atual república as significações que ampliaram sua presença na vida social.
Em jogo de futebol, diz-se que o goleiro come frango (quando deixa a bola
passar por falha ou desatenção). A fome endêmica de leis não explica mas deixa muito
subentendido na flexibilidade do verbo.
Já
não há intervalo na faina das empresas do florescente ramo de negócios que o
poder público administra ou se associa. Nem se percebem nuances nas diferentes
aplicações do verbo, para não ter que usá-los na contabilidade oficial. Pelo jeito,
o enriquecimento por fora dos mandatos e funções públicas, vai acabar mesmo figurando nos cálculos do Produto Interno
Bruto.
A
questão não está posta, mas vai postar-se em breve, com o potencial que, no
passado, levaria a uma crise, mas já aponta na direção do futuro que não tem tempo
a perder e não pode voltar atrás. Nem dar passos maiores do que as pernas. No
desabafo político de Lima Barreto, pulsa com ênfase de indignação cívica o
toque de classe média veemente que, desde a propaganda republicana, desenvolveu
lenta e crescente presença política.
O
resto que falta está a caminho. O pedágio passa a ser pago na sucessão
presidencial que começa com dois candidatos
do mesmo partido e da mesma procedência oficial mas um prosseguirá e outro ficará pelo caminho
no espaço legal disponível. A questão (Dilma ou Lula?) lateja nos bastidores, virá
a público e trará conseqüências, estas sim, imprevisíveis e inevitáveis.
Fonte:
Jornal do Brasil
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