sábado, 21 de junho de 2014

Serra relata sua dupla aflição nos golpes do Brasil e do Chile

• Presidente da UNE em 1964, o ex-governador lança autobiografia na terça

• O tucano conta detalhes das dificuldades que viveu em 13 anos de exílio e analisa eventos políticos do período

Ricardo Mendonça – Folha de S. Paulo

SÃO PAULO - "Agora mesmo, ao escrever isso, sinto-me mal", afirma José Serra, entre os parágrafos em que descreve os angustiantes momentos que viveu entre os dias 1º e 2 de abril de 1964, aos 22 anos.

Presidente da UNE (União Nacional dos Estudantes) que convocou o povo à resistência contra o golpe, ele estava escondido na Baixada Fluminense, na casa de um deputado que, "por motivos alheios à política", diz, "era uma verdadeira fortaleza, com grandes portões à prova de bala".

Poucas horas antes, um corre-corre desesperado por informações, a visão de tanques nas ruas, a notícia de que João Goulart, saindo "à francesa" da Presidência, havia desautorizado qualquer tentativa de resistência. E a voz de Brizola, no rádio, fazendo uma conclamação à luta aos... "sargentos de Bagé".

O depoimento faz parte de "Cinquenta Anos Esta Noite", uma autobiografia de período selecionado (1963-1977) que o ex-governador lançará terça (24), em São Paulo.

O relato é valioso porque Serra estava mesmo numa posição extremamente delicada e central. Numa época em que a UNE tinha um peso político muito maior, é quase um milagre que seu líder, agitador da socialista cristã AP (Ação Popular), tenha sobrevivido.

Uma sobrevivência ao custo de 13 anos de "duplo exílio" (do Brasil, no Chile, e depois do Chile, nos EUA), meses trancado em embaixadas a espera de salvo-conduto (a da Bolívia no Brasil e, anos depois, a da Itália no Chile), desaparecimento de amigos, sacrifícios de familiares.

Bem escrita e contextualizada, a obra vale também pelas interessantes interpretações dos eventos do Brasil de 1963-64 e do Chile de 1973, onde, flashback, passou por similar tenebrosa experiência com o golpe de Pinochet.

No livro, Serra também discorre longamente sobre sua formação acadêmica. Sem dar pistas de estar brincando, diz que optou pela economia para conseguir "compreender questões como as levantadas por Brizola" naquela época.

É simpático ao citar traços de sua folclórica personalidade. Ele se define como alguém "precavido" com a saúde, "termo correto para um hipocondríaco sensato", explica.

Mas infantil quando cai na tentação da propaganda eleitoral. O leitor estranhará divagações sobre uso de cigarros na UNE em 63. Logo adiante, Serra aproveita a deixa para lembrar que, ministro e governador, anos depois, ajudou a inibir o tabaco no país.

A biografia perde também quando o autor parece querer provar que possui uma infalível capacidade de antevisão.

Serra diz que em 1963 já não acreditava no dispositivo militar de Jango, o que, todos viram depois, era mesmo inexistente. Diz ter percebido antes que o governador Magalhães Pinto (MG) havia aderido ao golpe. Diz ainda que não apostava em saída negociada para a crise ou luta armada, no que estava certo.

Enquanto muitos perguntavam quem daria o golpe no Brasil, o noviço Serra já estava convencido até da semana aproximada da cilada da direita. E depois, no Chile, também antevia o golpe local.

Uma versão abreviada do primeiro capítulo foi publicada em março pela Folha. A outra melhor parte, sobre o golpe no Chile, é uma reprodução de um artigo de 2003, também na Folha, com o título "Trinta anos esta noite".

Nisso, Serra tem sido pouco original. "Trinta anos esta noite" é o nome de um filme francês de 1963 e ainda do livro de Paulo Francis sobre 64.

Cinquenta anos esta noite
Autor José Serra
Editora Record
Quanto R$ 35 (266 págs.)

Trechos
A entrada na cidade do Rio, numa Kombi, foi o grande pesadelo diurno, infelizmente inesquecível. Olhos ardendo pela falta de sono, sol, calor, ruas barulhentas, gente comemorando o golpe com buzinaços, a multidão caminhando naquela réplica da Marcha da Família com Deus, marcada para 2 de abril, e que se transformou na festa da derrubada de Jango. Mais tarde, pela televisão, assistimos à comemoração, animada por locutores eufóricos e cretinos, e vimos a massa celebrando o golpe "democrático".

Aquela noite fria de inverno paulistano foi especialmente infeliz. Revi meus pais, avós e tios num restaurante acanhado, feio e mal-iluminado, de comida insossa. Eram pessoas simples, marcadas pela imigração. Viviam para o trabalho e a família [...] Não compreendiam por que eu deveria deixar o Brasil às pressas, entre fugido e expulso.

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