domingo, 6 de março de 2016

Moro deu a Lula o papel de coitadinho – Elio Gaspari

- Folha de S. Paulo

Realizou-se parcialmente o primeiro objetivo dos procuradores da Lava Jato: o juiz Sergio Moro determinou a condução coercitiva de Lula a uma delegacia. Ele não foi preso, foi submetido a um constrangimento inédito: um ex-presidente da República entrou numa viatura policial. É bom lembrar que, quando os coronéis de IPMs da ditadura chamavam Juscelino Kubitschek para depor num quartel, marcavam hora e ele ia. O grande JK deixava-se fotografar entrando no prédio com seu inesquecível sorriso.

Há mais de um ano, Moro e os procuradores mostram que sabem o que estão fazendo. Indicações de contas mal explicadas envolvendo Nosso Guia, eles as têm, e podem ser encontradas nas 89 páginas em que o Ministério Público mostrou como o dinheiro de empresas metidas em petrorroubalheiras ia para as arcas do Instituto Lula e da família Silva. Como indício não é prova, podem ter dado um passo maior que a perna. Sobretudo porque a condução coercitiva deu ao episódio uma teatralidade desnecessária.

Lula foi presenteado com o papel de vítima, que desempenha há 40 anos com maestria. Como o marqueteiro João Santana já explicou, ele alterna a condição de coitadinho com a de poderoso. O coitadinho é perseguido pela elite. O poderoso defende as empreiteiras.

Lula teve seu mau momento quando respondeu a uma pergunta sobre os pedalinhos de Atibaia dizendo que ela não honrava a Polícia Federal. Deu-se ares de poderoso quando na verdade está diante de um caso em que um suboficial do Exército pagou do seu bolso brinquedos caros para os netos do chefe. O que não honra a Presidência da República é a família Silva ter se metido nesse tipo de transações. Os policiais fizeram muito bem ao perguntar e Lula continua devendo diversas respostas.

Uma conjunção dos astros fez com que, no mesmo dia em que se soube da colaboração de Delcídio do Amaral, o IBGE divulgasse uma contração de 3,8% da economia.

Governo em crise política é coisa comum. Crise política junto com recessão é coisa mais rara. Ambas, somadas a um governo catatônico, ecoam o ocaso do mandato de Fernando Collor de Mello.

O jogo da troca de presidente
Quem não torce pela sobrevivência do mandato de Dilma Rousseff deve saber o que quer. Tirar a doutora da cadeira é uma coisa. Quem colocar no lugar, e como, é outra.

Pelo caminho do impeachment, o vice-presidente Michel Temer assume no dia seguinte.

Pelo caminho da cassação da chapa de Dilma e Temer, assumirá o presidente da Câmara (hoje, Eduardo Cunha), obrigado a convocar eleições em até 90 dias. Se a lâmina do TSE cair depois do início de julho, o pleito poderá coincidir com a eleição municipal de outubro. Candidatos? Marina Silva, sem dúvida. Além dela, quem sobreviver na briga dos tucanos, e resta a possibilidade de aparecimento de um meteoro. Esta opção expressaria diretamente a vontade popular.

Se o TSE cassar a chapa Dilma-Temer a partir de 1º de janeiro, deputados e senadores elegerão, 30 dias depois, o seu substituto, para concluir o mandato. Votam todos aqueles que estiverem no exercício de suas funções. Se continuarem nas cadeiras, Eduardo Cunha presidirá a eleição e Delcídio do Amaral votará.

Esse colégio eleitoral será composto de 594 pessoas. Deles, 99 têm processos à espera de julgamento no STF e são 500 os inquéritos em andamento envolvendo parlamentares.

Vinte e um anos depois da campanha das Diretas, o regime democrático brasileiro corre o risco de eleger indiretamente um presidente da República.

João Santana
As eventuais colaborações de Léo Pinheiro da OAS e de diretores da Odebrecht poderão colocar mais um magano na fila: João Santana.

O marqueteiro do PT foi surpreendido pelo acervo de informações que os investigadores reuniram a respeito de suas transações com a Odebrecht. Essa é a parte mais simples.

Santana é um arquivo vivo dos métodos e das manhas do mercado que fez dele um milionário. Desde sua chegada à carceragem de Curitiba, ele está em outro mundo, diante da estratégia do Ministério Público. De um lado, os procuradores acumulam provas para buscar condenações. De outro, não se contentam com confissões. Se um preso quer colaborar, precisa botar na mesa coisas novas.

Por exemplo: diretores da Andrade Gutierrez destamparam a panela das pesquisas eleitorais pagas pela empresa para atender às necessidades de candidatos. Esse é um costume velho e multipartidário. A empreiteira mostrou uma árvore, Santana poderá mostrar a floresta.

Odebrecht
Em outubro, quando a Camargo Corrêa fechou seu acordo de colaboração, a Odebrecht desmentiu categoricamente que caminhasse na mesma direção.

Acreditava que antes das festas de Natal o STJ soltaria seu presidente. Confiava na macumba palaciana narrada por Delcídio do Amaral e divulgada pela repórter Débora Bergamasco. Tinham uma conta fechada, na ponta do lápis. Deu água.

Apesar da ênfase do desmentido da Odebrecht, ela vinha testando as águas para seguir no mesmo caminho, já aceito pela Andrade Gutierrez.

Dilmês
A doutora Dilma disse, no ano passado, que os problemas da Petrobras eram "página virada", depois informou que "não respeito delator". Agora, indignada, repudiou o que chama de "uso abusivo de vazamentos".

Ela pode ter dito o certo, mas, se a Lava Jato não tivesse continuado a folhear o livro da Petrobras, a roubalheira teria ido para baixo do tapete e, se os colaboradores não tivessem sido ouvidos, as empreiteiras continuariam caladas.

Um vazamento pode ser irregular, mas isso não exclui a possibilidade de ele ser verdadeiro. É melhor haver uma verdade vazada do que blindá-la com mentiras.

Valério de volta
O empresário Marcos Valério continua na penitenciária. Ele poderá desempatar uma parte das revelações de Delcídio do Amaral.

O senador deve lembrar que, na primeira vez em que mencionou as ansiedades de Valério, Lula, calado, olhava para as próprias meias. Na segunda, mandou que procurasse Paulo Okamotto.

Boa notícia
Depois de seu magnífico retrato de Stálin e de seu comissariado, o historiador Simon Montefiore mandará às livrarias em maio uma história dos czares Romanov, que governaram a Rússia até 1917.

Tem tudo para ser coisa fina, pois antes de se meter com os bolcheviques, Montefiore escreveu uma elegante biografia de Grigory Potemkin, o poderoso primeiro-ministro e namorado de Catarina, a Grande. Uma história de poder e amor.

O tio-avô de Montefiore foi sócio dos banqueiros Rothschild e ele tem um olho de lince para observar o poder e as elites. Essa foi uma das virtudes do retrato de Stálin com sua "corte do Czar Vermelho".

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