domingo, 3 de abril de 2016

Unilateralismo diplomático, impeachment e narrativa - Celso Lafer

• Sempre existe a possibilidade de degeneração democrática do título do direito de exercer a Presidência quando se verificam significativos ilícitos no correr do seu exercício

- O Globo

O secretário-geral da OEA, Luis Almagro, declarou que a valentia e a honestidade da presidente Dilma Rousseff constituem ferramenta essencial para a preservação e o fortalecimento do Estado de Direito. Na mesma linha, manifestou-se a secretária-executiva da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, Alicia Bárcena, ao apontar a existência, no seu entender, de ofensiva empenhada em menosprezar a autoridade presidencial e interromper o mandato que lhe foi entregue nas urnas. Estes dois funcionários internacionais tornaram-se, assim, terceiros intervenientes, aliados do governo no processo político interno do país, respaldando a narrativa petista de que o impeachment é um golpe de Estado.

As declarações são parte de empenho mais amplo em transformar a discussão interna do impeachment em tema da agenda diplomática. São impróprias, primeiro porque expressam o unilateralismo de um alinhamento político que não transitou por avaliação mais circunstanciada do tema, que é da natureza do funcionamento de instituições multilaterais. São um desvio de finalidade dos objetivos de cooperação das suas instituições em relação aos quais seus funcionários têm a obrigação jurídica de servir com a objetividade de terceiros imparciais. Em segundo lugar, as normas da cláusula democrática não dão cobertura ao teor destas declarações e também às de outras figuras internacionais. O impeachment está previsto na Constituição brasileira, assim como em outras constituições democráticas de países presidencialistas. É um caminho para lidar com a responsabilidade de governantes e, no caso brasileiro atual, vem sendo tratado com perfeito e paciencioso respeito às normas jurídicas do país.

A não aplicabilidade da cláusula democrática explica-se a partir da distinção entre título para o exercício do poder e condições legais do seu exercício. O título jurídico que confere legitimidade para o exercício do poder presidencial provém do resultado do processo eleitoral. É esta a perspectiva a partir da qual um presidente regularmente eleito fundamenta o seu direito ao cargo. Esse direito se vê acompanhado pelo dever de exercer a Presidência em conformidade com as normas jurídicas vigentes. Um dos méritos do governo das leis é o de contrapor-se ao poder sem freios e limites do voluntarismo do governo dos homens.

Sempre existe a possibilidade de degeneração democrática do título do direito de exercer a Presidência quando se verificam significativos ilícitos no correr do seu exercício. Levando em conta essa possibilidade, a Constituição prevê a figura jurídica do impeachment na ocorrência de crimes de responsabilidade provenientes de atos do presidente. A Constituição contém normas que regem a denúncia de crimes de responsabilidade, a aferição da sua procedência ou improcedência, o subsequente juízo positivo ou negativo da admissibilidade de um processo de impeachment e o eventual posterior julgamento pelo Senado Federal.

O impeachment no Brasil não se processa à margem da lei e das instituições. Está previsto na Constituição, da qual o STF é um ativo guardião. O caso mais conhecido é o do presidente Collor, que não foi qualificado como golpe. Desde a promulgação da Constituição, os presidentes Sarney, FHC e Lula enfrentaram acusações formais de terem incidido em crimes de responsabilidade. Estas tentativas de impeachment não prosperaram e não foram qualificadas como golpe.

Muitas tentativas de impeachment de FHC foram patrocinadas pelo PT, instrumentadas por ilustres juristas simpatizantes do partido, que não consideraram os seus argumentos jurídicos como instrumentos de golpe, mas sim como válida ação política. Muitos destes juristas qualificam a tentativa ora em curso como tentativa de golpe. Trata-se de uma incoerência — e a coerência é uma virtude jurídica num Estado de Direito —, pois não aceitam como argumentos da existência de crimes de responsabilidade que podem vulnerar o mandato de Dilma os que, na mesma linha, brandiram contra o mandato de FHC, eleito duas vezes em primeiro turno para seus mandatos. Trata-se de uma opacidade intencional da consciência jurídica, só explicável pela desmedida unilateralista da paixão política que alimenta com dois pesos e duas medidas a excludente divisão nós/eles que permeia a demagógica construção da narrativa do golpe. É esta narrativa que se contrapõe ao Estado de Direito do Brasil, que, no legítimo âmbito das suas normas e na plenitude do funcionamento de suas instituições, examinará se cabe ou não o impeachment de Dilma.

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Celso Lafer é professor da USP e foi ministro das Relações Exteriores no governo Fernando Henrique Cardoso

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