quinta-feira, 2 de junho de 2016

Delírios universitários às margens do Hudson - Bolívar Lamounier*

- O Estado de S. Paulo

Invincible ignorance. A term in moral theology denoting ignorance of a kind which cannot be removed by serious moral effort. It excuses from sin because, being involuntary, it can involve no intention to break the law of God (extraído do Oxford Dictionary of the Christian Church)

Nos anos 50, referindo-se ao peronismo, o sociólogo ítalo-argentino Gino Germani cunhou a expressão “fascismo da classe operária”. Muita gente se escandalizou e uns tantos ficaram verdadeiramente irados. Imagino o que hoje diria Germani, se vivo estivesse, da estranha mescla de esquerdismo e fascismo que se delineia nos meios universitários na América Latina, com ramificações até nos Estados Unidos.


Refiro-me, em particular, aos fatos ocorridos durante a assembleia anual da Latin American Studies Association (Lasa) em Nova York, no dia 29 de maio. Celebrando seu quinquagésimo aniversário, a associação incluiu no programa uma conversa entre os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Ricardo Lagos sobre a situação das democracias latino-americanas. Cerca de três meses atrás, ao tomar conhecimento da programação, algumas dúzias de universitários de vários países enviaram um abaixo-assinado à associação com o intuito de interditar a participação de Fernando Henrique, alegando ser ele um dos responsáveis por um suposto “golpe” no Brasil – ou seja, pelo processo de impeachment em curso contra Dilma Rousseff. O abaixo-assinado contrário foi imediatamente contestado por outro a favor da participação de Fernando Henrique.

A Lasa manteve a programação, mas os fascio-esquerdistas não se deram por achados. Planejaram hostilizar o ex-presidente do Brasil quando de sua chegada ao recinto. Num notável ato falho, ou por ignorância ou, sabe Deus, querendo mesmo evocar a Marcha sobre Roma de 1922, muitos deles apareceram trajando camisas negras. Escusado dizer que Fernando Henrique, em carta à diretoria da associação, deu aos manifestantes a resposta cabível, mas não se expôs ao ridículo de participar de um evento que de acadêmico não teria mesmo nada.

Por mais que me tenha esforçado, não estou seguro de haver compreendido plenamente o que os referidos manifestantes pretendiam. Em se tratando de universitários, será concebível que tal comportamento tenha sido motivado por um surto de desonestidade intelectual? O improvável de tal hipótese sugeriu-me procurar a desejada explicação em esferas mais elevadas, e penso havê-la encontrado no Dicionário Oxford da Igreja Cristã, no verbete “ignorância invencível”, em que se lê: “(...) ignorância de um tipo que nem um esforço moral sério consegue remover; (a conduta que dela decorre) não pode ser considerada pecaminosa, pois, sendo involuntária, não envolve intenção alguma de quebrar a lei de Deus”.

Ou seja, pelo menos uma parte da estapafúrdia iniciativa dos camisas negras deve ter resultado de uma crassa ignorância acerca da situação política e das instituições brasileiras. Nisso, pensando bem, não há novidade, dado que um desconhecimento da mesma ordem transparece na cobertura do impeachment por parte de alguns dos jornais tidos como mais respeitáveis entre os norte-americanos e europeus.

Estranho golpe este de que se queixa a presidente afastada Dilma Rousseff. Poucos dias atrás, a imprensa a retratou denunciando o “golpe” não nas entulhadas ruas de nossas metrópoles, mas confortavelmente instalada numa poltrona da residência oficial, o Palácio da Alvorada. Se algo lhe vem perturbando o sono, tranquilize-se sua excelência, não se trata de aeronave militar; será, antes, o esvoaçar de algum pernilongo ou o reiterativo canto de sabiás açodados que houveram por bem antecipar a estação do acasalamento.

A abertura do impeachment deveu-se, como os manifestantes e a própria Lasa deviam saber, a infrações graves contra a legislação orçamentária e fiscal, configurando “crimes de responsabilidade”, capitulados como tais pela Constituição federal de 1988. O rito adotado não foi o inicialmente escolhido pelo presidente da Câmara dos Deputados, mas outro, muito mais dificultoso, determinado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) – e não nos esqueçamos de que 8 dos 11 ministros da Corte foram nomeados durante os períodos de Lula e Dilma. Na Câmara, a abertura do processo teve a aprovação de 367 deputados, 25 a mais que o mínimo necessário de 342. A aplicação dos referidos procedimentos, estritamente jurídicos, foi supervisionada pelo STF, e não circunstâncias externas, como a catástrofe econômica e social advinda da gestão presidencial da sra. Dilma Rousseff ou o mar de lama em que se debate o Partido dos Trabalhadores, agremiação a que ela e seu mentor Lula pertencem.

Preocupados como dizem estar com a saúde da democracia brasileira e com a hipótese de um eventual golpe, conviria que os camisas negras de Nova York e a parcela da imprensa internacional comprometida com a tese do golpe se inteirassem do documento oficial – uma suposta autocrítica – dado a público pelo Partido dos Trabalhadores logo após a instalação do processo de impeachment no Senado. Nele o partido afirma, nem mais nem menos: “Fomos igualmente descuidados com a necessidade de [...]modificar os currículos das academias militares; promover oficiais com compromisso democrático e nacionalista; fortalecer a ala mais avançada do Itamaraty e redimensionar sensivelmente a distribuição de verbas publicitárias para os monopólios da informação”.

Para bom entendedor, como se costuma dizer, pingo é letra.
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*Bolívar Lamounier é sócio-diretor da Augurium Consultoria, é membro da Academia Paulista de Letras e autor do livro 'Tribunos, Profetas e Sacerdotes: Intelectuais e Ideologias no Século 20' (Companhia das Letras)

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