sexta-feira, 20 de maio de 2016

Diálogo com a tesoura - Fernando Gabeira*

- O Estado de S. Paulo

Quando ouço a palavra cultura, saco minha tesoura. É razoável que se pense assim num momento de crise aguda. Não entendo, porém, o fim do Ministério da Cultura.

O governo Temer nasceu de uma emergência, teve pouco tempo para se estruturar. Sua prioridade é correta: reconstrução econômica. Sua tática, também: conquistar a maioria no Congresso para aprovar as medidas saneadoras. Paga-se um preço, mas, enfim, é a única saída real. Compreendo, portanto, que o governo Temer ainda não tenha uma política cultural. Esta é a primeira crítica: é preciso ter política para, depois, definir o instrumento.



Secretaria ou ministério, qual o melhor? Depende. Quando saiu da secretaria do MEC, o Ministério da Cultura foi rebaixado. Perdeu a Roquete Pinto e a TVE. Gilberto Gil tentou recuperar a TV quando Lula a recriou. Perdeu para uma corrente que dirigia a comunicação.

Na França os dois são unidos, Ministério da Cultura e Comunicação. Superficialmente, o fim do ministério foi saudado porque muitos viam nele apenas um espaço para cooptar artistas por meio de isenções fiscais. O BNDES também cooptou empresários com juros subsidiados. Vamos fechar o BNDES?

Uma coisa é economia, outra é cultura, pode-se argumentar. No entanto, elas não andam tão separadas. Num mundo de crescente produção imaterial, a dimensão econômica da cultura é estratégica.

Existem menções a ela no plano de governo de Collor. Seu programa elogiava grupos culturais com sensibilidade para a audiência e uma estrutura empresarial. No mesmo parágrafo, critica os que se apoiam nas asas do Estado para esconder sua mediocridade. Sem mediações adequadas, Collor falhou.

No governo Fernando Henrique, José Álvaro Moisés levava o tema adiante, com o slogan “cultura é um bom negócio”. Hoje, acredito que não apenas a tecnologia e o conhecimento científico transferem valor às coisas. A cultura também o faz.

Trabalho com isso no cotidiano, documentando experiências do que chamamos economia criativa. Recentemente, na Praia do Jacaré, na Paraíba, mostrei a história de um saxofonista que ergueu uma comunidade de negócios em torno dele. Todas as tardes, às 18 horas, ele sobe num barquinho e toca o Bolero de Ravel. Com o tempo, o lugar superlotou, surgiram lojas bares, restaurantes. Num deles, há um peixe à Maurice Ravel no cardápio. Mesmo quem não gosta de Ravel ou mesmo do peixe que leva seu nome reconhece que, de uma certa forma, é a cultura que move o lugar.

Os chamados pontos de cultura, do programa do PT, que não conheço na totalidade, já revelaram para mim um caso de êxito em Arraial do Cabo. O ponto de cultura transformou-se num ponto de encontro e venda do artesanato local.

É preciso que Temer mostre a sua visão para que seja um parâmetro para a crítica. O debate está todo concentrado no financiamento indireto de artistas, como se fosse o único tema.

O patrimônio artístico e histórico do Brasil vive momentos difíceis e ameaçadores. Digo porque trabalho também com ele, visitando de estátuas do Aleijadinho ao sítio de Burle Marx. Pode-se argumentar que nosso patrimônio não tem o mesmo valor do de países mais velhos. Mas é o nosso patrimônio, um fragmento no mosaico da diversidade humana.

Intelectuais como Mário de Andrade percorreram o Brasil colhendo expressões culturais, outros, como Rodrigo Melo Franco, lutaram para que os monumentos fossem preservados e vistos. Na confluência de Estado e cultura, o designer e pintor Aloisio Magalhães trabalhou para inventar um instrumento de gestão que atendesse a todos.

Acabar com o MinC e anexá-lo de novo à Educação, pôr tudo nas mãos de um deputado não familiarizado com o problema, é uma escolha problemática.

A TV estatal tem traço de audiência, dinheiro jogado fora. Por que não fazer dela uma incubadora de pequenas empresas culturais? Isso é só uma possibilidade. Sei que passível de condenação, sob o rótulo de mercantilismo. O mecenato é frágil. Fora do mercado, não há Estado que nos ampare. Ainda mais falido e com grandes problemas sociais.

Existem situações em que o Estado financia um grupo artístico. Mas grupos de reconhecido prestígio cultural, como é o de Pina Bausch, na Alemanha. Os americanos promoveram um tour mundial do Modern Jazz Quartet. Em plena recessão, comissionaram o escritor James Agee e o fotógrafo Walker Evans para produzir um belo livro: Vamos Elogiar o Homem Comum.

Tudo isso é calculado. No caso do Modern Jazz, como exercício do soft power, que também, dentro dos limites, podemos exercitar. No caso do livro, foi uma tentativa de levantar o moral, mostrando a força do homem comum na devastadora crise econômica.

Se o problema for só dinheiro, é preciso lembrar que se pode ter uma estrutura mais ágil e ampliar as parcerias com a iniciativa privada. E com boas ideias, em vez de apenas isenções.

É preciso vir mais devagar. Os novos dirigentes devem perceber que fecharam vários ministérios e só dois deram o que falar: os da Cultura e da Ciência. Espero que não confundam a cultura com um grupo de artistas. Ela envolve também milhares de trabalhadores na indústria e, sobretudo, o afeto de grande parte dos brasileiros.

No Brasil, muita coisa ainda gira em torno desta quase ficção: direita-esquerda. Se acham, por exemplo, que um Ministério da Cultura é algo de esquerda, lembrem-se de André Malraux no governo De Gaulle. Embora tenha lutado na Guerra Civil Espanhola, não era de esquerda. De Gaulle, muito menos.

José Serra assumiu a política externa. A cultura tem um papel econômico e simbólico em nossa relação com o mundo. Não conheço sua opinião, mas seria interessante saber como, para ele, cultura e política externa se entrelaçam, que instrumento é o adequado para o governo.

Por favor, saquem a sua tesoura, mas também algumas ideias. Não comecem cortando no pescoço.

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*Fernando Gabeira é jornalista

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