segunda-feira, 6 de junho de 2016

Os dois gumes do impeachment - Marcos Nobre

• A situação de Temer é ainda mais grave que a de Sarney

- Valor Econômico

Legitimidade não se confunde com legalidade, com vitória em eleição ou com decisão de tribunal. É coisa etérea, difusa, que depende de uma quantidade quase incontrolável de fatores. Mais complicado ainda, só é lembrada quando faz falta, quando já não está mais presente. Por ser artigo escasso e precioso, democracias se organizam para que a legalidade garanta um quadro de relativa estabilidade no tempo para que ocupantes do poder tenham condições de construir a legitimidade de que vivem seus governos.

Momentos de crise institucional são aqueles em que a legalidade já não garante mais coisa alguma. São momentos em que a legitimidade passa a ser construída a céu aberto, de maneira bruta e arbitrária. Em 1985, José Sarney assumiu a Presidência sem que o presidente eleito indiretamente, Tancredo Neves, sequer tivesse assumido o posto. Sarney nada tinha que ver com seu partido, o PMDB. Tinha sido apoiador empenhado do regime civil-militar durante vinte anos.


A cúpula do PMDB gastou toda a legitimidade conquistada como oposição consentida à ditadura para sustentar Sarney. Também porque tinha sido o seu inventor. Também porque pretendia tutelá-lo durante cinco longos anos. O governo Sarney conseguiu construir alguma legitimidade na primeira metade de seu mandato e depois disso arrastou seus farrapos até 1990. A conclusão da cúpula da política oficial da época foi que daria mais dor de cabeça tirá-lo da Presidência do que carregá-lo nas costas como fosse possível.

Itamar Franco assumiu a Presidência interinamente em outubro de 1992 e definitivamente no fim do mesmo ano. Como resultado de uma rejeição praticamente unânime ao governo de Fernando Collor, teve o apoio da maior parte das principais forças políticas. O fato de Collor pertencer a um partido inexpressivo, inventado apenas para dar guarida a sua candidatura presidencial, facilitou o novo arranjo, já que não havia uma grande força derrotada no processo.

E, no entanto, apesar dessa vantagem inicial, Itamar era sério candidato a repetir o final arrastado do governo Sarney. Em seus primeiros seis meses, foi um governo caótico, sem unidade nem programa. Sua obsessão única era distinguir-se da bandalheira do período Collor. Só alcançou legitimidade para seu mandato-tampão quando entregou seu governo a FHC e à aliança política que produziu o Plano Real.

Temer foi o terceiro vice a se tornar presidente nas últimas três décadas. Como nos dois casos anteriores, também se mostra incapaz de dar rumo e unidade a seu governo. Para isso, também depende de que grupos e forças políticas que consigam produzir coordenação política e alguma unidade para a ação governamental. A diferença agora é que não tem sequer a quem entregar seu governo. O sistema político está tão fraturado que não consegue produzir nada semelhante a uma aliança com sentido e propósito. Temer entrega o governo para o programa thatcherista de Meirelles em um dia e, no outro, pede aplausos para um Congresso que o inviabiliza. Até o momento, quem gritou mais alto, levou.

A situação é tanto mais dramática porque não há vice do vice para assumir se o vice que se tornou presidente for ele mesmo afastado. Já é uma grande encrenca afastar presidente em sistema presidencialista. Afastar vice que assumiu a Presidência é certeza de arruaça política. Também isso fez parte do cálculo da articulação do impeachment de Dilma Rousseff. Estancar a crise significava nesse cálculo deixar o país sem alternativa ao novo governo. O problema desse tipo de cartada é que pode produzir um governo de fato sem por isso conseguir produzir um governo legítimo.

O fato de os articuladores do impeachment terem decidido que Dilma Rousseff não deveria dispor do tempo da legalidade para encontrar a legitimidade que lhe faltava se volta agora contra o próprio governo Temer. As chances de que o novo governo disponha das condições e do tempo para conquistar a legitimidade que lhe falta são baixas. O impeachment operosamente buscado pelo grupo em torno de Temer lhe tirou esse tempo e essas condições, escancarou de vez a despensa da Lava-Jato. O que se tinha antes do impeachment era um fuzil apontado para o governo Dilma e para o PT. O que se tem agora é uma metralhadora disposta a dizimar quem quer que se coloque em seu campo de mira. A lógica é impecável: quanto mais alvos tombam, mais desimpedido fica o caminho para abater novos alvos.

Em pane e em pânico, o sistema político acreditou que entregar um pato vermelho iria fazer parar o tiroteio contra os patos amarelos. Em lugar de estabilidade e proteção, o impeachment apenas acelerou a linha do tiro ao alvo. Conforme passa o tempo, a situação de Temer se mostra ainda mais grave que a de Sarney. Não pode apenas manter permanentemente a cabeça colada ao chão para evitar o tiroteio. Mas não encontrou até agora como levantá-la.
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Naquele que pode ser considerado seu discurso de posse, Michel Temer só mencionou explicitamente uma das muitas reformas que tinha em vista: a revisão do pacto federativo. Nas suas palavras, "Estados e municípios precisam ganhar autonomia verdadeira sob a égide de uma federação real, não sendo uma federação artificial, como vemos hoje". 

Mas só o que apareceu até agora sobre o pacto federativo foi a ideia de estender uma versão ampliada da Desvinculação de Receitas da União (DRU) também para Estados e municípios. O que a União faz com isso é empurrar com a barriga uma renegociação séria e de longo prazo das dívidas dos demais entes federativos. Abre mão de atrelar uma renegociação como essa a compromissos que possam fazer avançar o país como um todo. 

Também joga para debaixo do tapete uma discussão efetiva sobre a aberração de se inventar uma lei para dar um jeitinho na Constituição. Não se trata de dar maior liberdade e autonomia para que Estados e municípios possam investir em saúde, previdência e educação com criatividade e inovação. Trata-se apenas de dar liberdade e autonomia para deixarem de gastar em rubricas vitais em um momento de crise social aguda.
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Marcos Nobre é professor de filosofia política da Unicamp e pesquisador do Cebrap.

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