quarta-feira, 18 de março de 2015

Elio Gaspari - Doutora, ouça o Carvalhosa

• Dilma admitiu corrigir erros, se ler o livro do advogado, verá que sua lei anticorrupção é ‘para inglês ver’

- O Globo

O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, disse que a Lei Anticorrupção sancionada pela doutora Dilma há 19 meses ainda não foi regulamentada porque exige delicadas compatibilizações. Tudo bem, isso dá trabalho, mas a Constituição de 1988 fez seu serviço em 20 meses. Durante a Constituinte os parlamentares fizeram 19 mil intervenções. É difícil acreditar que regulamentar uma lei pega-ladrão dê mais trabalho que redigir uma Constituição. O comissário Miguel Rossetto certamente achará que cabe ao povo esperar que os guias geniais de sua vanguarda trabalhem em paz pela construção de uma nova sociedade mais justa (se ele der um trato no cabelo antes de ir a uma entrevista coletiva, a aliança operário-camponesa agradecerá).

Felizmente, tendo ouvido o ronco da rua, a doutora Dilma disse que está pronta para reconhecer erros cometidos pelo governo e fez isso numa entrevista em que mostrou inédito desembaraço. Poderia fazer mais. O advogado Modesto Carvalhosa acaba de publicar um livro (“Considerações sobre a Lei Anticorrupção de Pessoas Jurídicas”) com uma triste conclusão: ela é produto da “malfadada cultura de legislar para dissimular, ‘para inglês ver’”.

Carvalhosa diz e prova: o artigo 8º da lei diz que, havendo uma denúncia, caberá à “autoridade máxima de cada órgão” tratar do assunto, nomeando uma comissão formada por dois servidores. Tudo o que eles precisam é ser “estáveis”. Em suma: surgida a denúncia de roubos na Refinaria Abreu e Lima, o comissário Sérgio Gabrielli nomeia os doutores Pedro Barusco e Renato Duque para cuidar do caso. Seria muito mais lógico e eficaz colocar a Controladoria-Geral da União no lance desde a primeira hora (em São Paulo, numa construção radical desse mesmo ralo, vigora um decreto pelo qual pode-se recorrer da decisão dos Baruscos e Duques. Recorrer a quem? Ao prefeito que os nomeou).

Como a lei é para inglês ver, o seu artigo 9º diz que competirá à CGU a “apuração, o processo e o julgamento” quando as ladroagens forem praticadas “contra a administração pública estrangeira”. Ou seja, se estiverem roubando dinheiro da Petrobras, Barusco e Duque investigarão, cabendo à CGU apenas “competência concorrente”. Se estiverem roubando do companheiro Teodoro Obiang, da Guiné Equatorial, a CGU entrará logo em cena, apurando, processando e julgando, sem Baruscos nem Duques.

Se a doutora Dilma der uma lida no final do livro de Carvalhosa, poderá achar pelo menos mais dez aberrações na lei que sancionou. Algumas são espertas, outras são produto da inépcia, até da preguiça. Quando trata dos cartéis, a lei praticamente copia dispositivos da legislação do Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Coisas semelhantes não são iguais. O Cade mira na proteção do mercado; uma lei contra a corrupção deveria mirar na defesa da bolsa da Viúva. Num caso, (inciso III do artigo 16) a simples cópia de um dispositivo de leis americanas chega a ser constrangedora. Diz que a empresa acusada deve comparecer “sob suas expensas, sempre que solicitada, a todos os atos processuais”. Isso é coisa de americano. No Brasil ninguém cuidou do táxi de alguém que é chamado a depor num processo.
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Elio Gaspari é jornalista

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