domingo, 3 de maio de 2015

Marco Aurélio Nogueira - Violência em manifestações é fato complexo, causa indignação e pede reflexão

- O Estado de S. Paulo

Há coisas que não casam com democracia e não podem ser toleradas, nem sequer de leve. Uma delas é a violência em protestos e manifestações.

As cenas dos confrontos entre manifestantes e policiais em São Paulo e Curitiba provocaram horror e preocupação. Foram atos de professores, categoria respeitada pelos brasileiros e uma das mais sacrificadas no mundo do trabalho. Suas demandas e expectativas são justíssimas e ganham expressividade quando confrontadas com o estado geral da educação no País: nosso atraso, a falta de boas políticas e de coordenação governamental, a má formação dos alunos, tudo termina por convergir de modo dramático para as condições de trabalho e remuneração dos protagonistas principais do sistema, os professores.

Foram muitos os que reagiram com indignação contra os excessos da repressão, empreendida por policiais armados, com viseiras, escudos, gás lacrimogênio, cassetetes e cachorros. Fizeram muito bem. O que se viu desonra a democracia e as lutas sociais. Os mais engajados responsabilizaram diretamente o governador paranaense, Beto Richa, pelo “massacre dos professores”, não poupando também o governador paulista pela adoção de uma política de “dizimação” da categoria docente.

Não houve quem não se manifestasse. Entre as vozes, inúmeras e eloquentes, que pediram justiça e punição aos repressores, também foram ouvidas palavras de sensatez. A presidente Dilma veio a público repudiar a violência nos protestos em nome do “respeito às diferenças de opinião”, conclamando todos a compreenderem que “para construir consenso e evitar a violência, o único caminho existente é o caminho do diálogo”. De modo ainda mais claro, o ministro da Educação, Renato Janine Ribeiro, num vídeo institucional do MEC, pediu o fim do conflito nas ruas e a valorização plena do diálogo, mostrando-se disposto a empreender esforços de conciliação para que se alcancem soluções para o conflito. “Educação não se constrói com violência” e nela o diálogo é valor supremo, acrescentou Janine.

Ambos foram criticados nas redes, numa demonstração clara de como estão exacerbados os ânimos.
É uma espécie de lei universal: as pessoas querem falar de seus problemas e protestar, e os governos não querem ouvi-las e nem querem que sejam ouvidas. Daí para o excesso, o arbítrio e a violência é um passo, que a cada dia parece ser dado com maior rapidez. Incomodado, o poder age e busca desqualificar os que o desafiam. Tanto faz se são de esquerda ou direita, progressistas ou conservadores. Os manifestantes sobem o tom, vocalizam demandas que quase nunca podem ser atendidas. Provocadores surgem de todos os cantos e de ambas as partes. Heróis e vítimas também.
Cenário perfeito para confrontos improdutivos e cenas de horror.

O pior da violência em protestos é que ela não costuma ter uma única fonte geradora, um único culpado. Repressores profissionais são treinados (ou deveriam ser) para agir com discernimento perante massas de manifestantes. Nem sempre agem assim e muitas vezes invadem o terreno do arbítrio. Mas não é correto, em termos de análise do quadro e de seus efeitos, apontar o dedo unilateralmente para a polícia e as “forças da ordem”, especialmente quando se vê que não são poucos os manifestantes que se mostram como estando de fato “fora de controle” ou organizados à parte, como afluentes que se desviam dos rios principais. Não é confortável dizer isso, mas infelizmente é o que se vê.

Em manifestações de massa, ação e reação andam juntos, abraçadas, alimentam-se reciprocamente.

Manifestantes violentos ou destemperados, querendo ou não, funcionam como “agentes provocadores”. Provocar a violência do outro é em certos casos norma de conduta política: programa de ação. O importante não é chegar à conquista da reivindicação, mas manter a temperatura alta e provocar estragos. Se alguns inocentes caem pelo caminho, recebem balas indevidas ou terminam presos, fala-se em efeitos colaterais. Há algo assim também no lado dos “agentes da ordem”, entre os quais estão sempre acampados alguns amantes da violência, que sentem prazer em bater e veem o outro (o manifestante) como inimigo a ser esmagado e desmoralizado.

Não se trata, em nenhum destes casos, de pessoas que “perdem a cabeça” ou se movem pela paixão que cega, pela indignação que não se contém, pela exacerbação ou pelo calor do momento. Costumam ser organizadas, funcionam no paralelo e quase sempre escapam do controle dos núcleos organizados que, em tese, deveriam coordenar a ação e a reação. O comandante que lamenta o ato insano de seu comandado corresponde ao sindicalista que vai ao microfone, em pânico, pedir calma e “ordem” aos que resolveram partir para o confronto. Agentes provocadores deste tipo, de resto, não costumam respeitar posicionamentos partidários ou comandos. Não são de esquerda, nem vítimas inocentes.

Seu problema é com o poder, seja de que coloração for. Pagam tributo ao anarquismo mal compreendido. Em nada contribuem para o sucesso das causas ou para a conscientização da sociedade.

Ao lado destes “agentes provocadores”, há também os que procuram extrair vantagens políticas da violência. Culpam-se governos conforme a postura partidária que se tem diante deles: o Executivo do partido adversário — aquele que se julga como antagônico aos interesses dos agentes — é tratado invariavelmente como um Nosferatu de plantão, sempre disposto a maltratar manifestantes inocentes ou a abandonar os leais servidores da força policial. Se o governador ou o prefeito, ao contrário, são do “lado bom”, transfere-se a culpa aos manifestantes. O eixo é um só: criar embaraços e dificuldades aos governantes tidos como adversários políticos ou ideológicos.

Hoje, no Brasil, a bipolaridade PT x PSDB não dá conta da complexidade nacional. Está esgotada. Mas petistas e tucanos, com seus respectivos aliados, não sabem viver sem ela: perdem o discurso e a base lógica de raciocínio. Precisam uns dos outros como inimigos xifópagos. Nada mais natural, por isso, que terminem por tentar manter viva a bipolaridade, valendo-se de recursos artificiais e manobras de botequim.

Uns falam em impeachment como se se tratasse de algo banal, não necessitado de fatos e procedimentos, como se fosse mero ato de vontade. Outros veem retrocesso e maldade social em toda política esboçada pelo adversário. Uns e outros convertem a violência em expediente de culpabilização e “criminalização”. Dedicam-se, sem distinção, a tratar os adversários como antagonistas soltos no ar, não vinculados a circunstâncias concretas que os obrigam a fazer escolhas dilemáticas, entidades que somente erram e prejudicam. Duro avançar assim.

Não é fortuito que o foco das manifestações esteja em São Paulo e Paraná, dois estados que funcionam como “pequenas pátrias” do PSDB e nos quais o PT não tem tido vida fácil.

Pode ser cômodo usar violentos de manifestações — manifestantes ou policiais — para atiçar a luta partidária. Reanima-se assim, de algum modo, a bipolaridade zumbi de que petistas e tucanos tanto necessitam. Mas é uma comodidade que traz consigo uma tragédia, bastante crueldade e muitos riscos. Põe a nu a indigência política, o vazio de lideranças e dirigentes, o calor artificial que chamusca a institucionalidade. Coisas que fazem sangrar a democracia.

Na base de tudo, muitas incompreensões, discrepâncias de entendimento, falta de treino e educação para conviver democraticamente com o conflito social.

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Marco Aurélio Nogueira é professor de Teoria Política da Unesp

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