quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Obituário/O Arquiteto do Brasil: Oscar Niemeyer

Ícone brasileiro e mundial da arquitetura, inventor de uma nova forma de lidar com o concreto armado que revolucionou a concepção urbana, defensor da luta contra os excessos da razão, morreu às 21h55m de ontem, a dez dias de completar 105 anos, Oscar Niemeyer. Criador de Brasília, visitada por estudiosos e amantes da arte e do urbanismo, deixou sua marca em várias cidades do mundo ao longo do século XX. Fiel a suas ideias, foi um árduo porta-voz do comunismo, mesmo após a queda do Muro.

Aos 104, o arquiteto do Brasil

Muito além de ter sido o homem que projetou Brasília, Oscar Niemeyer tornou-se um ícone mundial da invenção e da luta contra os excessos da razão na construção do mundo

Arnaldo Bloch

Oscar Niemeyer era conhecido mais habitualmente como o ho­mem que fez Brasília, e sua figu­ra, por isso, ficou para sempre muito mais identificada com a capital que projetou (e o transformou num dos íco­nes mundiais do século que ele viveu e transpôs), do que com a cidade onde nasceu e morou a maior parte da vida. Mas o carioca de Laranjeiras, nascido em 1907 era, em essência, um homem do Rio: descontadas suas andanças profissionais pelo mundo — que foram muitas —, viveu até seus últimos dias na cidade, e espelhou, em grande me­dida, em sua obra, a filiação e a fideli­dade cariocas.

Atestam-no as curvas que o arquiteto recolheu das linhas litorâneas e dos tra­ços femininos, transferindo-as para a moldagem do concreto, o material es­colhido para fazer a sua revolução esté­tica dentro da arquitetura.

É comum reconhecer, na leveza de suas estruturas e na elegância das for­mas que legou, o espírito da cidade, a musicalidade de sua fala, e ao mesmo tempo a sua grandeza, os seus horizon­tes, a generosidade da natureza.

Mas o "poeta do concreto" — como era frequentemente chamado — her­dou também do Rio a consciência de pertencer a um universo de contrastes onde impera a injustiça social e de que esse estado de coisas é uma constante universal: algo deve ser feito para mu­dá-lo, sendo essa ação o foco prioritá­rio de todo homem justo.

Tal princípio acabou por levá-lo ao engajamento político e à filiação ao Partido Comunista Brasileiro (que dei­xou no dia em que concluiu que a le­genda afastara-se das bases do marxismo-leninismo).

O pessimista que amava a vida

Embora essa postura tenha lhe custado críticas, além de inevitáveis choques com as forças da repressão no período da ditadura militar, ele se manteve fiel a ela no correr da sua longa vida, mesmo depois da derrocada do regime na URSS e da queda do Muro de Berlim. Um dos últimos comunistas inexorá­veis do Brasil, portanto, Niemeyer, ci- garrilha cubana em punho, debatia até a exaustão, cada vez que era questiona­do, temas espinhosos como as arbitra­riedades de Stálin, relativizando a visão ocidental do líder russo, o que levava à loucura muitos de seus convivas.

Mas, apesar do aparente sectarismo, Niemeyer era um homem aberto a to­das as opiniões e visões, de maneira que, ao final de uma boa conversa com ele, o interlocutor saía com a sensação de ter conhecido, acima de qualquer coisa, um humanista, amante da liber­dade, da pluralidade, do entendimento e da moderação na busca de soluções.

Homem que, ao descrever os proces­sos de seu ofício, desdenhava da técni­ca e preferia mencionar a leitura de obras literarias e de filosofia co mo ali­cerces mais importantes que a própria formação. "Minha lição para a arquite­tura é ler romance, poesia, ficcão, Si- menon, e nada de livro técnico. A maioria dos meus projetos é resolvida pelo texto, Ler filósofos como Heidegger que dizia: a razão é inimiga da imaginação" defendia o arquiteto, que mantinha, semanalmente, em seu escritório em Co­pacabana, grupos de estudo sobre filosofia e astronomia. Para ele, só o co­nhecimento de humanidades possibili­tava um verdadeiro crescimento pessoal e profissional.

