quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Míriam Leitão: Um novo tom

- O Globo

Já havia passado muito da hora certa, quando o Itamaraty fez ontem, pela primeira vez, uma crítica ao governo dos chavistas. Pelo menos, fez. É alguma mudança, tardia, mas bem-vinda. O governo de Nicolás Maduro fez ameaças, mudou leis, trocou juízes da corte suprema, inventou um congresso paralelo e tirou poderes da Assembleia Nacional eleita de forma democrática.

Um dia antes da posse dos novos deputados, o governo revogou o poder do legislativo de aprovar os nomes dos dirigentes do Banco Central. Pela nova lei, o chefe do executivo pode nomear e demitir os dirigentes do BC sem passar pelo legislativo. Ontem, no entanto, as coisas começaram a mudar. Na posse dos deputados, o novo presidente do Congresso, Henry Ramos Allup, disse que não haverá mais leis habilitantes, ou seja, a delegação de superpoderes ao presidente que se tornou comum na era chavista.

É uma ponta de esperança. O problema, no entanto, é que a Venezuela poderá viver em 2016 o que os analistas definem como o pior ano da sua história econômica. O ano passado já foi duro: a inflação teria fechado em 270%. Só em dezembro, foi 16%. Isso foi publicado pelo jornal “El Nacional”, depois de ouvir uma fonte não identificada do Banco Central. O BC venezuelano é o responsável por estatísticas econômicas do país. Mas no ano passado não as divulgou por ordens do presidente Maduro. Agora, no novo decreto que muda a forma de indicação para a direção do órgão, fica estabelecido que o BC não pode mais pesquisar esse tipo de informação, sob risco de “ameaçar a soberania” nacional.

Outra mudança na lei: o BC era proibido de emprestar a entes públicos. Agora, ele pode fazer isso, caso o governo considere que há ameaças à segurança pública ou ao interesse público.

Essas e outras aberrações dos últimos dias foram adotadas para minar o resultado eleitoral e para ameaçar os eleitos. Três dos oposicionistas tiveram suas vitórias suspensas por determinação da Justiça, a pedido dos chavistas, num ato totalmente duvidoso.

Na nota divulgada ontem pelo Itamaraty, o governo brasileiro falou em “vontade soberana do povo venezuelano, expressada de forma livre e democrática nas urnas”. Disse que confia que serão preservadas as atribuições e prerrogativas constitucionais da nova Assembleia Nacional Venezuelana. Terminou num recado que pode ser entendido tanto como aviso ao governo venezuelano como em defesa própria diante do processo de impeachment:

“Não há lugar na América do Sul para soluções políticas fora da institucionalidade e do mais absoluto respeito à democracia e ao Estado de Direito”. Esses valores não estão ameaçados aqui. Na Venezuela da era chavista, contudo, sempre estiveram sob risco.

Os analistas e departamentos econômicos dos bancos estão prevendo nova queda de pelo menos 4% no consumo em 2016 e inflação se aproximando novamente de 200%. O desabastecimento, segundo definição da imprensa local, está em níveis de crise humanitária. Esse colapso econômico é parte da tragédia venezuelana, mas não toda ela. O governo chavista há 16 anos no poder desestruturou as instituições e dividiu o país. O trabalho de reconstrução será muito lento, e o passo dado ontem foi tímido. Nicolás Maduro permanece modificando leis e procedimentos para tentar se manter no poder a qualquer custo. A situação tende a se agravar, e o governo brasileiro terá oportunidade de mostrar se a nota de ontem é apenas um enviesado recado para o público interno ou se é uma nova atitude da diplomacia brasileira diante dos flagrantes atentados à democracia que estão sendo praticados pelo governo Maduro.

No último encontro de cúpula do Mercosul, a presidente Dilma Rousseff elogiou a democracia da Argentina e da Venezuela, para constrangimento de Maurício Macri, que já havia feito várias críticas ao governo de Caracas. Na Argentina, os peronistas perderam a presidência e se organizam para ser oposição, como é normal. Após a derrota, tudo o que Cristina Kirchner fez foi a pirraça de não participar do ato de entrega dos símbolos do poder. Feio, mas sem maiores efeitos práticos. Em Caracas, Maduro desde a eleição tem tomado decisões discricionárias para tirar o efeito da vitória da oposição. O Brasil era um dos poucos países que aceitavam todos os absurdos de Maduro. A nota de ontem pode mudar isso. Vamos ver.

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