quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Alberto Aggio: A democracia e suas crises

- O Estado de S. Paulo

"Vocês não me representam!" Dentre todas as frases consagradas pelas ruas nas já históricas jornadas de junho de 2013, essa talvez tenha sido a que mais ficou registrada na memória coletiva como expressão do rechaço ao sistema político e aos seus representantes. Em meio à multidão, a frase sintetizava a crise de representação que, dentre outras coisas, atualizava mais uma vez o Brasil em relação ao mundo, em simultaneidade com eventos similares que marcavam ruas e praças na Europa e nos Estados Unidos. Crise substancial, mas de delicado equacionamento fora dos ditames do realismo político, aquele brado foi perdendo impacto e, como um eco, permaneceu latente até o atual processo eleitoral. Aqueles que não se sentiam representados ainda continuaram a emitir sinais no sentido de encontrar seus representantes ou, então, uma nova forma de representação, codificada pela noção de democracia direta e concebida invariavelmente em substituição à democracia representativa.

As multidões que ocuparam as ruas naquele junho pareciam buscar uma via de passagem para um "represamento", já então angustiante. A ira e o ódio contra os políticos e seus partidos explodiram do fundo da alma. Contudo, em meio ao turbilhão, as multidões não invocaram o desejo nem imprimiram uma prática que visasse a pôr abaixo a democracia fundada na Carta de 1988. Essa manteria sua legitimidade intocada, revelando que a ameaça que pairava sobre a ordem constitucional estava sendo urdida bem longe das ruas. Como "um grito parado no ar", a frase não apontava nem mesmo insinuava um caminho para mudanças que depois viriam a ser objeto das mais extravagantes proposições.

Nas manifestações, um tanto ingenuamente, e, de maneira ardilosa, nas respostas sugeridas desde as alturas do poder, pareceu haver a expectativa de que se pudesse solucionar nossa manifesta crise de representação a partir de um lance acrobático, decretando-se institucionalmente a criação de "espaços" de participação que dali em diante cumpririam o papel de "verdadeiros representantes" do povo que foi à rua, cindindo o conjunto da cidadania brasileira. Combinada com a proposição de uma "Constituinte específica", cuja intenção declarada seria a realização da reforma política, a pulverização de "conselhos" representativos dos movimentos sociais em todos os órgãos da administração pública deu o tom de nonsense às respostas governamentais que viram ou quiseram ver as jornadas de junho e sua plural vocalização de descontentamento como um acontecimento unidimensional. À impropriedade adicionaram-se a impressão de oportunismo político-eleitoral e uma inquietante preocupação com propósitos obscuros que poderiam emergir num futuro relativamente breve. Tudo isso redundou em perda de confiança da opinião pública em relação às duas proposições e em distanciamento até mesmo daqueles que haviam abraçado o movimento espontâneo e difuso que havia brotado do chão das ruas.

Se por crise se deve entender a perda de critério que orienta a normatividade de nossas condutas, a que emerge atualmente nas democracias contemporâneas, inclusive na brasileira, é uma crise específica, e não uma crise orgânica ou histórica que estaria a demandar a construção de um novo Estado, como nos ensinou Gramsci. As jornadas de junho e o que se seguiu expressaram uma crise específica de legitimação dos mecanismos do sistema político, uma crise na democracia, e não uma crise da democracia. Guardada a particularidade das experiências históricas, a democracia brasileira pode ser considerada "tão democrática" quanto as outras democracias hodiernamente em vigência.

Formalmente, a consigna "democratização da democracia", evocada de maneira mais organizada pelos manifestantes, expressaria um diagnóstico similar. Outro significado guardaria a mobilização da noção de democracia direta, que se fundamenta numa hipersimplificação do político, um ilusionismo que visa a traduzir o ato de governo como algo simples e direto, sem delegação, no qual o envolvimento dos cidadãos com a coisa pública seria contínuo e permanente.

Argumenta-se a total compatibilidade da democracia direta com a revolução digital em curso. Esquece-se, contudo, que a fórmula da representação na política foi criada, com sucesso, para superar a dicotomia entre a democracia dos antigos (de ênfase pública) e a dos modernos (na qual se introduzem dimensões do mundo privado). Esquece-se também que, hoje, a democracia não se exaure nas eleições e se tornou uma realidade política complexa, composta de arenas participativas e de novos fluxos comunicacionais que ampliam, condicionam e estabelecem a vigilância entre representados e representantes. Não há mais, por assim dizer, uma democracia liberal tout court, apartada das tensões e crises próprias à de um laboratório conceitual e prático do presente em que se transformou a experiência democrática contemporânea.

Tateando, o Brasil também construiu essa democracia dos contemporâneos. Entretanto, os últimos anos de "presidencialismo de coalizão" acumularam práticas paralisantes que bloquearam uma relação livre e produtiva entre o Estado e movimentos autônomos nascidos da sociedade. O resultado tem sido o pouco enriquecimento da cultura cívica entre nós e, com ele, a diminuição de nossa capacidade, como sociedade, de nos envolvermos seriamente nas questões atinentes à engenharia das instituições e à renovação da relação povo-poder.

Depois das jornadas de junho de 2013, o desafio da representação ainda está colocado e todos os atores políticos estão convocados a encontrar, com realismo, os termos de uma reforma do sistema político que supere a crise e consiga recompor a confiança do País em continuar vivenciando e ampliando a política da democracia.

*Alberto Aggio é historiador e professor titular da Unesp-Franca

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