domingo, 3 de maio de 2015

Luiz Werneck Vianna - As marcas de origem e a crise atual

- O Estado de S. Paulo

Marcas de origem, nos indivíduos e nos países, influenciam, para o bem ou para o mal, suas trajetórias futuras, sustentava Tocqueville em A Democracia na América, ao identificar na paixão pelo princípio da igualdade dos pioneiros que colonizaram seu território as razões dos êxitos da sociedade que elegera como objeto de estudo. Gramsci, em suas notas sobre a formação tardia e mal resolvida do Estado italiano, foi buscar na função internacional que coube à Itália como sede da Igreja e depositária do Sagrado Império Romano as origens dos males que afligiam seus contemporâneos. Para ele, a consequência negativa dessa posição cosmopolita teria sido a de a Itália ter estagnado numa fase "econômico-corporativa" sem conhecer uma força "jacobina" que em outras nações operou no sentido de fundar os Estados modernos em torno de uma vontade nacional-popular.

Entre nós, o tema das origens da nacionalidade foi enfrentado por Euclides da Cunha no ensaio Da Independência à República, quando a caracterizou como um caso singular, projeto de minorias eruditas que, num processo de longa duração, buscariam realizar, "em meio às trevas do meio", a teoria política do liberalismo do legislador constituinte de 1823. Aqui, ao contrário da América, que teria nascido a partir das instituições do self-government, a nação deveria surgir pela ação de seus homens de Estado inspirados naquela teoria sobre um "povo disperso".

A civilização, a que estávamos "condenados" - frase famosa desse autor -, nos viria pela ação pedagógica das elites, escorada pelo Direito e suas instituições, a fim de debelar a barbárie dos sertões, submeter à sua ordem os potentados clânicos do hinterland e interditar os riscos do caudilhismo que assolariam os países vizinhos. O ideal normativo do Estado imperial de criar uma nação orientada pelas luzes da civilização, objeto de elogio do republicano Euclides, contava com um problema: ele tinha uma cabeça grande, mas seus braços eram curtos, na expressão do visconde de Uruguai.

Em a Construção da Ordem, de José Murilo de Carvalho, estuda-se a estratégia da política imperial de avizinhar essa cabeça - por meio da ação dos magistrados nomeados pelo poder central - da periferia e dos remotos rincões do Brasil, fazendo daqueles funcionários um instrumento da sua missão civilizatória. Com isso nossa marca de origem, na qualificação de Euclides, teria encontrado sua forma de reprodução nas longas décadas do Segundo Reinado.

As lutas pela descentralização política, que nos vinha de longe, ao lado da afirmação da dimensão dos interesses, especialmente com os êxitos da cafeicultura paulista, nos trouxeram a República e, com ela, uma nova paisagem social e novos repertórios, como os relacionados ao mundo do trabalho e à questão social. A intensa movimentação, em particular nos anos 1920, dos novos seres sociais nascidos dessas transformações esteve na raiz da Revolução de 30, que precipitou inovações institucionais no sentido de incorporar ao sistema da ordem temas e sujeitos emergentes, como os do empresariado industrial e os do sindicalismo operário.

Entre essas inovações, a criação da Justiça do Trabalho e da Justiça Eleitoral, que puseram sob a jurisdição do Direito e de suas instituições o cerne de uma sociedade que se modernizava. Ambas fizeram fortuna e tanto sindicatos como partidos políticos não podem mais fazer sua história sem elas, presentes capilarmente na vida social. Ainda sob o diagnóstico, mesmo que velado, da imaturidade da sociedade para resolver seus conflitos - marca sob a qual viemos ao mundo -, a Carta Magna de 1988 ampliou, por meio de várias inovações, a presença do Direito e de suas instituições na nossa vida política e social, expurgando heranças autoritárias como as que afetavam o sindicalismo.

No caso brasileiro, o programa do notável jurista italiano Mauro Cappelletti de elevar o Judiciário à posição de um "Terceiro Gigante", formulada nos anos 1970, já é obra realizada, como testemunham estes últimos anos de julgamento da Ação Penal 470 e do processo que, hoje, investiga os casos de corrupção de agentes públicos e partidos políticos, na chamada Operação Lava Jato. Na cena política, o proscênio encontra-se ocupado pelo Judiciário, que, ao julgar crimes cometidos contra a República, expõe mazelas do poder público e de partidos políticos diante de um Poder Legislativo acuado e sem forças de reação na opinião pública.

Magistrados e promotores públicos, estes últimos deslocados pela Carta de 88 das funções de defesa do Estado para a da sociedade - figura institucional sem paralelo no Direito Comparado -, estão por toda parte, corporações que não param de crescer numa sociedade destituída de outros meios para resolver seus conflitos que não o Judiciário. Na política, na demarcação de terras indígenas, na questão ambiental, na família - com ironia, fala-se em ménage à trois: o marido, a mulher e o juiz - não há dimensão da vida social que escape da sua intervenção.

Até políticos e personalidades eminentes da nossa vida pública, inseguros quanto ao Poder Legislativo, se têm voltado para o Judiciário em busca de soluções para impasses crônicos, como em manifestações recentes de alguns a fim de que ele intervenha, pelas vias judiciais, em favor de uma reforma política ou que decida extrair o consumo de drogas da esfera criminal.

De fato, não há do que nos envergonharmos quanto às nossas marcas de origem, reinterpretadas no tempo da democratização do País pelo constituinte de 1988 com as instituições que nos deixou, às quais cabe agora exercer um importante papel saneador na vida republicana. Mas a sociedade tem de tomar o destino em suas mãos, que não lhe virá dos tribunais e de suas leituras hermenêuticas nem de elites ilustradas, como na nossa tradição. A crise atual é a sua oportunidade.

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Sociólogo, PUC-Rio

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