domingo, 29 de março de 2015

Luiz Carlos Azedo - Dançarinos de gafieira

• A crise política que estamos vivendo é consequência de uma incrível sucessão de erros da presidente Dilma Rousseff. Não há possibilidade de saída sem grandes acertos

Correio Braziliense

Filósofo de verdade, Francisco Bosco costuma tirar lições de vida das coisas banais. É um interprete do cotidiano —, das “banalogias”, uma palavra que inventou para intitular um de seus livros de ensaios. Escreve, por exemplo, sobre a gafieira, cujo repertório de passos não é brincadeira: facão, puladinho, gancho, cruzado, peão, balanço, chapéu, pica-pau, raspada, tesoura, bêbado, bicicleta, enceradeira, cadeirinha, tirada, picadinho, floreado, roleta, cavalcante, pescaria, elástico, chicote, parafuso, desmaiada.

Para ele, a ética da gafieira é uma espécie de marco civilizatório, sem a qual todo baile degeneraria em grande confusão, pois as mulheres desacompanhadas são respeitadas e na malandragem reinam a elegância e a picardia. Por isso mesmo, quando a ética é desrespeitada, a coisa fica feia. A grande sutileza da gafieira é a dança que acontece entre eles, não são os passos. O segredo do grande dançarino é aproveitar o erro, criar algo novo a partir dele, como uma espécie de Thelonious Monk: “diz no pé” o que o grande pianista negro fazia com as mãos.

Autor dos standards Epistrophy, Round midnight, Blue monk, Straight no chaser e Well, you needn't, Monk era dono de um estilo único e se destacava pelo improviso. Certa vez uma repórter lhe indagou: “E quando você erra a nota?”A resposta foi antológica: “Não existe nota errada, tudo depende da nota que vem depois”. Assim é o craque da dança de salão. Na gafieira, filosofa Bosco, o erro é a origem do verdadeiro acerto, sua condição.

Se a gafieira é espaço do erro, o lugar onde ele perde o sentido negativo e ganha positividade, na grande política a dialética não é muito diferente. Também é feita de erros, jamais do medo de errar. Mas ele precisa ser sucedido por grandes acertos. O medo de errar paralisa o dançarino, inibe seus passos. Só é superado pela capacidade de aproveitar o imprevisto para acertar. Bosco chama isso de “conquista do erro”, a liberdade de desestruturar os passos, desorganizar suas sequências rígidas; a liberdade de saber que há varias possibilidades de dança, que qualquer movimento abre-se para diversos caminhos.

A dama solitária
A crise política que estamos vivendo é consequência de uma incrível sucessão de erros da presidente Dilma Rousseff. Não há possibilidade de saída sem grandes acertos — em dois sentidos: no estrito, é fazer o que se deve com eficiência e firmeza; no amplo, figurado, a construção de grandes acordos e consensos. Ocorre que o Palácio do Planalto optou pelo dissenso. Quando se espera uma saída pela via da ampliação política, o que acontece é o contrário. Frustram-se a sociedade e a própria base do governo. Como houve uma mudança de correlação de forças, na qual a maioria da população deriva à oposição, trata-se de uma rota batida para o impasse.

Na gafeira, a circulação dos dançarinos segue o sentido anti-horário, como se quisessem que o tempo andasse mais devagar do que o relógio. Para não atrapalhar, os inexperientes vão para o meio do salão. Quando o baile enche, as coisas ficam mais confusas. Lembra o nosso filósofo, aparecem os que “andam pelo acostamento, avançam o sinal, não gostam de ser ultrapassados.” É mais ou menos o que está acontecendo na política brasileira.

Como futebol, compara Bosco, a dança de gafieira é uma arte do engano. Cabe ao cavalheiro enganar a dama, ao mesmo tempo em que ele cria condições — pela condução, que é um fundamento importantíssimo — de a dama não se deixar enganar, antes acompanhar o cavalheiro nessa arte de criar um corpo sobre o terreno movediço do engano. “Dama e cavalheiro andam, ou melhor, dançam na corda bamba do engano: os dois à altura do engano — é essa a exigência ética fundamental da gafieira.”

Eclética, a música de gafieira vai do samba-canção ao tango, do xote ao jazz. Dança-se de tudo, mas cada dançarino tem sua predileção. Nesta crise, a presidente Dilma Rousseff está como uma dama solitária, que toda hora é convidada para dançar. O vice-presidente Michel Temer e os presidentes da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), e do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), são os donos do salão. Há duas possibilidades: ou Dilma aceita o desafio e faz o puladinho e o cruzado, o picadinho e a roleta, a cadeirinha e o floreado, e dá um couro nos dançarinos, ou pega a bolsa e vai para casa.

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