O cientista social diz que as instituições democráticas saíram vitoriosas no
julgamento do mensalão e que agora é preciso fortalecê-las com uma reforma
política
Guilherme Evelin
O CARIOCA LUIZ WERNECK VIANNA, DE 74 ANOS, É UM DOS PRINCIPAIS CIENTISTAS
SOCIAIS DO Brasil. Muitos de seus livros, como Liberalismo e sindicato no
Brasil, escrito na década de 1970, são considerados referência na área. Por 30
anos, foi professor do extinto Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de
Janeiro (luperj). Atualmente, é pesquisador na Pontifícia Universidade Católica
(PUC) do Rio de Janeiro, onde coordena o Centro de Estudos Direito e Sociedade
e se dedica a questões como a influência do Judiciário na politiza À carreira
acadêmica, Werneck somou a militância política no antigo Partido Comunista
Brasileiro. Durante o regime militar, foi preso, torturado e viveu no exílio.
Um dos principais estudiosos no Brasil das ideias do filósofo comunista italiano
Antonio Gramsci, considera-se um "marxista sem partido". Nessa
condição, deu esta entrevista a ÉPOCA.
ÉPOCA - Como o senhor avalia o resultado do julgamento do mensalão pelo STF?
Quais serão as consequências para a vida política nacional?
Luiz Werneck Vianna - Estamos diante da mutação de uma República de fachada,
existente na retórica oficial, para uma República verdadeira. Para que essa
mudança se efetive, é preciso haver ainda mudanças institucionais por meio de
uma reforma política de envergadura. Fsse julgamento é um seminário aberto, com
a audiência de milhões, que demonstra à sociedade que as práticas que são
objeto da Ação Penal 470 são constitutivas do sistema político brasileiro.
ÉPOCA - Qual deveria ser essa reforma política?
Werneck - Ela terá de interferir no sistema eleitoral, na vida partidária,
criar um financiamento público de campanha. Outras mudanças necessárias são o
fim das coligações nas eleições proporcionais e a introdução de mecanismos que
protejam o sistema partidário dessa invasão de pequenas siglas não
representativas que ganham lugar no espaço público, que deveria ser reservado
a partidos com expressividade eleitoral. Qual tem sido a finalidade dessas
pequenas siglas? Elas funcionam inteiramente a margem dos cidadãos, ajudam a
compor maiorias governamentais e servem unicamente aos interesses de reprodução
eleitoral de seus dirigentes.
ÉPOCA - A adoção da cláusula de desempenho pode ser um mecanismo para
impedir essa proliferação de partidos?
Werneck - Depende Não deve haver interdição para que se organizem partidos
novos, porque nossa sociedade e plural, e essa pluralidade tem de ser
respeitada. Mas e preciso ter critério e mecanismos de filtro para que os
partidos novos alcancem as verbas do fundo partidário. Ter 30 partidos abre o
sistema político brasileiro à irracionalidade. Hoie, no Brasil, vivemos, em
política, sob o imperativo do pensamento do laissez-faire. Há uma ideia de
deixar tudo como se encontra, que o sistema se acertaria com o tempo por meio
de um processo vegetativo. Essa perspectiva panglossiana de uma depuração
natural não está acontecendo nem acontecerá. É preciso aprofundar a
regulamentação do sistema político para torná-lo mais representativo.
ÉPOCA- O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso escreveu que o julgamento é
um sinal da formação de uma cidadania no Brasil, algo de que o país sempre foi
carente. Dá para ser otimista assim?
Werneck- É precoce afirmar isso. Estamos diante de um novo começo, que pode
ser traduzido como uma refundação da República. Hoje, em política no Brasil,
vale tudo no sentido de reproduzir as legendas, vale tudo na conquista do voto.
O poder da administração intervém. O poder econômico intervém, às vezes um
mancomunado com o outro. Fala- se de caixa dois como se isso fosse parte da
normalidade. Caixa dois, disse a ministra Cármen Lúcia, é crime. É essa a
patologia em que vivemos. Vamos imaginar que mudaremos isso de baixo para cima,
apenas com o esforço e a vontade virtuosa dos cidadãos? Não! A vontade virtuosa
dos cidadãos é certamente muito importante, mas o decisivo é a organização da
vida republicana. Neste julgamento, assiste-se sim a uma reação das
instituições republicanas, como o Ministério Público. E não existe República
sem boas instituições.
ÉPOCA- Em artigo, o senhor afirmou que a sociedade assiste passivamente a
esse julgamento. É isso mesmo? Por que isso ocorre?
Werneck- A sociedade tem sido conduzida a isso. Nossa marca tem sido a
modernização sem o moderno. Vivemos vários surtos de modernização, mas sempre
resultantes de processos verticais, em que uma vontade, como que encarnando o
interesse de todos, desaba sobre a sociedade, abrindo os caminhos por onde ela
tem de ir. Você teve o ciclo de Vargas, o ciclo de Juscelino, o ciclo do regime
militar e agora o do Lula. É uma sociedade que vive sua modernização sob o
signo da prevalência do Estado, da tutela, da assistência. A sociedade não se
auto-organiza. Minha esperança é que esse julgamento seja um marco no sentido
de que o moderno finalmente encontre sua passagem.
ÉPOCA- Um ex-colega seu de luperj, o cientista político Wanderley Guilherme
dos Santos, defendeu a tese, reproduzida pelos petistas, de " que esse é
um julgamento de exceção. Como o senhor vê essa tese?
