quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Zuenir Ventura - O escritor e o fim do muro

• O ex-dirigente soviético Mikhail Gorbachev disse há dias que “o mundo está à beira de uma nova Guerra Fria”. Deus nos livre

- O Globo

Talvez só os amigos tenham identificado o ilustre desconhecido que a tevê brasileira flagrou ajudando a derrubar literalmente o Muro de Berlim há 25 anos, até porque ele se diverte lembrando que deu ao repórter um nome falso. Romancista famoso aqui pelos livros e pelo costume de não conceder entrevistas e nem posar para fotografias, o nosso personagem estava morando como bolsista em Berlim Ocidental, e um dia, ao saber que, no lado oriental, um professor universitário de literatura em língua portuguesa era impedido pelo governo comunista de receber nossos livros pelo correio, resolveu fazer contrabando. “Como era inverno no dia em que levei a primeira remessa, vesti um largo casacão e enfiei os livros em torno da barriga e das costas”, contou mais tarde na crônica “Reminiscências de Berlim”, do livro “O romance morreu”. Vocês, claro, já sabem que o contrabandista não era ninguém menos que nosso Rubem Fonseca, que voltou àquela capital outras vezes.

“Na noite de quinta-feira, 9 de novembro, eu estava trabalhando no meu apartamento quando ouvi ruídos de gritos e buzinas na rua. Passava das 21 horas. (...) No dia seguinte, quando a população do leste da cidade teve certeza de que a abertura era para valer, um milhão de pessoas, segundo cálculo feito por um jornal, invadiu Berlim Ocidental”. O nosso grande escritor defende a tese de que “quem derrubou o muro foi a televisão”, pois sempre que visitava alguém de Berlim leste, notava o aparelho ligado em programas de entrevistas políticas e música pop, o que o levou a concluir também que “o rock talvez tenha tido mais influência na queda do muro do que a literatura”.

Vale a pena ler ou reler hoje o que foram esses dias de euforia e agitação febril na visão privilegiada dessa testemunha ocular do fim de uma era que não deixa saudades. O chamado Muro da Vergonha, além de separar literalmente amigos, família e uma nação, dividiu simbolicamente o mundo, tornando-o bipolar e alvo da disputa das duas superpotências da época, os EUA e a URSS. A primeira defendia a democracia e a liberdade, mas apoiava os regimes militares do Brasil, Argentina e Chile. A segunda pregava o socialismo e a justiça social, mas era governada por um tirânico partido único que reservava para si os privilégios que negava ao povo.

O Muro de Berlim foi derrubado em 1989, mas a cultura da Guerra Fria deixou uma herança maldita cujos resíduos ainda se fazem notar no mundo atual, inclusive no Brasil: sectarismo, maniqueísmo, intolerância e a crença de que o mal está sempre do lado oposto e que o bem e a razão são exclusividade nossa.

O ex-dirigente soviético Mikhail Gorbachev disse há dias que “o mundo está à beira de uma nova Guerra Fria”. Deus nos livre.

Zuenir Ventura é jornalista

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