sábado, 17 de janeiro de 2015

O bom rebelde a casa torna

Isabel Junqueira - piauí, janeiro 

No início de 2014, Daniel Cohn-Bendit recebeu uma ligação inesperada. A Universidade de Nanterre queria que o então deputado europeu de 69 anos voltasse a sua alma mater para figurar na nova leva de doutores honoris causa da instituição. O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, a socióloga Elizabeth Jelin, o historiador tunisiano Habib Kazdaghli e a filósofa e ativista política americana Angela Davis seriam seus companheiros de canudo. A cerimônia foi marcada para o final do ano.

Assim de chofre, era um pouco como se Lênin fosse chamado ao Palácio de Inverno pelos Romanov para receber a Medalha do Pacificador. Durante sua passagem meteórica por esse campus nos arredores de Paris, entre o outono de 1966 e a primavera de 1968, Cohn-Bendit nunca saiu da lista negra de Pierre Grappin, reitor da faculdade de letras.

O estudante de sociologia ousava chamar os professores de tu em vez do formal vous. Do fundo dos anfiteatros, que ele rebatizara de Che Guevara, Castro e Giap, não hesitava em perturbar as aulas, anunciando sua opinião sem ter sido chamado. Com seus colegas anarquistas, organizava conferências para discutir métodos de contracepção e os escritos do psicanalista austríaco Wilhelm Reich, teórico do sexo odara.

Em janeiro de 1966, o presidente De Gaulle encomendara a seu ministro da Juventude e dos Esportes, François Missoffe, um dossiê sobre a situação dos jovens. O general intuía que um mal-estar difuso grassava entre os crescidos no pós-guerra e queria compreender a razão. Missoffe saiu a campo e voltou com um documento alentado no qual se lia que “o jovem francês pensa em se casar cedo”.

Em 8 de janeiro de 1968, Missoffe foi a Nanterre inaugurar uma piscina. Já partia quando foi abordado por um ruivo mais para o gordinho que lhe pediu fogo. Ia pegar o isqueiro quando ouviu: “Li o seu dossiê. São 600 páginas de inépcias. Vocês nem sequer tocam na questão sexual dos jovens.” “Se o senhor tem problemas nesse setor”, devolveu o ministro perplexo, “sugiro que dê três mergulhos na piscina.” A tréplica entraria para a história: “É exatamente esse tipo de resposta que se obtém de um regime fascista.”

Foi o diálogo que pôs em marcha a engrenagem do Maio francês. Numa França hierárquica e conservadora, em que mulheres não podiam abrir contas bancárias sem autorização do marido e estudantes do sexo masculino eram proibidos de frequentar os dormitórios femininos, bastou uma resposta tão impertinente quanto afiada para que o ruivo de 22 anos anunciasse a entrada em cena de Dany Le Rouge, o mais brilhante líder da revolta estudantil que dali a pouco incendiaria Paris.

De cabelo em pé, Grappin tentou expulsá-lo da universidade, usando, entre outros argumentos, sua nacionalidade alemã (nascido na França, Cohn-Bendit optara pela nacionalidade dos pais, refugiados judeus alemães), mas foi forçado a recuar diante da reação da estudantada. Dany Le Rouge não terminaria nem aquele nem mais nenhum outro ano letivo: em vez disso, cairia na militância política e viraria persona non grata no território francês durante a década seguinte. (Registre-se que ao menos um de seus professores lhe daria uma boa nota em 1968: Fernando Henrique Cardoso.)

Na tarde gélida do dia 11 de dezembro, Daniel Cohn-Bendit voltou a Nanterre para receber seu diploma. Em 1998, última vez em que esteve por lá, um grupo de alunos anarquistas recebeu o deputado europeu – aposentado em abril do ano passado – com duas tortas de chantilly na cara. “Ele traiu a causa”, alegou um dos jovens, insatisfeito com a evolução política do ex-amante da revolução, que, como parlamentar eleito pelo Partido Verde, rompera com a esquerda radical.

Dessa vez tudo correu bem. Os antigos cabelos vermelhos agora entre tons de amarelo, cinza e branco, Cohn-Bendit perambulou pelo campus, que, na sua época, correspondia a um terço do atual e ainda era cercado de favelas. Não reconheceu muita coisa, mas teve um flashback durante o almoço com os outros homenageados. O rancho aconteceu numasala administrativa no 8º andar do prédio B, o mesmo edifício que Cohn-Bendit e 141 alunos ocuparam em março de 1968, em protesto contra a detenção de seis estudantes que haviam depredado uma loja da American Express. O episódio da ocupação é considerado o prólogo dos eventos de maio.

Às 15 horas em ponto, hora marcada para a cerimônia, Cohn-Bendit e os outros laureados entraram no teatro Bernard-Marie Koltès, todos devidamente togados. Diferentemente dos colegas de honraria, impecáveis todos, o antigo enragé deixou seu traje desabotoado e caído sobre os ombros, numa sutil displicência que lhe dava um ar de boxeador a caminho do ringue.

Depois de louvores vários e discursos dos quatro primeiros homenageados, chegou a hora de Cohn-Bendit. Pela tradição, Jean-François Balaudé, atual presidente de Nanterre, se limitaria à abertura e à conclusão da cerimônia. Naquela tarde, ele abriu uma exceção. Respirou fundo e, com um ar solene, se dirigiu até o púlpito para proferir o que denominou de seu “elogio paradoxal”, uma apresentação do “mais célebre e importante contestador que nossa universidade já conheceu”.

Antes de esmiuçar a biografia do dito-cujo, o orador afirmou em alto e bom som que a universidade não só admirava mas também compartilhava os seus valores. Sentado no centro do palco, Cohn-Bendit escutava com olhar perdido e a mão cobrindo a boca. Não conseguiu esconder o sorriso quando o reitor repetiu alguns dos slogans da geração de 68, como o famoso “gozar sem entraves”. “A tarefa dele não era fácil”, reconheceria o laureado mais tarde. “Achei bem inteligente.”

Quando foi sua vez de falar, Cohn-Bendit não posou de herói nem fez o elogio nostálgico de 1968. Antes começou com um pedido de desculpas por uma injustiça que lhe entalava a garganta havia décadas: “Se é verdade que coisas extraordinárias aconteceram aqui em 1968, é preciso também lamentar certas palavras pronunciadas. No calor da ação, o decano da época, Pierre Grappin, antigo membro da Resistência francesa, foi tratado de nazista. Ele não compreendeu nada do nosso movimento, mas tratá-lo de nazista é não saber o que eram os nazistas.” Disse isso e chorou.

Falando de improviso, Cohn-Bendit deu mostras do orador estupendo que mesmerizou a França. Exaltou-se (“A única utopia que vale a pena hoje em dia são os Estados Unidos da Europa”), recusou todo dogmatismo (“Em 1968, eu acuso, eu ataco, mas eu estendo a mão”), fez uma crítica afetuosa de Maio (“Destruímos o antigo, mas não soubemos articular o novo”) e terminou dedicando o seu título a um jovem ambientalista morto pela polícia francesa e ao jogador Sócrates, falecido em 2011, de quem era amigo desde 1984. Foi o único a ser interrompido por aplausos.

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