Werneck- Não concordo. Esse não é um julgamento de exceção. Ele está sendo
realizado no foro devido, com o respeito ao devido processo legal, de acordo
com as leis do país. Apuram- se delitos comuns praticados por políticos e
entidades políticas, capitulados no Código Penal, e não numa lei de exceção.
ÉPOCA- Os petistas também dizem que o Supremo só julgou dessa forma por
pressão da imprensa. Falam também em golpe das "elites conservadoras"
e fazem uma analogia com Getúlio Vargas.
Wemeck- Essa fórmula foi usada em 2005. Usá-la agora é a reiteração de um
argumento cediço. Além do mais, não há Getúlio algum nem UDN. A oposição
brasileira é melancólica. Houve uma mudança muito importante neste país na hora
da transição democrática, com a convocação de uma Assembleia Constituinte, o
processo de discussão e a Constituição que resultou dela. Essa Constituição tem
uma marca forte de orientação para a vida republicana. Foi ela que botou o
Ministério Público na posição de tribuno da República, em que ele aí está. Foi
ela que começou a institucionalizar mecanismos severos de controle do Poder
Executivo. Esse Judiciário é filho disso. A Cármen Lúcia, o Celso de Mello, o
Gilmar Mendes são todos cultores da Carta de 1988, republicana até a medula, e
se acham guardiães dela. Postos na posição de ministros do Supremo, eles se
acharam na obrigação de defender uma República que foi objeto de atentados. O
sumo é isso. É uma questão de valores. A sociedade brasileira foi para essa
direção? Ainda não! Poderá ir? Espero que sim. Está indo, vagarosamente, mas
está indo, sinalizada pela Carta e por essas novas instituições. Trata-se de um
projeto de sociedade formulado lá atrás, depois de uma luta gigantesca do nosso
povo contra o regime militar e em favor da convocação de uma Assembleia
Nacional Constituinte. É preciso pôr as questões nesse diapasão, e não no
mesquinho filtro eleitoral.
ÉPOCA- O senhor é um homem de posições de esquerda. Como vê esse discurso de
ex-companheiros?
Werneck - É muito difícil para quem tem identidade partidária forte admitir
os erros de seu próprio partido. A esquerda tem larga tradição em situações
desse tipo. A esquerda levou décadas e décadas sem querer reconhecer as
perversões do stalinismo. Mas vida que segue. Erro é erro. E, nesse caso, é
erro capitulado no Código Penal. Acho admissível que as pessoas queiram defender
suas identidades e suas legendas. O que não podem fazer com as baionetas, como
dizia Napoleão, é sentar em cima delas.
ÉPOCA- O senhor se preocupa com a judicialização da política...
Werneck - A judicialização da política ocorre quando o Judiciário chama a si
políticas públicas, intervém em questões substantivas, pensando nas
consequências. Esse julgamento nada tem a ver com judicialização. É um processo
criminal, em que as questões examinadas são afetas ao Direito Penal.
ÉPOCA- Mas o julgamento, da forma como está ocorrendo, sob os holofotes das
TVs, não contribui para acentuar essa judicialização da politica, transformando
cada vez mais os juizes em protagonistas da cena pública?
Werneck - Não há uma demanda generalizada por transparência? Se o julgamento
fosse realizado a portas fechadas, não se estaria reclamando disso? Além disso,
há casos que comovem a opinião pública. Nos Estados Unidos, o julgamento do
jogador de futebol americano O.J. Simpson também dominou a opinião pública
durante um tempão.
ÉPOCA - Quais serão as consequências desse julgamento para o PT e para o
ex-presidente Lula?
Werneck- O PT continuará como um partido forte, provavelmente hegemônico.
Imagino que ele será palco agora de um processo forte de discussões internas.
Não é verdade que o PT seja um partido monolítico. Nenhum partido moderno pode
ser dirigido por uma liderança que seja entendida como dotada de poderes
mágicos e celestiais, como a Marta Suplicy fez com o Lula, chamando-o de Deus.
Um partido democrático não convive bem com isso. Há novas lideranças emergindo
no PT que não têm nada a ver com isso.
ÉPOCA- Esse julgamento é uma nódoa que ficará na biografia do Lula?
Werneck - Essas coisas não são assim. O Getúlio mais que flertou com os
nazistas. Depois, passou-se uma água e sabão nisso, e essa marca sumiu. Foi
eleito presidente da República em 1950, com o apoio da esmagadora maioria da
população.
ÉPOCA - O senhor disse que o julgamento poderá significar a plenitude da
investidura de Dilma Rousseff no cargo de presidente, sua independência em
relação a Lula.
Werneck - Essa será a questão de fundo nos próximos meses. Terminada a
sucessão municipal, está aberta a sucessão presidencial. Qual será o candidato
da situação? Dilma ou Lula? Não diria que essa questão esteja fechada. Para um
grupo petista, especialmente o paulista, a volta de Lula é um elemento
fundamental para sua sobrevivência. Essa facção, que é muito poderosa,
pressionará para que Lula seja o candidato a presidente da República. Se a
Dilma quiser ser candidata à reeleição, terá de se colocar. Não se trata de ser
infiel ou romper, mas de definir sua liderança, inclusive em termos
partidários. Ela tem de ser forte no partido, e ela não é. Ela tem de ser
consagrada pelo PT. A não ser que o Lula, mais uma vez, abdique da candidatura
e peça ao PT que sufrague publicamente o nome dela. Agora, quem, hoje, em sã
consciência, sem ter informações de intimidade, pode dizer que Lula não será
candidato a presidente da República?
Fonte: Revista Época