segunda-feira, 6 de junho de 2016

Raiva espera? - Ligia Bahia

• E os hospitais públicos e os postos de atendimento ambulatorial, alguma coisa aconteceu? Acho que só houve umas mudancinhas

- O Globo

Em uma conversa dessas de todo dia, não grampeada, entre gente comum, preocupada consigo e com os outros, o tema foi saúde e afins. Está mesmo faltando vacina? O fornecimento é irregular. Atendi uma senhora com mordida na mão, estava vindo na peregrinação, de unidade em unidade, dava para ver os dentes de um lado e do outro, estava muito edemaciada. Mostra com gestos o ferimento e o inchaço. Os outros comentam: se alguma coisa todo mundo aprende na faculdade é que, se for em membros superiores e face, tem que vacinar, mesmo que o animal possa ser observado. A história é retomada. Mas nesse dia não tinha vacina, eu já sabia.

Examinei a paciente e, mesmo assim, telefonei para a secretaria. A moça que me atendeu foi burocrática, tratou como se fosse uma falha de informação. A lenga-lenga de sempre: vocês deveriam ter sido avisados. Respondi: “Nós aqui sabemos disso, estou ligando para solicitar uma orientação.” Ela sugeriu colocar a senhora numa lista de espera. Como assim? E raiva espera? (A raiva humana é letal, e o período de incubação para que a doença se manifeste é menor em casos de penetração do vírus em locais com mais terminais sensitivos). Mais informações são trocadas. Eu consegui em outra cidade, me disseram que lá tinha três doses. A paciente teve que viajar. Pausa para perplexidade. Quem diria, o programa nacional de imunizações foi a menina dos olhos da saúde no Brasil.


O assunto puxou a preocupação com os medicamentos, com o coqueções tel para HIV/Aids e atendimento na Olimpíada. Alguém sabe com certeza como vai ser? Houve uma reunião na Cidade Olímpica. Saiu no jornal, vai ser tudo dividido. Tem uma parte que eles chamam de família olímpica, que será atendida em um hospital privado; o pessoal da imprensa também terá assistência especial, em outro lugar, e o resto na rede pública. Será que dá certo, isso tão separadinho? E os hospitais públicos e os postos de atendimento ambulatorial, alguma coisa aconteceu? 

Acho que só houve umas mudancinhas. Estive em um hospital e vi obras para leitos de terapia intensiva, tinha mármore preto e tudo. Parece que chegaram mais de cem ambulâncias novas, o ministério já deu dinheiro para o funcionamento. Teve treinamento, isso eu sei. Constata-se: que pena, se valorizassem a rede pública, o Rio ficaria bem melhor. Mais interrogações. De onde veio esse dinheiro para contratar os hospitais privados? Sei lá, ouvi dizer que é exigência do COI. Será? E em Londres, o COI aceitou que o sistema público atendesse? O sistema público inglês foi a estrela da abertura da Olimpíada.

Silêncio, seguido por tentativas de explicação. Quem é que sabe o nome de algum secretário? Você lembra? São inexpressivos. Não vão botar dinheiro em nada que não renda voto; nesse ano tem eleição. Tem réplica. Por isso, deveriam se preocupar, vai ter manifestação, o SUS vai aparecer de novo nas ruas. Inicia-se uma avaliação do que é pior ainda. E o ministro interino da Saúde? 

Problemão, pode vir chumbo grosso em tudo que com muito esforço estava saindo debaixo do tapete: aborto, estupro, atendimento para LGBT, profissionais do sexo. Violência comendo solta, soldado do tráfico, da milícia e da polícia morrendo e matando. Vai ser punk. Morreu um parente de um conhecido meu. Guillan-Barré, e não havia imunoglobulina. Dá uma tristeza. Viu o aumento no plano? Mais que 13%, velho não consegue pagar, nem mudar para um de menor valor, é expulso. 

Pode ter uma secretaria das mulheres, que é contra o aborto por convicções religiosas? A inquietação com as instituipúblicas vai da saúde para outros setores. E na Funai, que botaram um cara que é a favor da catequização dos indígenas, sequer aquela ambiguidade de alguns padres jesuítas do Brasil Colônia. Agora que o Ministério da Cultura voltou, temos que ser contra a fusão do da ciência e tecnologia. A SBPC está pressionando. Toda hora é abaixo-assinado. Já assinei. Como um país vai ficar sem uma instituição forte de ciência e tecnologia?

Mais uma interrupção, e mudança de rumo da prosa. Eu me sinto bem atendendo paciente, na sala de aula. Quando dá certo, não tem nada mais gratificante. Uma foto no celular passa por todos. Uma cirurgia com diversas próteses cardíacas. Assim, fica parecendo um Robocop, mas ele é jovem ganhou uma nova vida. O material é uma fortuna, mas se usar com critério... tinha que ser sempre assim. 

O grupo sai andando, passa por uma livraria. Conhecem? Sim é boa, mas é um pouco cara. A gente não consegue parar de comprar livro. Agora só leio e-book. Continuo com os tradicionais. Então tenta, o eletrônico fica bem mais barato, acostuma rapidinho. No dia seguinte, acordam cedo, para pegar no batente. São profissionais experientes, se formaram em uma universidade pública, querem trabalhar melhor, contribuir para que a população tenha direito à saúde. Nada demais, nem de menos, apenas a renovação do compromisso ético-político com a saúde e democracia.
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Lígia Bahia é professora da UFRJ

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