Nesta linha, abria-se um vão para os paradoxos de Niemeyer, ura pessimista que nunca perdia a esperança num mundo melhor, esclarecendo, com conhecirnento de causa, que o pessímlsmo, ao contrário do niiiismo, não exciui o prazer e a alegria de viver. Um ho­mem que, de estatura baixa, de aparên­cia frágil revelava-se monumental em sua personalidade e carisma, e que, mesmo na velhice, punha-se de pé di­ante da prancheta. Um ateu decidido, capaz de traduzir a presença divina na força da luz dentro de uma catedral, e que acreditava na natureza como unia força maior, Um comunista que gostava de futebol (chegou a jogar como ata­cante pelo Fluminense), torcia pelo Brasil, comprava pacotes de pay-per- view e tinha na sensualidade feminina fonte de inspiração. Um homem cuja mente ia da razâo e da lógica ao mais desvairado voo poético, e que fugiu das imposições da funcionalidade radical e das linhas retas, e construiu um novo-mundo de estruturas e formas. Um ar­quiteto que, apesar de ter dedicado sua vida ao trabalho e conquistado sucesso inquestionável (dele, André Malraux dizia ser "o maior arquiteto da Terra e, das colunas do Palácio Alvorada, que eram Ho elemento arquitetônico mais importante desde as colunas gregas"); relativizava o peso dos louros da profis­são, dizendo, de várias formas, como variações sobre um mesmo tema: "Im­portante não é a arquitetura. Importan­te é a vida. A arquitetura não pode mu­dar a vida. Só a vida é que pode mudar a arquitetura. No dia em que o mundo for mais justo, a arquitetura vai mudar, e será mais simples, como o mundo. Enquanto isso não acontecer, a gente vai fazendo o que é possível, embele­zando as coisas, tentando surpreender, espantar, chamar a atenção para algo".

Entretanto, Niemeyer, sempre que encontrou uma brecha, procurou um caminho que permitisse convergênci­as entre a preocupação estética e a fun­ção social que tanto o preocupava. São exemplos os projetos do Sambódromo e dos Cieps (no caso, enquadrados num programa político de educação pública de Darcy Ribeiro e Leonel Brizola). Mais recentemente, um conjunto de prédios em Duque de Caxias, no Es­tado do Rio, com pórticos, biblioteca e teatro, foi projetado com a intenção de "aplicar" uma sofisticação de Zona Sul a um município onde a pobreza é do­minante, "Partir do princípio de que a arquitetura dos pobrés tem que ser ne­cessariamente pobre num ambiente de contrastes é uma forma de discriminá-los, de não sinalizar para a mudança" disse, sobre o projeto, o arquiteto que projetou uma casa para o próprio motorista, morador da Rocinha.

A inquietação de Niemeyer com o aspecto social criou, em outras obras su­as, um universo simbólico forte que aparece de maneira controversa em trabalhos como o Memorial JK, em Brasília (que contém alusão à foice e ao martelo, símbolo comunista) e na mão aberta de concreto sobre a qual escorre sangue, no Memorial da América Lati­na, em São Paulo, que remete ao sofri­mento dos povos da região.

O medo e a coragem de voar alto

Morador um dia da exuberante Casa das Canoas, em São Conrado, e, até hoje, de um apartamento de Ipanema, Ni­emeyer nunca gostou de sair do Rio de Janeiro e, como Tom Jobim, tinha me­do de avião. Viajava, sempre que podia, de automóvel, e percorria distâncias intercontinentais de navio, até render-se à praticidade das aeronaves. Mas o mestre das formas acabou se tornando um viajante consumado, por dever do ofício, pelas solicitações do mundo, tendo espraiado parte de suas mais de 500 obras e outra sentenas de projetos por países como França, Itália, Portu­gal, Argélia e Israel.

Apesar do indiscutível reconheci­mento internacional, Niemeyer era cri­ticado por uma forte corrente, que o acusava de negligenciar a funcionalida­de do espaço interno da obra em bene­fício de preocupações estéticas. O mes­tre defendia-se, dizendo que tinha em conta um conjunto de fatores que começava com a vocação e cada terreno, passava pelas necessidades de quem vai habitar o prédio (a função da luz na Catedral de Brasília é um exemplo) e terminava na necessidade de se desta­car, de chamar a atenção, e de transfor­mar. Em relação à casa que construiu para si na Estrada das Canoas, por exemplo, Walter Gropius disse que era muito bonita mas não multiplicável. Niemeyer respondeu: "Como tornar multiplicável uma casa que se adapta tão bem às inclinações irregulares do terreno, a uma situação única, que não pode ser encontrada em outro lugar?" O enigma, irrespondível, é expressão clara do gênio de um grande mestre.

Oscar Niemeyer morreu às 21h55m de ontem, a dez dias de completar 105 anos, de infecção respiratória, no Hos­pital Samaritano, no Rio de Janeiro. O velório será realizado hoje no Palácio do Planalto. O corpo do arquiteto vol­tará ao Rio, para ser velado também no Palácio da Cidade, amanhã.

Fonte: O Globo

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